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Redes e cadeias de interação na palma da mão

Capítulo 8: A cultura do telemóvel no seio da comunicação em rede

8.3 Redes e cadeias de interação na palma da mão

Como vimos, para os quadros de existência infantis, o telemóvel tomou um papel central na organização do quotidiano, está implicado em referências partilhadas que possibilitam a sincronização da vida diária, dá aso ao desejo de conectividade social, de sentir segurança e que se está próximo de uma rede de relações mais íntima. Fazer uma chamada tornou-se um hábito comum, repetido várias vezes ao dia. As crianças inquiridas presencialmente fazem, em média, 3,56 chamadas por dia. Quanto às comparações entre escalões etários verifica-se uma média maior de chamadas diárias (4,76) entre os inquiridos dos 13 aos 15 anos. Os adolescentes dos 16 aos 18 anos registam uma média de 3,68 chamadas diárias, e é entre os mais pequenos, dos 8 aos 12 anos, que se regista a menor média de chamadas diárias (2,32). Olhando para os percentis, de modo a visualizar os dados de outra forma, verifica-se que 75% das crianças dos 16 aos 18 anos faz até 4 chamadas por dia, enquanto entre os jovens dos 13 aos 15 anos e entre os inquiridos dos 8 aos 12 anos, 75% efetua até 3 chamadas. A tendência para os mais velhos registarem um maior número de chamadas terá a ver com a sua maior autonomia e liberdade, e com a sua inserção numa rede social maior do que a dos mais novos.

Como sublinha Dias (2008), a utilização do telemóvel redefiniu as referências orientadoras da vida, o tempo e o espaço. Neste âmbito, Townsend (2001) avança com a ideia de que o telemóvel veio acelerar drasticamente o ritmo do quotidiano, e pautar a gestão desse ritmo com flexibilidade. É uma ferramenta que permite a gestão de imprevistos e ajustes constantes. Contudo, o telemóvel não está implicado apenas na gestão dos imprevistos, pois, como assinala Vannin (2004), veio deixar a sua marca nos ciclos temporais diários. Telefonar ou mandar mensagens para certas pessoas, todos os dias, de manhã e à noite, são rituais que contribuem para uma conectividade constante e são exemplos da imersão da utilização do telemóvel na manutenção da rotina quotidiana. No que diz respeito à dimensão espacial, a utilização do telemóvel influencia ao mesmo tempo que é influenciada pelos contextos de utilização. Além disso, por trás da sua utilização está um desejo de mobilidade. Permite a capacidade de fazer mais coisas ao mesmo tempo e está implicada na compressão do espaço/tempo do mundo atual. Uma chamada ou mensagem pode substituir uma deslocação no espaço, deixando este de ser visto como uma limitação (Haddon, 2002). Verifica-se igualmente uma justaposição de espaços, o espaço físico mistura-se com o virtual, o espaço privado com o público, pelo que a própria representação de espaço se expande, torna-se mais fluida e múltipla. Uma dada criança ao usar o telemóvel poderá achar-se numa multiplicidade de interações, entre as face-a-face e as mediadas, através da rede móvel. Ao focar-se numa chamada poderá estar presente fisicamente, mas ausente em “espírito”, transferindo sentimentos de pertença do espaço físico (o lugar) para o espaço (social) “virtual” das comunicações móveis. A conectividade com as suas redes sociais próximas permitida por esse espaço virtual e privado transmite-lhe segurança e identificação.

Ling e Yttri (2002) cunharam a noção de “hiper-coordenação” para descrever o uso expressivo e socialmente ativo dos telemóveis pelos adolescentes noruegueses, mas o conceito pode ser generalizado a outros contextos. As crianças, sendo este processo mais evidente no período de adolescência, podem utilizar assim uma “hiper-coordenação” de modo mais ou menos reflexivo, encetando comunicações sociais e emocionais para coordenar e cimentar relações direitas entre pares e mantendo-se em contacto permanente com pais e irmãos. Em ambos os inquéritos, presencial e online, verifica-se que os amigos ultrapassam os familiares no que respeita ao valor subjetivo das, e ao volume de, comunicações efetuadas através da rede móvel. No inquérito presencial, 54,2% das crianças referencia, em primeiro lugar, os amigos e 42,7% referencia os pais como os principais alvos das suas chamadas.

Segundo os dados obtidos online, entre os pais, é com a mãe que uma maior fração de inquiridos costuma comunicar (61,2%), ficando o pai atrás como principal contacto (47,9%), o que indicia fatores de género na divisão doméstica da coordenação familiar e de parentalidade à distância. Além disso, 27% dos inquiridos revela ainda que o namorado ou a namorada é a pessoa com quem mais comunica ao telemóvel e 25,3% refere os irmãos. Quanto às diferenças entre os sexos é curioso constatar que há uma maior percentagem de rapazes que fala com o pai (52,4%), em comparação com 42% das raparigas. Como seria de esperar, a comunicação com os pais é mais relevante para uma maior fração de inquiridos mais novos. É entre estes que a comunicação com os pais por telemóvel, e, em particular, com a mãe (em 65% dos casos), assume maior relevância que a comunicação com os amigos (em 59,2% dos casos). A comunicação com os amigos cresce de peso, enquanto a comunicação com os pais decresce à medida que os inquiridos se vão tornando mais velhos. É entre os mais novos que a mãe é a principal responsável pelo trabalho emocional e coordenativo da família, assumindo o papel de mães à distância, apesar de se viver num contexto onde a figura do pai se aproxima dos filhos do ponto de vista afetivo e onde há uma maior participação dos pais no trabalho emocional da família. O contacto com amigos e namorados ou namoradas está mais ligado à hiper- coordenação, que envolve interações sociais e emocionais, enquanto a comunicação com os pais está mais ligada àquilo que Ling e Yttri (2000) designam de micro-coordenação, isto é, à coordenação prática da vida quotidiana onde se acertam detalhes logísticos como as horas e os locais de encontro. Como declara Dias (2008: 130), a comunicação entre pares “é muito mais rica e complexa (...), um processo no âmbito do qual o mais importante é partilhar experiências comuns com os outros”.

Os amigos são igualmente os principais destinatários das mensagens de texto a julgar pela resposta de 77,3% das crianças. Apenas 17,6% afirma que envia mais habitualmente mensagens para familiares. Comparando as diferentes faixas etárias entre si, existe uma maior percentagem de inquiridos mais novos que enviam habitualmente mensagens de texto para familiares (37%), em comparação com pouco mais de 11% entre os escalões etários mais velhos. Por outro lado, verifica-se uma percentagem maior de crianças dos 16 aos 18 anos que envia mensagens preferencialmente para os amigos (83,7%), em comparação com 63% dos inquiridos mais novos. É ainda de relevar que 45,2% das crianças admite que apenas algumas mensagens são necessárias, 37,1% acha que muitas são necessárias e apenas 14,3% acha que são todas necessárias. À medida que as crianças vão crescendo, maior é a tendência para haver uma maior fração que considera

que muitas ou todas as suas mensagens são necessárias. Claro que esta é a perceção das próprias crianças. A definição do que é, ou não, uma mensagem necessária é subjetiva. O facto de a maior parte dos adolescentes considerar as suas mensagens necessárias advém das necessidades de aprofundar as suas redes de relação, de sentir-se parte integrante dessa rede e de assegurar um espaço de liberdade e autonomia. As mensagens de texto móveis são um palco etéreo alternativo que poderá compensar a falta de lugares físicos e espaços sociais, não monitorizados pelos adultos, onde as crianças, em particular, na fase da adolescência, possam comunicar de forma mais privada com amigos próximos ou namorar.

Como Ling e Ytrri nos relembram, a adolescência é um período único na vida onde os pares têm um papel central. No entanto, o telemóvel é uma ferramenta que veio aprofundar a comunicação no tempo e no espaço e tornou-se, hoje em dia, fundamental na definição de um sentido de pertença. Grosso modo, a comunicação das crianças é regulada pelos pares e/ou pelos pais, dependendo do lugar e da altura do dia. As crianças podem usar as mensagens de texto como um exercício de autonomia, para se escudarem dos olhares dos adultos e reclamarem para si um palco privado em que aprofundam relações afetivas, porque é economicamente vantajoso ou porque podem partilhar uma mesma mensagem com um conjunto alargado de pessoas. Em termos médios, as crianças inquiridas presencialmente costumam enviar diariamente 25,72 mensagens SMS através do seu telemóvel. As crianças do sexo masculino são as que, em média, enviam mais mensagens (26,42 por dia), em comparação com as raparigas que enviam, em média, 19,26 mensagens num dia. São os inquiridos dos 16 aos 18 anos que registam a maior média de mensagens enviadas num dia (33,17), o que contrasta claramente com a média de mensagens enviadas diariamente pelos mais novos (4,65). Este é mais um indicador de que os adolescentes apostam fortemente no telemóvel no aprofundamento da sua rede de relações íntimas. Neste quadro, Peters (1999) salienta que o telemóvel permite-nos ultrapassar as barreiras que se colocavam à comunicação pura permanente, funcionando como uma espécie de varinha mágica que veio materializar um dos desejos mais antigos do ser humano: a reciprocidade enquanto fundadora e sustentadora do indivíduo. Comunicar é existir e existimos para comunicar (reformular-se-ia o cogito cartesiano para “Comunico, logo existo”), pois é na comunicação que nos seguramos no mundo e co- construimos o nosso self. Nesse sentido, o telemóvel reconfigura as relações sociais e o próprio “eu”, atirando-o para uma realização coletiva, resgatando-o da prisão da solidão, realizando-o na co-vivência, no coletivo.

Como seria de esperar a importância das relações afetivas e do namoro no uso do telemóvel aumenta com a idade das crianças. Quanto à utilização para fins relacionais e afetivos das mensagens de SMS, 40,1% dos jovens afirma que já as enviou para namorar e 32,3% aceitou um encontro amoroso através do serviço de mensagens. Ademais, 21,2% dos respondentes confessa que já usou mensagens SMS para seduzir alguém. Parte dos inquiridos também já se serviu das mensagens durante um encontro amoroso que estava a correr mal (em 15,7% dos casos) ou para terminar uma relação amorosa (14,7%). Entre os sexos as diferenças não são muito expressivas: verifica-se uma percentagem ligeiramente superior de rapazes que afirma namorar através de mensagens (41,2%) do que de raparigas (38,9%). Além disso, maiores frações de rapazes afirmam que já aceitaram um encontro amoroso (35,8%) ou que já seduziram alguém por SMS (26,3%), em comparação com 28,5% e 15,7% das raparigas, respetivamente. Também se verificam maiores percentagens de rapazes que já terminaram uma relação amorosa por SMS (17,3%) ou que já enviaram uma mensagem durante um encontro amoroso que estava a correr mal, do que de raparigas (12% e 14,7%, respetivamente).

O uso de mensagens de texto com conteúdo sexual ou sexting é uma forma de os adolescentes experimentarem e aprenderem sobre as vicissitudes dos relacionamentos sexuais. As mensagens são ainda um meio que dá lugar à filtração da comunicação, permitindo ao emissor reflitir na composição da mensagem e, eventualmente, à partilha do seu conteúdo com amigos. Permite igualmente que um jovem evite o embaraço da interação pessoal com o recetor, como no caso de terminar uma relação amorosa. Como seria de esperar, são muito poucos os inquiridos mais novos que utilizam as mensagens SMS para namorar. A percentagem de inquiridos que namora via SMS aumenta bastante entre o escalão etário dos 16 aos 18 anos, chegando aos 68,2%. Neste escalão etário, 57,2% declara já ter aceitado um encontro amoroso e 35,8% que tentou seduzir alguém através do serviço de mensagens. Pouco mais de um quarto dos inquiridos entre os 16 e os 18 anos já terminou uma relação amorosa via SMS ou já enviou uma mensagem durante um encontro amoroso que estava a correr mal. As mensagens de cariz sexual são representativas da logística da entrega das mensagens de texto, que faz parte de um cálculo implícito por parte dos emissores. Como a mensagem não é um objeto físico, como uma nota escrita, evita-se assim a interceção por parte de terceiros. Se o recetor da mensagem responder de modo positivo surge a oportunidade de responder e, talvez, de iniciar um modo de comunicação sincrónico. O ritmo mais pausado da comunicação pode ajudar a evitar dar passos em falso durante os passos iniciais e críticos da interação.

A utilização do telemóvel tornou-se um instrumento imprescindível de micro- coordenação do quotidiano. Essa micro-coordenação é geralmente feita em movimento para avisar se há atrasos, cancelar encontros, entre outras combinações ou recombinações práticas do quotidiano. É uma coordenação das interações diárias que dispensa a necessidade de terminais fixos e centralizados. O motivo mais habitual para utilizar o telemóvel, isto é, referido por uma percentagem maior de inquiridos, é acertar encontros: 54,2% dos inquiridos utiliza o telemóvel, frequentemente ou muito frequentemente, para combinar encontros. A coordenação possibilitada pelo telemóvel é mais flexível que uma coordenação baseada na sincronização prévia e fixa em função do tempo. Entre as crianças inquiridas 30,2% adianta que liga, frequentemente ou muito frequentemente, pelo telemóvel para avisar que está atrasada para uma reunião ou um encontro marcado, enquanto 26,8% liga com a mesma frequência para saber se alguém já chegou a uma reunião ou a um encontro e 26,5% telefona para avisar que chegou a uma reunião ou a um encontro. Estes dados são indicadores das mudanças instituídas pelo telemóvel na vida quotidiana, nomeadamente na suavização e redefinição de horários, encontros e combinações (Lasen, 2001; Ling, 2004). Desta forma, a pontualidade ou a conformidade a horários rígidos torna-se mais fluida. Neste sentido, Geser afirma que o telemóvel “effects a transformation of social systems from the “solid” state of rigid scheduling to a “liquid” state of permanently ongoing processes of dynamic coordination and renegotiations” (2004: 20).

Mas, para além da micro-coordenação, Ling e Yttri defendem que à medida que a utilização do telemóvel aumenta, maior é a utilização desse dispositivo para a troca de conteúdos emocionais e fáticos. Praticamente metade dos inquiridos refere que utiliza frequentemente ou muito frequentemente o telemóvel para saber como estão os familiares e amigos e/ou para conversar sem assuntos concretos com amigos, familiares e conhecidos. Mais de 40% das crianças menciona que saber onde estão os familiares do agregado doméstico e/ou saber onde se encontram outras pessoas da família, motiva frequentemente ou muito frequentemente as chamadas por via móvel. Outra motivação que leva, frequentemente ou muito frequentemente, 38,7% das crianças a efetuar uma chamada é conversar sobre assuntos afetivos ou amorosos. A partir destes dados podemos perceber o alcance do uso expressivo dos dispositivos de comunicação móvel. Mais de que meras ferramentas, constituem uma forma de apresentação do “eu” e de expressão das emoções e identidades dos agentes infantis.

8.4 A dimensão simbólica e os novos sentidos sociais da