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Capítulo 2. Modelo do Ciclo de Vida Domiciliar e Mudança no Uso e Cobertura da Terra

2.3. Reflexão sobre o processo construtivo do modelo

O modelo de uso da terra a partir do ciclo domiciliar teve como arcabouço teórico a teoria de Alexander Chayanov, economista que estudou práticas agrícolas camponesas durante a revolução russa em 1917. Seu trabalho, intitulado “A organização da Unidade Econômica Camponesa” (CHAYANOV, 1986), coloca como elemento fundamental a caracterização do campesinato a partir do núcleo familiar e do balanço trabalho-consumo no domicílio (ABRAMOVAY, 1988; ALVES; FERREIRA, 2009). Apesar de admitir a existência de diversos arranjos domésticos, Chayanov constrói suas ideias a partir de um domicílio nuclear, considerando que formas mais complexas seriam tendências de um período passado (HAMMEL, 2005).

Defendendo a viabilidade e permanência da agricultura camponesa, Chayanov revolucionou os conceitos e teorias sobre economia camponesa. Percebendo que os modelos de política agrária propostos pelos marxistas-lenistas não se ajustavam à realidade rural da Rússia, o economista apresentou o alicerce diferencial de sua teoria: que os camponeses não estariam subordinados a lógica da dinâmica capitalista (GERARDI; SALMONI, 1989). Para ele, os produtores familiares não buscavam a maximização da renda, salário e lucro, invertendo o raciocínio do campesinato a partir da necessidade de consumo e subsistência da família, de tal forma que a unidade domicílio poderia ser vista como uma autarquia (ALMEIDA, 1986; ALVES; FERREIRA, 2009).

A lógica da economia sem determinações capitalistas restringe a necessidade de consumo àquilo essencialmente indispensável para a subsistência familiar (ALVES; FERREIRA, 2009; COSTA, 1995). Essas seriam majoritariamente de ordem biológica, como alimentação e vestuário, havendo possibilidade das impostas socialmente, como aquisição de bens duráveis. Já a produção, fonte deste consumo, dependeria da disponibilidade de recursos (terra e capital), mas fundamentalmente da força de trabalho familiar (GERARDI; SALMONI, 1989). Nesse sentido, a família, e as relações que dela resultam, é colocada como elemento

central na economia camponesa, na medida em que é o ponto de partida e o objetivo da sua atividade econômica (unidade de produção e de consumo) (COSTA, 1995).

Da relação entre trabalho e consumo, Chayanov esquematizou o funcionamento das unidades produtivas propondo uma diferenciação demográfica (COSTA, 1995). A ideia, que pode ser compreendida como uma análise microeconômica interna das unidades camponesas, considera que cada família possui um perfil demográfico próprio, dada sua composição e estrutura etária. Essa combinação determina a variação no volume de trabalho e consumo da família, refletindo nas estratégias de uso da terra na propriedade (ALVES; FERREIRA, 2009; GERARDI; SALMONI, 1989; THORNER; KERBLAY; SMITH, 1986). O modelo de Chayanov termina aos 26 anos, quando o domicílio perde sua feição nuclear pela saída dos filhos (HAMMEL, 2005).

O modelo foi replicado no contexto brasileiro sustentado por duas pré-condições entendidas como presentes também nas áreas de fronteira agrícola na Amazônia: terras livremente utilizáveis por uma família em crescimento; e a inexistência de barreiras “técnicas” (capital disponível a escala familiar) (ALMEIDA, 1986). E para transformar os postulados de Chayanov em um modelo prático adotou-se a ideia de evolução do ciclo domiciliar baseado nos grupos domésticos originalmente formulados por Jack Goody (1976) (BRONDÍZIO et al., 2002; MCCRACKEN et al., 1999, 2002; MCCRACKEN; BOUCEK; MORAN, 2002; WALKER; HOMMA, 1996).

A aplicação das ideias do antropólogo inglês Goody promoveu dois ajustes estruturais no processo de consolidação do modelo: a adoção da escala de análise “unidade doméstica” e o pressuposto da trajetória temporal linear deste unidade. A definição de grupos domésticos ou unidades domésticas (domestic groups ou household), é um conjunto de duas ou mais pessoas morando juntas e fazendo provisão comum de alimentos e outras despesas essenciais (somando rendimentos e partilhando orçamento), podendo ter ou não relações de parentesco (ALMEIDA, 1986; SABOIA; COBO, 2005). Nesta definição que se enquadra no conceito de economia doméstica (housekeeping) (SABOIA; COBO, 2005), a residência seria uma reprodução das relações econômica, afetiva e legal, deixando de ser uma representação centralizada nas relações de parentesco e família (MORAN; MCCRACKEN, 2004).

Já a ideia de um processo evolucionário linear, sustenta que a unidade doméstica passa por estágios ao longo dos anos conforme se alteram as características demográficas dos membros e suas demandas, para a construção de que seria o ciclo de desenvolvimento domiciliar (domestic developmental cycle) (MORAN; MCCRACKEN, 2004; OLIVEIRA,

1980). Três fases são apresentadas como estruturantes na determinação desses estágios, denominadas: expansão (do casamento ao nascimento dos filhos), dispersão (inicia-se com o casamento do filho mais velho até todos filhos se casarem), e por fim, reposição (falecimento dos pais e substituição pela família de seus filhos) (GOODY, 1969). Ao longo dessas fases, os estágios podem ser determinados de acordo com a idade dos pais e dos filhos, pela composição (diferencial de sexo entre os eventos) e discriminados a partir dos turnpoints, momento do evento que trava a mudança de estágio (ELDER JR.; JOHNSON; CROSNOE, 2004; MORAN; MCCRACKEN, 2004).

A compilação desses alicerces teóricos sugere então, que a mudança no uso e cobertura da terra é um produto das transformações na estrutura da unidade doméstica ao longo do tempo, conjugadas pelas relações de produção e demanda (trabalho e consumo) na unidade de provisão. Hammel (2005) confirmou o padrão de oscilação da relação de dependência conforme muda a idade do domicílio. No início do ciclo (até 10-15 anos) há uma redução da razão diante e do acréscimo de filhos seguido de um aumento conforme os filhos crescem e deixam de ser somente consumidores para serem também produtores (disponíveis como força de trabalho). Posteriormente, a razão sofre uma queda definida pela saída de filhas que se casam e deixam a casa dos pais e pela permanência dos filhos homens, que passam a estabelecer sua família (esposa e filhos), reproduzindo o primeiro ciclo, já mais suavizado pela queda da fecundidade.

Da fusão dos postulados de Chayanov com dinâmica domiciliar de Goody, os pesquisadores elaboraram o MCVD para ser averiguado de forma empírica. A primeira medida foi realizar os ajustes para a realidade da fronteira agrícola na Amazônia. Chayanov pressupunha domínio das condições edafoclimáticas37 locais, o que não era uma realidade para os migrantes da região amazônica. Para estudos na Amazônia, foi entendido como importante considerar a região de origem e o tempo de residência na região. O segundo ponto é a existência do mercado. Ainda que escasso, o capital agrícola e crédito permitem o investimento em máquinas ou contratação de mão de obra, além do fato do mercado de consumo ser cada vez maior diante da urbanização na região. Na concepção de Chayanov, também não haveria mercado de trabalho. Esse fator foi entendido como necessário não só pela possibilidade de as famílias contratarem mão de obra ou venderem sua força de trabalho, mas também pela ocorrência de membros familiares que se inserem no mercado de trabalho no centro urbano. O último ajuste propõe que todos os usos da terra sejam analisados e não somente a proporção da

37Conjunto de características do ambiente, considerando o clima, relevo, temperatura, umidade do ar, tipo de solo, precipitação pluvial.

propriedade em uso agrícola. Para Chayanov não havia diversidade de culturas e práticas agrícolas, desconsiderando a diversidade de formas de especialização e combinação de atividades agrícolas (PERZ, 2001; PICHÓN, 1996, 1997).

Ao mesmo tempo em que os arranjos propostos por Goody são suficientes para adequar as questões políticas e macroeconômicas pendentes em Chayanov, é falha em revelar as dinâmicas microeconômicas importantes no ciclo do camponês (HAMMEL, 2005). É compreensível que as decisões tenham sido estratégias metodológicas para viabilizar o estudo empírico. A delimitação de uma unidade comum de análise é necessária, e uma vez incorporando as ideias de Goody, a unidade doméstica (household) funcionaria perfeitamente para a série de testes empíricos.

No entanto, o esforço no processo adaptativo do modelo foi debruçado majoritariamente sobre a teoria de Chayanov, enquanto que o modelo domiciliar de Goody foi substancialmente conservado. A preocupação central dos pesquisadores foi concentrada no afrouxamento dos postulados da economia camponesa, para equacionar o modelo a um contexto próximo a dinâmica capitalista do Século XX. Com isso, houve o aperfeiçoamento dos elementos de ordem econômica e uma simplificação dos processos e estruturas sociais.

Ao adotar a unidade proposta por Goody, que enfoca no grupo doméstico como mecanismo central de reprodução social (FORTES, 1971), perde-se em termos de potencial de análise dos processos sociais, que antes estavam conectados à noção de família. Além disto, não houve questionamentos efetivos acerca dos pressupostos demográficos dos tipos domiciliares de Goody. Apesar de tratar da unidade doméstica como sendo uma unidade de provisão, a priori, podendo conter outros parentes e não parentes residentes, os estágios do

domestic developmental cycle são descritos partindo de um domicílio nuclear. Para Hammel

(2005), o trabalho de Goody (1969) seria amplamente mais vantajoso se contemplasse outras formas de domicílio, como ampliado ou composto, justamente por ter essa abertura pelo conceito de unidade doméstica.

Alguns pesquisadores, autores dos trabalhos previamente apresentados no tópico anterior, reconhecem a existência de famílias ampliadas, mas acabam optando por construírem sua amostra de interesse selecionando somente os domicílios com um único núcleo familiar, para reduzir os ruídos de análise. Na região de Uruará, 29% dos 261 domicílios entrevistados possuíam mais de um núcleo familiar e foram descartados das análises (PERZ, 2001; PERZ; WALKER, 2002; PERZ; WALKER; CALDAS, 2006). Ainda que a maioria dos domicílios

seja enquadrada como nuclear, é uma medida de simplificação que transfere uma visão parcial da realidade dessas áreas e minimiza a pluriatividade dos domicílios.

Outro mecanismo de simplificação metodológica foi assumir que o casamento leva a saída dos filhos não só do domicílio parental, mas também da propriedade. Nessa configuração, prioriza-se a relação um domicílio por propriedade (1:1) Este pressuposto foi adotado nos estudos conduzidos no trecho da Transamazônica e Santarém. No caso das propriedades entrevistadas em Santarém, 25% delas continha mais de um domicílio. Destas, quase metade tinha apenas dois domicílios, mas houve situações em que se encontrou até 15 unidades, alcançando 79 membros residentes numa mesma propriedade (CÔRTES, 2012b). Ainda que seja reconhecida as possíveis trocas entre domicílios na realização das tarefas domésticas (FONSECA, 2005) e sua influência no balanço laboral na perspectiva de Chayanov (HAMMEL, 2005), é mínimo o conhecimento sobre as formas de relação entre essas unidades e as maneiras de divisão da propriedade para os fins de produção.

Nessas duas simplificações metodológicas (domicílio nuclear e propriedades

unidomiciliar) há um aspecto do processo familiar completamente perdido, que é exatamente a

dinâmica intergeracional, que por sua vez explica os arranjos variados de domicílios e distintas possibilidades e naturezas de relações familiares (WALKER et al., 2002). A sustentação de Chayanov era que a economia camponesa só poderia ser compreendida através da organização interna da família (CALDAS et al., 2003). Portanto, ainda que a maioria dos domicílios seja nuclear, essas duas medidas metodológicas camuflam a diversidade e reduzem a complexidade da dimensão familiar, campo central do MCVD.

O processo de adequar o conceito de família para unidade doméstica tem implicações práticas, e na sua essência, implicações teóricas. É preciso refletir sobre o significado dos conceitos estudados (ALMEIDA, 1986). Além de todas as medidas de simplificação metodológica, o MCVD na realidade fez uma releitura dos conceitos originais e acabou sendo uma reprodução substancialmente conectada a ideia do domicílio, e não de família. Como mostra a Figura 2.5, há várias sobreposições entre grupos populacionais que definem os conceitos das unidades e que devem ser respeitadas para sua efetividade teórica (CARNEIRO, 1998a; SCHNEIDER, 1997). A unidade doméstica, ou o grupo domiciliar, representa uma casa, um lote de terra e um conjunto de pessoas, as quais podem ser descritas como família. Família, por sua vez, é algo intrínseco, determinado por um conjunto de parentes agrupados em uma unidade via de laço consanguíneos (ALMEIDA, 1986).

Embora frequente, é fortemente repreendido no campo do estudo de família as abordagens que limitam o ciclo vital à família domiciliar (OLIVEIRA, 1980). Família e domicílio foram conceitos frequentemente empregados como sinônimos nos estudos revistos neste capítulo. Isso colocou em segundo plano a dinâmica familiar, eixo fundamental da economia camponesa, e centralizou o viés socioeconômico que o conceito de household exprime. Nesse processo, a família é cada vez menos interpretada como uma unidade importante nos padrões de uso da terra, dando margem para o fortalecimento do domicílio como unidade chave de tomada de decisão.

Figura 2.5. Ilustração das relações entre grupo familiar e domicílio

Fonte: Adaptado de Wajnman(2012)

Ainda que nos estudos os familiares não residentes não sejam totalmente desprezados, são entendidos como fatores exógenos e incorporados somente para complementar o panorama econômico do domicílio através de variáveis como a prática de remessas de filhos residentes em áreas urbanas. Ao incorporar os familiares não residentes, amplia-se a dimensão da família para o grupo familiar, de forma a considerar elementos tidos como exógenos para endógenos da unidade de análise, e assim possibilitar agregar a transição geracional e a diversidade de arranjos populacionais na Amazônia brasileira. A ampliação de unidade doméstica para família, na ideia de um ciclo do grupo familiar, deverá trazer resultados inovadores e promissores para a compreensão da transição da terra. Do ponto de vista demográfico, a ênfase deixa de ser na composição e estrutura do domicílio, para as formas de mobilidade e distribuição familiar, quer seja na unidade domiciliar, na propriedade ou fora dela.