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Depois de sete anos a contar os dias para poder voltar à “minha ilha”, e depois de sete anos a achar que podia mudar o mundo quando voltasse, finalmente percebi que o único mundo que iria conseguir mudar era o dos clientes e famílias com quem trabalhei, e esse sim, é um mundo importante, mas desafiante, de mudar.

Depois de um primeiro contacto com a AACCNEE do Concelho de Velas percebi que havia, até então, testemunhado apenas realidades quase utópicas, comparativamente àquela vivida numa pequena instituição, de um pequeno Concelho, numa pequena Ilha no meio de um Arquipélago muitas das vezes lembrado apenas pelo seu valor turístico. Sorte a minha, ter “apanhado o barco” da AACCNEE num momento de abertura a reformulações e mudanças, e sorte a minha ter tido a oportunidade de fazer parte, e impulsionar, grande parte dessas mudanças. Mas vamos por partes.

Sem nunca ter contactado diretamente com populações no campo das DID, o medo, a hesitação e o nervosismo eram alguns dos sentimentos que ocupavam a minha cabeça no primeiro dia. Depois de ter feito voluntariado com população sénior, um estágio de Licenciatura em Intervenção Precoce, pareceu-me estimulante experimentar a intervenção junto de um tipo de população díspar, impossível de prever, e completamente novo. Com plena noção que, além de todas as dificuldades físicas de estar longe do acesso direto à orientação académica, das fontes de informação e das oportunidades de formação, iria ter que enfrentar uma mentalidade, talvez retrógrada, ou convencional, diferente daquela a que fui ensinada a pensar durante os quatro anos de formação em Reabilitação Psicomotora, e esse sim, foi um dos principais desafios de todo o Estágio.

Enfim, no primeiro dia na instituição, ainda fora do calendário académico, em regime de voluntariado, e supostamente, apenas para observar, conhecer os clientes e as suas histórias de vida, e integrar-me do método de funcionamento da instituição, na realidade, comecei a intervir diretamente com os clientes desde esse primeiro dia. Expetativas, mil. Receios, milhões.

Tendo funcionado durante muitos anos como uma Escola de Educação Especial, coordenada por Professoras de Educação Especial, o método e o trabalho de mesa permanecia muito semelhante. Com as mesmas funcionárias há cerca de vinte anos, e apenas com alterações ao nível das diferentes Direções que entravam e saiam, sem uma coordenação e, especialmente, sem formação constante, o CAO foi perdendo “a vida”, os clientes de maior autonomia desistiam frequentemente após alguns meses e mantinham- se constante apenas os clientes com menor grau de autonomia. Deixaram de existir avaliações, Planos de Intervenção Individuais, acompanhamento familiar e o CAO de Velas “habituou-se” a uma rotina pouco estimulante, de trabalhos de mesa, higiene e alimentação, dentro das quatro paredes da associação. Nos últimos anos foram vários os Técnicos que passaram pela instituição, em regime de Estágios ou ao abrigo de Programas de Apoio ao Emprego do Governo dos Açores, no entanto, poucos ou nenhuns tentaram ficar após o término das suas obrigações. Talvez por falta de força de vontade para tentar mudar algo que parecia imutável. Há vinte anos que as mesmas funcionárias realizavam o mesmo tipo de atividades com os mesmos clientes, com os mesmos materiais, nas mesmas instalações, e isso parecia ter-se tornado uma realidade inalterável na AACCNEE. As frases “será que isso vai valer a pena” ou “ele(a) nunca vai conseguir” foram das mais ouvidas no início do meu percurso. Havia, e ainda há, muita coisa a fazer e um percurso longo a percorrer.

Após ter completado o mês de Julho, em regime de voluntariado a meio-tempo, comecei, oficialmente, o Estágio no dia 1 de Setembro de 2015, e comigo, começou também a nova Coordenadora, anteriormente apenas Técnica Superior de Atividade

Física, também a tempo parcial, com inúmeras reformulações desde o funcionamento interno do CAO, ao tipo de trabalho desenvolvido com os clientes, tendo como principal objetivo dar uma volta de 180º na forma como a AACCNEE funcionava até então. A juntar a estas novas ajudas em termos de Recursos Humanos, a AACCNEE alterou a sua morada para as novas instalações, cedidas pela Santa Casa da Misericórdia de Velas, completamente remodeladas e adaptadas a pensar na tipologia dos clientes da AACCNEE, e também, com um espaço físico para abrir uma nova valência da Instituição – Lar Residencial. Estas novas “lufadas de ar fresco” pareceram ser os impulsos ideais para se iniciar então um ponto de viragem na vida dos clientes da Instituição.

À minha responsabilidade ficou então, além do apoio à Coordenação em todos os aspetos burocráticos que as mudanças acarretaram, toda a Avaliação, Planeamento e elaboração dos Planos Individuais de Intervenção e Planeamento e Dinamização, não só das sessões de Intervenção Psicomotora nos mais variados contextos (ginásio, meio aquático, snoezelen), como também de algumas das Oficinas que agora faziam parte da organização semanal dos clientes (e.g.: Expressão e Movimento, Relaxamento e Massagem). Assim, e fugindo um pouco aos objetivos estabelecidos pelo Regulamento do RACP para os primeiros meses de Estágio e à complexificação gradual de observação para intervenção, passando por uma fase de observação participada, a intervenção direta começou desde o primeiro dia. Desde a escolha dos instrumentos de avaliação, à elaboração e obtenção dos consentimentos informados, ao planeamento de toda a intervenção, não houve, de forma alguma, mãos a medir. Aqui, não pode deixar de ser mencionado que, pelo facto de a Coordenadora ter percebido que podia confiar-me as decisões no que toca à Avaliação, Planeamento e Intervenção, senti uma responsabilidade acrescida para a qual, no início, achei não estar preparada, mas que, eventualmente, fui aprendendo, com a prática, a lidar.

Um dos meus receios iniciais era “arranjar uma maneira de chegar” às funcionárias mais antigas da instituição sem trespassar nenhum sentimento de soberania da minha parte, e sem despoletar nelas também sentimentos de “improficiência”. A verdade é que, eu tinha imenso a aprender com todos os funcionários, mas eles também tinham imensas coisas a aprender comigo, e este equilíbrio de saberes parecia-me uma realidade difícil. No final, foi, e ainda é, mais fácil do que o esperado. A verdade é que, para todos os funcionários, completamento habituados às mesmas rotinas há mais de vinte anos, foram meses difíceis de readequações, mas encarados por todos, à partida, de uma forma positiva e enriquecedora.

Outro desafio a ultrapassar: a participação da AACCNEE na comunidade. Depois de muitos anos longe dos olhares das pessoas, com mentalidades tradicionais, pensou- se que seria complicado fazer melhorias ao nível da participação dos clientes e da instituição na comunidade, outro receio, pelo menos no nosso caso, facilmente desmistificado. Evoluindo rapidamente de uma postura passiva de observação atenta para uma postura ativa de entreajuda e questionamento as pessoas da ilha de São Jorge começaram a querer fazer parte da vida dos clientes da associação. Desde a organização de dias abertos, às saídas ao exterior semanais que fazem parte do Calendário de Oficinas, aos protocolos com outras instituições do Concelho, e não só, à participação em todo o tipo de eventos, os clientes do CAO de Velas passaram a ser conhecidos e queridos pela comunidade e já surgem imensos currículos, propostas de voluntariado e convites sucessivos para participação em eventos.

Principal barreira, na minha opinião, ao desenvolvimento adequado e completo do processo de intervenção, a falta de interesse em participar por parte dos prestadores de cuidados que, afinal, pode não ser apenas da sua responsabilidade. A Instituição, desde sempre, “assumiu” o retirar das responsabilidades aos prestadores de cuidados, habituando-os a resolver e fazer tudo por eles. Outro lapso foi o não incentivar a família a

ter uma participação ativa na intervenção dos clientes. Este foi talvez o domínio onde menos evoluções foram sentidas nos últimos meses, talvez por ser um domínio sensível.

Na população em causa podemos distinguir diferentes tipos de atitudes parentais dentro de um espetro alargado que vai desde atitudes de superproteção extremas e atitudes de desinteresse e negligência. As tentativas da nova coordenação da instituição para colmatar as falhas existentes na ligação entre Associação-Família e na corresponsabilização, passaram essencialmente por convites para participação em todos os eventos da mesma, bem como implementação de reuniões mensais, às quais poucos prestadores compareciam. Este é sem dúvida um dos pontos a investir no futuro da AACCNEE, e uma possível sugestão para esta melhoria de comunicação entre Instituição-Prestadores de Cuidados seria o Projeto de Intervenção Corpo em Movimento – Um meio de comunicação. Outra sugestão para enriquecer esta ligação entre pais- clientes-instituição seria a criação de uma “Marcha Popular de São João”, um momento coreográfico e musical onde participariam pais, clientes e funcionários, numa alusão à cultura popular.

Este ano representou apenas o início de um longo percurso onde alguns dos objetivos já podem ser dados como atingidos, mas muitos novos foram surgindo. A conclusão de que não existe uma “receita” e de que cada cliente responde a determinado estímulo ou situação de forma variada e instável, e de que esta variabilidade e subjetividade interindividual vai exprimir-se através de ritmos diferenciados de desenvolvimento que vão reger todo o processo interventivo, foi, sem dúvida, a grande ilação de todo o Estágio. Foram inúmeras as referências, ao longo dos 4 anos de formação, acerca do desenvolvimento de cada indivíduo em todos os domínios, e ao facto de este compreender um conjunto de transformações que dependem, não só da maturação com base genética, mas também da qualidade da estimulação envolvimental, cujo impacto é tão, ou mais importante. No entanto, o facto de a plasticidade do desenvolvimento humano fazer com que resultados que se pensava serem irreversíveis possam ser recuperados, condutas readaptadas e competências readquiridas, com o objetivo máximo de uma funcionalidade ajustada ao envolvimento, só começou a fazer realmente sentido neste último ano, com uma intervenção direta e sistemática, e com a oportunidade de vivenciar as suas evoluções, evoluindo também com eles.

Durante este ano aprendi também que liberdade e autonomia não são sinónimos, e que é possível dar liberdade a uma pessoa que não tem a capacidade de ser completamente autónoma. A dependência física não quer dizer, obrigatoriamente, que a pessoa nunca se poderá sentir livre, e depende de quem, e de como, são prestados os apoios, limitar, ou não, essa mesma liberdade. Aprendi, certamente, que as limitações de cada pessoa não podem, nem devem marcar os seus limites.

Como conclusão, importa referir que toda a intervenção psicomotora exige, não só um conhecimento detalhado em termos de desenvolvimento motor, cognitivo e social, como também uma boa dose de criatividade e capacidade de adaptação e resiliência por parte do Psicomotricista. A originalidade destes clientes enriquece o currículo, e a vida, de qualquer profissional e, na minha opinião, o mais importante de tudo, é aprender a ter a capacidade de lhes dar “direitos iguais para ser diferentes”.