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As políticas públicas20 vêm sendo alvo de análises e estudos que privilegiam reflexões e olhares específicos sobre determinados momentos de elaboração e execução, denominados estágios ou fases da política. Baptista e Rezende (2011), sem a intenção de esgotar o debate sobre o assunto, traçaram um caminho para auxiliar a compreensão das potencialidades e limites desses modelos analíticos, pautados no entendimento da construção histórica dessa divisão do processo político em etapas. Para as autoras, esse processo teve início nos séculos XIX e XX, simultaneamente à construção do próprio campo da análise, inserido, por sua vez, em um contexto racionalizador do Estado fundamentado nas leis das ciências naturais. No pós-segunda guerra, privilegiou-se como referências a redução de risco e a ampliação de certezas.

Pesquisadores precursores desse enfoque nas décadas de 30 e 40, como Harold Lasswell, propuseram uma abordagem unificando as áreas de conhecimento da sociologia, psicologia, administração e ciência política. Posteriormente, essa abordagem foi modificada por Simon, que incluiu outros elementos como escolhas humanas e tomadas de decisões administrativas na especificação de problemas organizacionais, e é dividida em três fases: inteligência, desenho e escolhas.

Mais tarde, Lasswell, mantendo a noção de desenvolvimento lógico e linear restrita ao âmbito governamental, expandiu para sete estágios: informação, promoção, prescrição, invocação, aplicação, término e avaliação. Esse modelo foi alvo de críticas, em especial as que apontaram o viés restritivo da política pública nos limites do aparelho estatal. Um dos principais críticos ao caráter racional, administrativo e funcional com etapas estanquizadas foi Lindblom, que apontou a necessidade de uma análise que considerasse o poder e a interação entre as fases. Destacou que “o processo político e decisório é um processo interativo e complexo sem início ou fim” (LINDBLON apud BAPTISTA; REZENDE, 2011, p. 140). Na década de 70, ainda sem rupturas à abordagem de Lasswell, agregaram- se novas críticas à linearidade ou noção de ciclo definido quando Brewer introduziu a ideia de ciclo contínuo.

O quadro elaborado por Baptista e Rezende (2011, p. 141) sintetiza essas mudanças.

20 Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (1995), a política pública é definida por um conjunto de disposições,

medidas e procedimentos que traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas às tarefas de interesse público, atuando e influindo sobre as realidades econômica, social e ambiental; podem variar de acordo com o grau de diversificação da economia, com a natureza do regime social, com a visão que os governantes têm do papel do Estado no conjunto da sociedade e com o nível de atuação dos diferentes grupos sociais, partidos, sindicatos, associação de classe e outras formas de organização da sociedade (VIANNA; BAPTISTA, 2009, p. 60).

Figura 1

Nos anos 90, Howlett e Ramesh, a partir do modelo denominado “Improvement model”, trouxeram sistematizações para as fases processuais da política pública estabelecendo a ideia de fluxo contínuo, que é a perspectiva mais utilizada nas análises contemporâneas (ibidem, p. 142).

Figura 2

São apontadas vantagens dessa perspectiva, como a percepção da existência de momentos e especificidades no processo de sua construção, ampliando o conhecimento e a possibilidade de intervenção. As desvantagens, mesmo com o olhar cuidadoso de analistas, são descritas como a inevitável fragmentação, tratamento estanque, previsibilidade, bem como neutralidade. Nesse modelo de ciclo contínuo que utilizaremos como referencial para a pesquisa empírica após as fases de montagem da agenda e da formulação da política e tomada de decisão, temos a fase / momento de implementação.

Vianna e Baptista (2009) também refletem sobre a ideia de ciclo da política em suas fases de formulação e tomada de decisão e sua relação com a fase de implementação:

Dificilmente todas as decisões relevantes são tomadas durante as fases de formulação e tomada de decisão, isso porque muitas definições envolvem conflitos, negociações e compromissos com interesses antagônicos; outras resoluções só podem ser tomadas quando todos os fatos estão à disposição dos implementadores (muitas vezes há falta de informação sobre os processos envolvidos); por fim, no processo de formulação e decisão ainda há conhecimento limitado sobre o impacto efetivo das novas medidas propostas. Por essas e outras razões, muitas decisões são adiadas para a fase de implementação, o que também, para os analistas, traz prejuízos para o desenvolvimento de uma política (ibidem, p. 68)

A implementação, objeto dessa investigação, pode ser definida como “o momento de colocar uma determinada solução em prática”, e envolve um conjunto de sistemas compostos pelo sistema gerencial e decisório, de informação, agentes implementadores da política, logísticos e operacionais (recursos materiais e financeiros), todos esses considerados estratégicos (BAPTISTA; REZENDE, 2011, p. 149).

Nesse contexto de convergência não se deve concluir que esta seria uma fase administrativa e sim “(...) como o momento crucial no ciclo da política, isto porque nesta fase novas formulações podem ser feitas e decisões tomadas na fase anterior podem ser

modificadas ou mesmo rejeitadas, alterando inclusive o argumento principal da própria política” (VIANNA; BAPTISTA, 2009, p. 68).

Ao contrário do enfoque top-down que pressupõe um controle total central por parte dos formuladores da política, ou do bottom-up, que atribui esse poder ao nível concreto de sua execução, optamos por aplicar uma abordagem multicausal que envolve múltiplos atores, estratégias e interesses capazes de modificar, impactar e até mesmo colocar em xeque a própria política previamente formulada.

A implementação pode ser comparada a um jogo em que uma autoridade central busca convencer outros agentes a colocar em prática os planos previamente formulados. As negociações então estabelecidas através de mecanismos de aceitação, neutralidade ou rejeição por parte dos agentes implementadores vão determinar conflitos ou pactos e impactar a implementação. “Assim, o desafio é reconhecer a implementação como algo que não necessariamente se atrela a questões da política oficial, mas a aspectos políticos, culturais e sociais que permeiam as práticas” (ibidem, p. 151).

Estendendo essa ideia para a pesquisa, tomamos como hipótese que as concepções e conhecimentos dos agentes implementadores da PASS/SIASS tendem a determinar configurações e práticas que poderão se aproximar ou não do modelo de atenção ao trabalhador preconizado pela PASS, pela PNSST e pela PNSTT. E, ainda, que as concepções e os conhecimentos das equipes multiprofissionais são influenciados pelas próprias características de sua composição, pela formação, capacitação e experiência profissional de seus membros, entre outros elementos. Assim, incorporo a pergunta crucial para a análise do momento de implementação sugerida por Baptista e Rezende (2011, p. 153): “Os atores envolvidos na implementação estão de acordo e compreendem a política traçada?”. Pretendi agregar a esta pergunta, como questão inicial da minha investigação, a indagação sobre quais concepções das relações saúde-trabalho e seus diferentes enfoques já previamente delimitados teórico-conceitualmente para o campo poderiam se apresentar como referência para a política de saúde dos trabalhadores da APF.

Assim, esse estudo se insere no campo das análises de políticas públicas, utilizando como grade analítica o modelo de ciclo da política proposto por Howlett e Ramesh (1995, apud BAPTISTA e REZENDE, 2011), e tendo como foco os agentes implementadores dessa política, cotejando os resultados com os princípios da PASS. Optamos pela metodologia qualitativa, capaz de responder a questões particulares principalmente por operar com percepções, valores, atitudes, conhecimentos e crenças, ou seja, correspondendo a um espaço mais profundo das relações.

Segundo Minayo e Deslandes (1996, p. 22), a pesquisa qualitativa emerge da impossibilidade de investigar e compreender, através apenas de dados estatísticos, alguns fenômenos ligados à percepção, intuição e subjetividade, estando direcionada para investigação de significados das relações humanas e em que suas ações são influenciadas pelas emoções e/ou sentimentos aflorados diante das situações vivenciadas no dia a dia. As ciências sociais preocupam-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado, porém a autora alerta que os dados qualitativos e quantitativos não se opõem e sim se complementam, excluindo dicotomias e interagindo dinamicamente na abrangência da realidade.

Dentre as correntes teóricas que balizam e influenciam a metodologia qualitativa nas ciências sociais21, o pensamento sistêmico pode ser uma forma de ver a realidade e articulá-la, fazendo enxergar as interações; subverte a mente compartimentalizada, buscando fazer as diferenças e as oposições se comunicarem. O método escolhido para o desenvolvimento dessa pesquisa foi o Estudo de Caso, que pode possibilitar compreender melhor a variedade de comportamentos e concepções subjetivas das pessoas.

Vários autores discorrem sobre o Estudo de Caso (BECKER, 1997; GOMES, 2008; KEEN, 2009). Becker (1997) destaca que o termo Estudo de Caso teve seu berço na abordagem biomédica, porém nas ciências sociais tem como propósito não só a compreensão abrangente de fenômenos amplos e variados de grupos, organizações institucionais e comunidades mas inclui a busca de desenvolvimento teóricos gerais sobre regularidade de processo e estrutura sociais. O método possibilita aquisição de conhecimento intenso do fenômeno com exploração intensa de um único caso. Ainda segundo este autor nos objetivos do Estudo de Caso é citada a importância da preparação para lidar com um leque de problemas teóricos e descritivos valendo-se da incorporação desses variados fenômenos nas observações e na relevância teórica no relato do grupo. O Estudo de Caso pode pressupor uma meta abrangente e que, mesmo não alcançada, tem consequências importantes e úteis, ou seja, pode dinamicamente preparar o investigador para lidar com descobertas inesperadas e exigir uma reorientação do estudo à luz de tais situações, levando-o a considerar múltiplas inter-relações dos fenômenos que observa. “Evita que se façam pressuposições que podem se revelar incorretas sobre questões que são relevantes, ainda que tangenciais, para os seus interesses principais. Os fatos em si servem como guias para as pressuposições” (ibidem, p. 119).

Keen (2009) destaca que esse tipo de método pode ter como abordagem o estudo empírico da implementação de políticas:

Estudos avaliativos empíricos estão centrados na atribuição de um valor à mudança de uma intervenção ou política. As evidências empíricas são usadas para ajudar as equipes a formarem julgamentos sobre a propriedade de uma intervenção e se os resultados e desfecho dela são justificados por seus “inputs” e processos. Perguntar aos participantes sobre suas experiências e observá-los em reuniões e em outros ambientes de trabalho pode oferecer dados ricos para relatos descritivos e explicativos subsequentes (ibidem, p. 128).

Dando continuidade nesse contexto, é afirmado que os estudos de caso se apresentam também como relevantes quando uma mudança política estiver ocorrendo desorganizadamente em relação ao mundo real e quando for importante a compreensão do desfecho de medidas intervencionistas, pois muitas intervenções dependem do perfil e do grau de envolvimento de várias partes e atores interessados, bem como da inter-relação tanto em seu caráter colaborativo como conflituoso (idem).

Esse autor destaca a importância da seleção detalhada de sítios de pesquisa para a busca de probabilidade na produção de respostas principais da pesquisa levando em consideração o fato de nunca ser possível estudar todos os ângulos de uma atividade ou sítio, ou seja, o ideal seria se aproximar de um recorte mais adequado ao objeto da pesquisa. Geralmente, os estudos de caso que investigam a implementação de políticas podem ter caráter prospectivo em um determinado período de tempo, sendo iniciado com a identificação de perguntas (roteiro) que normalmente emergem de reflexões, questionamentos, interesses e experiências prévias a respeito dessa nova política. Enfim, problematizando não só os efeitos desejados ou indesejados, mas também além dos aspectos e das relações importantes que afetam o desfecho como um todo.

Para a pesquisa em pauta, abordei duas unidades de saúde do SIASS, lócus operacionalizador da PASS no Estado do Rio de Janeiro, sendo uma dessas implantada em órgão do Ministério da Saúde e atuando no momento com profissionais desse ministério, e outra implantada em órgão do Ministério da Previdência Social – Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Tal escolha se justifica porque, como hipótese complementar, tendo em vista tanto as diferenças no processo de inserção histórico-política quanto as atuais competências delimitadas legalmente frente às relações saúde e trabalho para os dois ministérios, pressupomos que encontraremos concepções que se diferenciem ou se assemelhem, ou talvez se apresentem com algum caráter complementar.

Foi excluída a unidade do SIASS onde a pesquisadora atua, com o fim de evitar uma suposta intenção dos entrevistados de corresponder às expectativas desta (embora estejamos cientes da possibilidade de tal fato ocorrer mesmo em outras unidades). Não houve a intenção de generalização dos resultados, mas sim utilizá-los como elemento facilitador de compreensão de uma questão maior, qual seja, o potencial de

interferência/transformação dos conhecimentos de determinados sujeitos/atores na efetividade da implementação da PASS.

A principal técnica de coleta de dados utilizada na pesquisa foi a entrevista em sua modalidade semiestruturada. Segundo Minayo (2010, p. 261), a entrevista é acima de tudo uma conversa a dois, ou entre vários interlocutores, realizada por iniciativa do entrevistador, destinada a construir informações pertinentes para um objeto de pesquisa, e com abordagem pelo entrevistador de temas igualmente pertinentes tendo em vista esse objetivo. A modalidade de entrevista semiestruturada é apontada como diferindo somente em grau em relação à não estruturada e por obedecer a um roteiro com questões sequenciadas facilita a abordagem assegurando de certa forma que os pressupostos iniciais serão cobertos. No entanto, na pesquisa houve espaço para comentários gerais dos entrevistados, bem como a atenção e um olhar cuidadoso para explorar estruturas relevantes como documentos específicos das unidades, observação do local e das condições de trabalho da equipe, de reunião de equipe da realização de ações específicas.

O roteiro previamente estabelecido para pesquisa foi separado em três segmentos específicos, sendo o primeiro de identificação geral da unidade com quatro itens básicos, o segundo com a descrição preliminar de dados gerais do entrevistado contando com oito itens e o roteiro semiestruturado com 19 itens (anexo 14).A entrevista foi aplicada a todos os profissionais da equipe multiprofissional das duas unidades do SIASS após explicitação dos objetivos da pesquisa e concordância e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE, anexo 15) de acordo com a resolução n.° 466 de 12/12/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos.

Foi também utilizada a técnica de observação participante, o que de certo modo enriqueceu a proposta, pois pela sua importância na pesquisa qualitativa é apontada por autores como um método em si mesmo. Segundo Minayo (ibidem, p. 275), Malinowski, antropólogo clássico, “valoriza o processo de observação direta, distinguindo-o dos outros momentos do trabalho de campo, como os de depoimentos dos entrevistados e dos de interpretações e inferências do pesquisador”.

A proposta de análise dos dados obtidos foi a análise de conteúdo, que teve seu berço nos EUA na primeira metade do século XX através de um enfoque quantitativo, porém historicamente tem oscilado entre o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade da subjetividade. Bardin conceitua análise de conteúdo:

Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos

relativos às condições de produção / recepção destas mensagens (BARDIN, 1979 apud MINAYO, 2010).

No nosso contexto de pesquisa, privilegiamos a análise temática que tem como conceito central o tema, ou seja, os núcleos de sentido que compõem um texto (semelhança temática) após cumpridas as etapas de identificação de unidades de registro e de contexto, bem como de categorizações criadas a posteriori, seguindo as etapas de inferência e interpretação.

6 – RESULTADOS

Neste capítulo descreveremos os campos, apontando sua vinculação institucional e traçando o perfil das equipes que atuam nas duas unidades do SIASS. Em seguida, apresentaremos e discutiremos os resultados da pesquisa.