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O RECONHECIMENTO PELO OUVIR

Maria reconhece Jesus ao ouvir. Isso é uma característica gnóstica: crê pela Palavra. Na comunidade de Maria Madalena o conhecimento é adquirido através da palavra. Por isso Maria reconhece Jesus ao ouvi-lo e não ao vê-lo.

107 MATTEOS, Juan & BARRETO, Juan. O evangelho de são João – grande comentário bíblico. São Paulo:

Ed. Paulinas, 1989. p. 821-823.

108 MATTEOS, Juan & BARRETO, Juan. O evangelho de são João – grande comentário bíblico. São Paulo:

A palavra escuta (shemá) é muito importante na tradição judaica. Faz parte da vida de um judeu, escutar é tornar viva a Presença de Deus. Maria Madalena viu, ver para crer faz parte da cultura grega, em que o cristianismo está inserido. “Já para os judeus bastava ouvir para crer”. Para os cristãos o ver passa a ser a plenitude do ouvir. Maria Madalena representa essa atitude de pensar. Aqui se percebem algumas disputas teológicas entre as lideranças cristãs.109

A resposta de Maria: Rabbuni, meu Senhor, é tratamento usado para os mestres. Os termos “Rabbi” e “Rabbuni” são praticamente sinônimos (meu Senhor), o segundo se encontra somente nesta cena, após a ressurreição. Também “Rabbuni” podia ser usado pela mulher ao dirigir-se ao seu marido; era uma saudação carinhosa.110

O versículo 17 tem várias interpretações111. Elas se preocupam com o significado da frase de Jesus para Maria Madalena. Nosso objeto não aborda essa frase, por isso registramos na nota os diferentes sentidos. Nosso objetivo é verificar nesse diálogo uma marca que confere autoridade à Maria.

109 FARIA, Jacir de Freitas. As origens apócrifas do cristianismo – comentário aos evangelhos de Maria

Madalena e Tomé. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 58.

110 “Há muitos pontos em comum entre esta narração e a do primeiro encontro de dois discípulos com Jesus

(Jo1,35-39). Naquele caso os discípulos seguiam a Jesus, e este se voltou e os viu. Aqui é Maria que se volta e vê Jesus de pé. É muito parecida a pergunta que Jesus dirige em ambos os casos. O que buscais? / A quem

buscas? O modo de dirigir-se a Jesus é também muito semelhante: Rabbi (Mestre) / Rabbuni (Mestre), são

duas formas do mesmo tratamento”. MATTEOS, Juan & BARRETO, Juan. O evangelho de são João –

grande comentário bíblico. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. p. 824.

111 Segundo Brown, foram listadas 12 interpretações dessas palavras. The death of the messiah. Londres,

1994. 992p. Quando Jesus diz para Maria: “Deixa de me tocar!” conclui-se que ela não apenas estendeu os braços em direção ao Ressuscitado, mas num gesto de adoração abraçava-lhe os pés. A recusa dirigida a Maria é motivada pela missão que ela deve cumprir junto aos discípulos. O anúncio da ressurreição e da ascensão. “Em grego, o imperativo presente (me mou háptou) indica, à diferença do aoristo, não que tal ação não deve ser feita, mas que a ação iniciada não deve continuar. Não há contradição entre a resposta de Jesus e a proposição feita a Tomé de colocar a mão no lado (20,27), pois o contexto, é diferente, os termos não são idênticos e o verbo não está no mesmo tempo.” Alguns autores, entre eles Brown encontram dificuldades para explicar a ordem que Jesus dá a Madalena. Não entendem porque Jesus proíbe a Madalena que o toque se, na semana seguinte, antes da ascensão, será Ele mesmo a pedir a Tomé para que toque as suas feridas. Para Prince, a inspeção pedida por Jesus, comprovaria que Ele tinha carne e sangue, sua presença era corporal, como a de um herói ou de alguém que retorna para a vida mortal. PRINCE, Deborah Thompson. The ‘Gost’

of Jesus: Luke 24 in Light of Ancien Narratives of Post-Mortem Apparitions. Journal for the Study of the

New Testament. London, 2007. p. 296. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João IV. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p. 160.

Conclusão

No estudo de Maria Madalena percebemos, através da interferência de uma outra tradição – a ida de Pedro e do Discípulo Amado – na história do encontro de Maria Madalena com o Ressuscitado um conflito em torno da cooptação da memória dessa líder. Por outro lado a presença do relato dela no sepulcro, como a primeira testemunha da ressurreição, como a primeira a ouvir Jesus e falar com ele, na perspectiva do diálogo da discípula com o mestre mostra que a memória de sua liderança ainda é referencial nessa comunidade. Isso comprova, que a liderança de Maria Madalena era muito importante para as primeiras comunidades cristãs. O seu testemunho está presente nos quatro evangelhos, isso comprova que a sua memória não pôde ser excluída dos escritos canônicos. A inserção dos versículos de 3-10 na perícope de 1-18 é uma tentativa de fazer com que os dois discípulos participem como testemunhas da ressurreição do Senhor. E mostra também que existe uma disputa interna entre essas lideranças.

Lideranças essas em que uma não podia fazer sombra à outra. Maria Madalena se destaca porque viu o Ressuscitado e o anunciou; Pedro foi o primeiro a entrar no túmulo e João foi aquele que viu o túmulo vazio e os lençóis, e acreditou.

Nós entendemos que Maria Madalena é aquela que teve a primazia sobre todos: viu e conversou com Jesus Ressuscitado e anunciou aos discípulos (incrédulos) que o Mestre está vivo. E se ela teve esse privilégio, é porque também fazia parte do grupo dos discípulos e sua liderança era reconhecida na comunidade.

Segundo Thompson,112 “Maria Madalena foi tão importante que era impossível omitir seu nome dos textos e igualmente impossível alterar a forma de identificá-la. Maria Madalena na verdade foi líder e apóstola na Igreja primitiva”.

112 THOMPSON, Mary R. Mary of Magdala: Apostle and leader. New York and Mahwah, N.J.: Paulist

III CAPÍTULO - COMPARAÇÃO DA FIGURA DE MARIA

MADALENA DE JO 20,1-18 COM OUTRAS FONTES NÃO

CANÔNICAS

O objetivo deste capítulo é o de comparar a imagem de Maria Madalena que encontramos na exegese da perícope de João 20,1-18 com a imagem que encontramos no evangelho de João, como um todo, e, também, em importantes fontes gnósticas.113 Entre as fontes gnósticas consultamos o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Felipe, o Evangelho de Maria e o Pistis Sophia. Também vimos como Maria era relembrada na tradição da Igreja e como sua figura foi confundida com outra personagem bíblica unificando-se numa prostituta.

113 A opção pelo evangelho de João e pelos evangelhos gnósticos se dá em função de que, mesmo que em

todos os quatro evangelhos encontramos a figura de Maria como “Madalena”, não encontramos neles a clara explicação do seu real significado. A presença dela demonstra a sua importância, mas a não explicitação de seu papel no cristianismo primitivo mostra um conflito em torno de sua memória. Essa ambigüidade proporciona a confusão criada em torno da figura de Maria Madalena sendo confundida com a Maria (mãe de Jesus), com a Maria do Egito, com a Maria de Betânia (irmã de Lázaro), com a filha da mulher Sírio-Fenícia em Marcos cap. 7, com a prostituta que ungiu os pés de Jesus em Lucas cap. 7, e com a mulher adúltera em João cap. 7,53-8,11. Cf. em CAMERY-HOGGAT, Jerry. Images of Mary Magdalene in Cristian Tradition: A

1 MARIA MADALENA NO EVANGELHO DE JOÃO

Sabe-se pouco sobre a origem de Maria Madalena. Os Evangelhos dizem que ela era originária de Magdala, uma cidade portuária e colônia de pescadores situada às margens do lago Tiberíades, na costa ocidental. Revela-se como uma seguidora fiel de Jesus de Nazaré e aparece junto dele na crucificação: não o abandonou nem quando todos os apóstolos se esconderam, atemorizados, diante da perseguição. Esteve ao lado de Jesus até o final e foi a testemunha mais importante da ressurreição.

Ao longo da história Maria Madalena obteve vários papéis: apóstola e líder das primeiras comunidades cristãs, prostituta, penitente, e depois retorna como santa redimida dos seus pecados. Hoje a história e a teologia buscam resgatar a verdadeira história (se for possível) e importância de Maria Madalena para o Cristianismo nascente. Os evangelhos canônicos apresentam-na como discípula e líder de um grupo de mulheres que sustentavam financeiramente a Jesus e ao seu grupo, desde o início do seu ministério na Galiléia. Testemunhou a crucificação e ressurreição de Jesus, e foi enviada a anunciar aos discípulos que o Mestre estava vivo.

Na tradição judaica é dever dos discípulos (homens) providenciar com suas posses o sustento material do seu mestre, que era tido como um dever religioso e uma honra. O fato das mulheres contribuírem financeiramente de maneira espontânea para o sustento do grupo é sinal de que elas eram consideradas discípulas.114

O relato de João 20 nos leva a crer que a aparição a Maria Madalena é antiga. Pelo motivo de que em todas as narrativas referentes à ressurreição de Jesus, que envolvem mulheres, Maria está sempre presente e seu nome vem em primeiro lugar.

114 SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena – de personagem do evangelho a mito de pecadora redimida.

Thompson115 descreve três motivos para a presença de Maria Madalena na cena da crucificação, morte e ressurreição de Jesus:

provavelmente ela era tão importante na comunidade primitiva que era um símbolo de posição e respeito; possivelmente ela era tão importante no tempo de Jesus que sua presença era admitida como certa; provavelmente seria uma memória histórica da presença de Maria na crucificação. Cada uma dessas razões denota o quanto Maria era importante, mesmo no tempo de Jesus ou na época em que os textos eram escritos.

Maria Madalena é associada à memória da proclamação da ressurreição de Jesus e ao encontro do túmulo vazio confirmado na tradição dos quatro evangelhos.

Na Igreja primitiva, a percepção da crença da ressurreição origina-se de Maria Madalena. No evangelho de João, a mensagem dela é muito importante e não se dirige somente aos onze apóstolos, mas também a todos aqueles que aceitam Jesus como Filho de Deus. Pela missão recebida, João a descreve como discípula e apóstola, pois ela é a testemunha do Cristo Ressuscitado que lhe deu o privilégio de vê-lo primeiro.116

Além disso, há outras características que a configuram como discípula, segundo Camery-Hoggatt117:

• Ela deixou a sua casa para acompanhar Jesus em sua missão itinerante; • Ela usou seus recursos para o Reino de Deus;

• Ela arriscou sua vida seguindo-o até a cruz.

115

THOMPSON, Mary R. Mary of Magdala: Apostle and leader. New York and Mahwah, N.J.: Paulist Press, 1995. p. 62.

116 BOER, Esther de. Maria Madalena – discípula, apóstola e mulher. São Paulo: Madras, 1999. p. 71. 117 CAMERY-HOGGAT, Jerry. Images of Mary Magdalene in Christian Tradition: A Case of Prostituted

A comunidade joanina conserva a memória de Maria Madalena como a primeira testemunha e apóstola da ressurreição. Ela é a mulher mais importante do Novo Testamento, acompanha Jesus desde o início do seu ministério. A sua primazia é evidente perante as outras mulheres que O seguem. A sua liderança permaneceu até meados do século IV nas comunidades cristãs. Era tão importante que a sua memória não pode ser apagada. Ela precede os discípulos na fé ao anunciar a ressurreição, este fato não é irrelevante. Só confirma a sua posição como discípula.

2 MARIA MADALENA EM JOÃO 20

Segundo os evangelhos sinóticos, Maria Madalena vai ao sepulcro ao amanhecer, acompanhada pelas outras mulheres para ungir o corpo de Jesus. O autor do quarto evangelho assinala a ida de Maria Madalena ao sepulcro sozinha, ainda está escuro e não menciona o motivo da ida. Ela encontra a pedra do túmulo removida e se assusta, pensando que roubaram o corpo de Jesus.

No versículo 2 um outro relato é inserido (2-10) na narrativa de Maria Madalena. Depois no versículo 11 é retomada a narrativa da aparição de Jesus a Madalena. Há hipóteses de que a inserção da narração de Pedro e do discípulo amado, tenha sido incluída posteriormente, por motivos político-eclesiais. Segundo Sebastiani,118 nos primeiros tempos da Igreja existia uma tensão entre um modelo petrino centrado nos aspectos judaicos e na hierarquia, e um modelo joanino mais “helenizante e carismático-mistérico”. Pedro entra primeiro no túmulo, mas quem vê e acredita é o Discípulo Amado.

O texto de 2-10 tem como pano de fundo um conflito entre as lideranças apostólicas. Na comunidade joanina atuam três tradições: Maria Madalena, João e Pedro. Há conflitos de poder e autoridade entre líderes que são respeitados pela comunidade. O

118 SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena – de personagem do evangelho a mito de pecadora redimida.

relato dos dois discípulos atravessando a narrativa de Maria Madalena, evidencia de que alguém que tem relevância no grupo joanino, quer apagar a memória da liderança de Maria Madalena na comunidade. Também demonstra a disputa entre as lideranças do cristianismo primitivo.

Na narrativa de 1.11-18 a ênfase está em Maria e no seu relacionamento com Jesus, ela é encarregada de levar a mensagem da ressurreição para os discípulos. Mesmo com as diferenças de redações nos evangelhos, o papel de Maria permanece constante. Ela é a mensageira e é aquela que entende o Cristo ressuscitado. Ela é a intermediária da mensagem para os outros discípulos. Após a narrativa da ida de Pedro e do discípulo amado ao sepulcro, Maria retorna para o centro do relato e imediatamente ela inicia diálogos: primeiro com os dois anjos, depois com a pessoa que ela pressupõe ser o jardineiro, e finalmente com Jesus. Os versículos de 11-13 constituem uma “costura” do material tradicional e têm importância literal porque enfocam a atenção sobre Maria e provêm um ajuste para o encontro entre ela mesma e Jesus ressuscitado.119

No momento em que Jesus a chama pelo nome – Mariam, ela o reconhece e chama de Rabbuni. É um encontro pessoal. No final da narrativa ela recebe a missão de anunciar aos outros discípulos que ele vai subir ao Pai. O papel de Pedro e dos outros discípulos fica ofuscada frente à mensagem de Maria Madalena. O verso 18 encerra a narrativa do túmulo vazio. Maria anuncia: “Eu vi o Senhor”.Maria de Magdala é dignificada e proclamadora do mistério da ressurreição.120

Ao compararmos Maria Madalena de João 20 com o restante do Evangelho percebe- se a importância das mulheres na comunidade Joanina quando se estabelece um paralelo das figuras masculinas da tradição dos Sinóticos e também estudando o lugar delas dentro dos padrões Joaninos.

119THOMPSON, Mary R. Mary of Magdala: Apostle and leader. New York and Mahwah, N.J.: Paulist Press,

1995. p. 72

120 THOMPSON, Mary R. Mary of Magdala: Apostle and leader. New York and Mahwah, N.J.: Paulist Press,

O fato de Maria Madalena ser a primeira testemunha da ressurreição demonstra que ela era importante na comunidade joanina e para o próprio Jesus. A sua influência perdurou até o século IV no cristianismo primitivo121.

3 MARIA MADALENA NOS ESCRITOS GNÓSTICOS

Os escritos apócrifos e gnósticos surgiram em torno da comunidade que tinha como liderança Maria Madalena. Eles demonstram o papel dela como apóstola no início do cristianismo. Apresentam Maria Madalena como a companheira querida de Jesus a qual recebeu do próprio Mestre os seus ensinamentos. Ela é a preferida de Jesus, embora Pedro e os outros discípulos sejam contrários a essa preferência. Com freqüência desafia Pedro e sai sempre vitoriosa. “É sempre vista como intérprete e reveladora da doutrina gnóstica e como modelo do gnóstico perfeito”122.