A ligação entre o universo das redes e do universo das rendas em Raposa é tão forte,
que foi objeto de estudo da dissertação Onde há rede, há renda (SOARES, 2011), defendida
na Universidade de Brasília. Nela, a autora analisa as relações de gênero entre pescadores e
rendeiras, com o intuito de acessar as formas de relações entre estes, em suas atividades
manuais com linhas.
Em Raposa, enquanto as rendeiras tecem e vendem suas rendas, seus maridos,
pescadores, estão ou em alto-mar, ou nos portos, numa roda de conversa, contando as proezas
vividas na última pesca. Ao chegarem em casa, contam essas histórias, vividas por si mesmo
ou por algum outro pescador, para suas esposas, e começam a remer (COSTA; SEABRA,
2015) e entralhar (COSTA; SEABRA, 2015, p. 161) suas redes para a próxima pesca.
Antigamente, as rendeiras, além de fazerem rendas, ajudavam seus maridos a entralhar
suas redes. Com o crescimento do comércio da renda, essa atividade passou a ser quase que
exclusivamente dos pescadores. São poucas as que ainda tecem redes.
Como eles costumam realizar essa atividade nas portas de suas casas, ao caminharmos
no Corredor das Rendas, é comum observarmos as rendeiras tecendo suas redes e os
pescadores entralhando suas redes, de modo harmônico, no mesmo espaço.
Sobre essa convivência de redes e rendas, Soares (2011, p.88) destaca:
O mar é deles, mas a rua é delas e deles também. O terraço de casa é delas e deles, as linhas são delas e deles, o tecer de ambos. Se ele está na pesca, no mar como território legítimo de conformação de sua pessoa, ela está em casa e é dela seu interior; os apetrechos, os móveis [...] Todo o território legítimo de afirmação de sua pessoa. Mas a porta da rua é de ambos. O vento, as tardes, os terraços, as agulhas, as linhas, habilidades e o calor também o são.
Além de conviverem no mesmo espaço, as redes e rendas nos remetem a um
interessante ponto de intercessão: são ambas atividades que envolvem o ato de tecer. Como
explicitado no item anterior, as rendeiras tecem as linhas nos bilros afim de fazerem rendas. Já
os pescadores tecem as linhas de náilon para fazerem suas redes. Soares (2011, p.62)
considera que:
O tecer, nesse sentido, atua como um princípio que repercute na existência do remendar e do trocar. Portanto, a tendência no caso de Raposa estaria demonstrada pelas lógicas comuns que operam a manipulação conjunta de linhas (entre pescadores e rendeiras). É sob a lógica da tendência, da disseminação de modos semelhantes de ação sobre a matéria, que podemos explicar o fato de que “onde há
rede, há renda”. Afinal, são produtos absolutamente distintos, mas processos
Soares (2011, p.1 a 8) vê, assim, uma relação intrínseca entre as duas atividades:
Poderíamos afirmar que a renda é uma pequena rede. As redes de pesca são tecidas por homens e eventualmente por mulheres. No passado, antes do desenvolvimento do comercio de rendas, as mulheres só teciam redes, agora passaram a produção quase exclusiva de rendas, deixando para os seus maridos os cuidados com as redes. Dessa forma vemos claramente uma proximidade, uma adequação técnica, um encaixe entre homens e mulheres.
Outra questão muito interessante no que tange as redes e rendas é que, embora sua
feitura seja uma atividade artesanal, tanto os pescadores quanto as rendeiras as desenvolvem
com muita criatividade, tanto do ponto de vista da atividade em si, quanto do ponto de vista
lexical. As rendas têm uma diversidade de pontos, cada um com sua característica e com as
mais diversas denominações, como paninho de meio trocado, pano, pano cheio, pano corrido
no meio, pano de meio trocado, pano de trocado inteiro, pano ticido, papelão picado,
priquitinho, priquitão, ponto de fora, ponto inteiro, trocadinho, trocado, trocado cheio,
trocado completo, trocado d’água, trocado fechado, trocado inteiro. As rendas podem ser
renda de bico, renda de birro ~ renda de biurro, renda de metro, renda fina, renda graúda,
renda grossa, renda renascença.
Os pescadores, por sua vez, são criativos não somente nas muitas formas de pescar,
como curral e espinhel, como também nas denominações dadas às marés com as quais
convivem no ato da pesca (COSTA; SEABRA, 2015). Costa e Seabra (2015, p.113), a esse
respeito, destacam:
[...] a alta capacidade criativa dos pescadores de Raposa, visto que os nomes de redes, formados com o sufixo -era (carumipinzera, gozera, pescadera, pitiuzera, serrera, tainhera) e dos nomes compostos das marés (maré cheia, maré de crescimento, maré de enchente, maré de lançamento, maré de quarto, maré de quebramento, maré lançante, maré seca e marezão de lua) [...] não se encontram dicionarizadas no glossário de Santos (2010), um trabalho recente que também versou sobre o léxico da pesca.
Costa (2012, p. 113) ainda ressalta:
No que se refere aos nomes das redes, verificamos que os pescadores de Raposa as nomeiam de acordo com os peixes que elas se destinam a pescar (camurupim/camurupinzera; gó/gozera; pescada/pescadera; pitiu/pitiuzera; serra/serra – serrera; tainha/tainhera), denominações estas não localizadas por nós na literatura.