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Redobro de ‘lá’ e suposta perda de significado locativo

2.2 ‘Lá’ em Spec,TopP

2.2.2 Problemas com a análise de ‘lá’ em Spec,IP

2.2.2.1 Redobro de ‘lá’ e suposta perda de significado locativo

O redobro é usado como evidência para o “esvaziamento semântico” do ‘lá’ inicial. Contudo, observa-se que a reduplicação adverbial só é viável com ‘lá’ e, portanto, ‘lá’ inicial é incompatível com ‘aqui’ ou ‘aí’ (1b, 2b) em posição final.

(1) b. Lá vem a Maria *aqui/*aí/lá59. (2) b. Lá tinha um trem *aqui/*aí/lá.

Ora, se ‘lá’ inicial fosse vazio de valor locativo, ele poderia coocorrer com qualquer item adverbial em posição final.

Ainda, quanto ao valor locativo de ‘lá’, é importante notar que o verbo ‘vir’ rejeita ‘lá’ como argumento circunstancial de direção alvo (1c). Para direção alvo, somente ‘aqui’ e ‘cá’ seriam aceitos.

(1) c. A Maria vem cá/aqui/*lá muito raramente.

Com isso, conclui-se que o uso de ‘lá’ em posição pós-verbal, como argumento de ‘vir’, só é gramatical se ‘lá’ tiver valor locativo de fonte/origem (1d, e).

(1) a. Lá vem a Maria.

d. Está vindo a Maria (de) lá. e. Vem a Maria (de) lá.

59 ‘Lá’ é incompatível com ‘aqui’ e ‘aí’ finais, nas estruturas com ‘vir’, quando estes advérbios forem interpretados com valor semântico de fonte, mas não quando ‘aí’ e ‘aqui’ tiverem valor de “meio” ou quando ‘aqui’ tiver valor de “alvo” (cf. seção 2.2.4).

Assim, a única razão que justificaria a gramaticalidade de ‘lá’ com ‘vir’ em (1a) seria a interpretação do ‘lá’ inicial como fonte locativa de ‘vir’ à semelhança do ‘lá’ em (1d, e). Porém, em (1a), ‘lá’ está em posição de tópico, em vez de argumento, e sem a preposição ‘de’, que pode ser omitida mesmo em posição final (1e).

Outro argumento que confirma o valor de fonte locativa de ‘lá’, em (1a), é a sua incompatibilidade com o item Wh ‘onde’. A incompatibilidade entre ‘onde’ e ‘lá’ (1f) se evidencia porque ‘lá’ já informa a localização. Portanto, é inócuo fazer uma pergunta sobre fonte, se a fonte já está explicitada.

(1) f. *(De) onde lá vem a Maria?

Além disso, é importante observar que ‘lá’ não pode ser substituído por ‘aí’, sem causar alteração no conteúdo proposicional da sentença. Em (1g), por exemplo, a Maria vem de uma direção relativa à 2ª pessoa, enquanto em (1a), a Maria vem de uma direção relativa à 3ª pessoa. Portanto, ao usar ‘aí’, indica-se que o lugar de onde vem a Maria está mais próximo do ouvinte (e do falante). Por outro lado, ao usar ‘lá’, indica-se que o lugar de onde vem a Maria está mais distante do ouvinte (e do falante).

(1) a. Lá vem a Maria. g. Aí vem a Maria.

Por fim, é importante mencionar que, em diferentes variantes regionais do PB, ‘vir’ pode ser precedido por ‘em’, ‘im’, ‘ê’ ou ‘é’, como nos seguintes exemplos:

(1) h. “Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem” (Trem das 7, Raul Seixas60).

i. “Lá ê vem a moça dos cachos dourados”61. j. “Lá em vem outra história ... né?!”62.

60 Disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48335/>. Acesso em: 18 jul. 2010. 61 Disponível em: <http://abridordelatas.wordpress.com/2008/06/>. Acesso em: 09 jun. 2010. 62

k. “E naquele embalo que eu im vinha, quando eu moitei pra passar no vão do arame, acho que eu baxei demais ... e veio uma ferpa e pregô, aí vazô” (O Causo do Porquinho, Geraldinho63).

‘Em’, ‘im’, ‘ê’ e ‘é’ são variações do mesmo agrupamento fonético completamente destituído de conteúdo semântico no português contemporâneo. Nossa hipótese é que essas variantes consistem em retenções do advérbio ende64 (português arcaico) < ĭnde (latim), que, segundo Sanchéz Lancis (2001), expressava origem de movimento (‘de lá’).

Além disso, de acordo com Mattos e Silva (1989, p. 238), ‘ende’ também resultou na forma partitiva ‘en’ do francês (7), que é pré-verbal e enclítica à semelhança dos exemplos (1h - k).

(7) J'adore les fruits et j'en mange beaucoup65. Eu adoro as frutas e eu PART como muito Adoro frutas e como bastante.

Considerando-se essa provável razão de ser de tais clíticos completamente destituídos de sentido no PB contemporâneo, sugerimos que ‘lá’ é inserido em posição inicial como uma forma de suprir e enfatizar a noção de fonte locativa já ausente nesses agrupamentos fonéticos. Por isso, é possível a coocorrência66 dos dois locativos (‘lá’ e retenções de ‘ende’) em (1i, j).

Em suma, ‘lá’, antecedendo os verbos ‘ter’ e ‘vir’, é sim locativo, pois é incompatível com ‘aqui’ e ‘aí’ finais. Além disso, ‘lá’ com ‘vir’ indica fonte, como se confirma pela sua incompatibilidade com o Wh ‘onde’. Adicionalmente, confirma-se que ‘lá’ é um locativo distal

63 Transcrevemos apenas o trecho relevante da narração oral disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=6DKawUuMA6o>. Acesso em: 18 jul. 2010.

64 Agradeço ao Prof. Ian Roberts por ter apontado, em comunicação pessoal, a correlação com ‘ende’ na análise desses dados.

65 Disponível em: <http://pattypatchs2.unblog.fr/2010/03/31/10eme-bon-conseil/>. Acesso em: 19 jul. 2010. 66 Tendo observado a possibilidade de ocorrência de ‘lá’ com ‘em’, ‘im’, ‘ê’ e ‘é’, o que podemos supor a respeito dos dados de (i) a (iii) é que eles resultam, muito provavelmente, de processos fonético-fonológicos de supressão, adição ou alteração. Sendo assim, tornam-se possíveis não somente as pronúncias nos dados de (i) a (iii), como também ‘él’aía’ para “ela lá ia”, “‘êl’invin(ha)” para “ele lá im vinha”, “él’évem” para “ela lá em vem”, dentre outras.

(i) “lei-vou; lei-ia; lei-vinha” (NUNES, 2007, p. 29).

(ii) “lei-vai/lai-vai; lei-vem; lei-vinha” (NUNES, 2007, p. 29).

de 3ª pessoa, pois não pode ser substituído por ‘aí’ sem alteração no conteúdo semântico da sentença.

Diante do que foi exposto, pode-se concluir que a posição inicial de ‘lá’ tanto em (1a) quanto em (2a) estaria muito mais vinculada a questões discursivas relativas a ênfase e a topicalização do que a uma suposta destituição de seu valor locativo.

2.2.2.2 A ordem [XP V (DP)]

Embora Buthers (2009) defenda que ‘lá’ estaria ocupando a posição canônica de sujeito em (1a) e (2a), acreditamos que seja mais plausível uma análise desse advérbio no domínio do CP. A primeira razão já foi apresentada acima e tem a ver com o fato de que ‘lá’ não é vazio semanticamente para atuar como um expletivo.

A segunda razão é que, apesar das aparências, ‘lá’ não está no domínio do IP, mas mais alto, em posição de tópico, por veicular informação dada e por permitir recursão de tópico, como será explicado adiante.

Quanto ao estatuto de ‘lá’ como informação dada, (1a) e (2a) não são sentenças construídas necessariamente para informar a localização de algo. Por isso, elas respondem, respectivamente, às perguntas (8) e (9), que se concentram no evento, mas não às perguntas (10) e (11), que se concentram na localização das entidades. As respostas mais adequadas para (10) e (11) seriam, respectivamente, (10B’) e (11B’). Sendo assim, pode-se entender que ‘lá’ traz informação dada e tópica em (1a) e em (2a).

(8) A: O que está acontecendo? B: (1a). Lá vem a Maria. (9) A: O que tinha lá?

B: (2a). Lá tinha um trem lá. (10) A: De onde está vindo a Maria?

B: (1a). *Lá vem a Maria (não é uma resposta adequada para (10)). B’: De lá.

B: (2a). *Lá tinha um trem lá (não é uma resposta adequada para (11)). B’: Lá.

Além disso, é possível a recursão de tópicos. Assim sendo, o DP, localizado inicialmente em posição pós-verbal, pode ser alçado para o domínio do CP a uma posição de tópico mais alta que aquela onde ‘lá’ está (1l). Portanto, esse DP precisa passar pela posição de Spec,IP até alcançar a Spec,TopP (cf. figura 1, seção 2.2.3). Se ‘lá’ estivesse em Spec,IP, o DP não poderia passar por essa posição.

(1) l. A Maria lá em vem.

Em suma, por veicular informação dada e por possibilitar recursão de tópico, somos levados a concluir que a posição pré-verbal de ‘lá’ não constitui indicação de pertencimento ao domínio do IP, mas ao domínio do CP.