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Reflexões a partir da formação inicial: o contato com a Proposta curricular para o

PARTE 1 REFLEXÕES SOBRE O CURRÍCULO DE FILOSOFIA

1.2 CURRÍCULO DE FILOSOFIA DO ESTADO DE SÃO PAULO: A PROBLEMÁTICA DAS

1.2.1 Reflexões a partir da formação inicial: o contato com a Proposta curricular para o

Nosso primeiro contato com documentos oficiais se deu na formação inicial. O documento Proposta curricular para o ensino de Filosofia: 2º grau, editado no ano de 1992, serviu como diretriz para a chamada Escola Padrão. Iniciaremos nossa análise por este referencial.

O documento, acima mencionado, foi organizado pela antiga Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), para adequar um grupo específico de escolas que passaria a fazer parte do projeto Escola Padrão, autorizado pelo Decreto nº 34.035 de 22 de outubro de 1991, do então governador Luiz Antonio Fleury Filho. Já na apresentação, vemos dois compromissos do governo: recuperar a educação pública e a qualidade do ensino oferecido (SÃO PAULO, 1992).

A ideia, a princípio, seria a de estabelecer um modelo, uma cultura escolar, segundo alguns pressupostos: “A educação escolar deve propiciar o domínio de competências que permitam a plena participação do indivíduo, enquanto cidadão,

nas múltiplas e complexas atividades exigidas pela vida moderna”. (SÃO PAULO, 1992, p. 3).

Temos aí a insistência em dois pontos, que destacamos: domínio de

competências e plena participação do indivíduo enquanto cidadão. Nesse contexto

de reforma educacional, ao se estabelecer um modelo padronizado de escola, acreditava-se na escola como um organismo vivo e atuante na sociedade. Essa proposta acreditava que a Filosofia era uma disciplina indispensável e com um papel imprescindível para uma verdadeira formação dos jovens para o exercício consciente da cidadania.

Encontramos um ponto divergente diante do que foi exposto nos dois pontos destacados. Para dominar competências e propor plena participação, o documento propõe que a escola desenvolva suas próprias iniciativas e identifique suas necessidades. Entendemos que existe uma grande distância entre a escola que

deve propiciar domínio de competências e a escola que é incentivada a promover uma autonomia da própria ação.

Parece-nos que o termo deve não é um termo muito caro quando se pretende um ensino reflexivo. Sem considerar, a princípio, o quanto um documento oficial, por si só, tem um discurso impositivo, mesmo que venha intitulado como

proposta.

Um discurso impositivo, colocando a escola num estado em que as normas têm mais significado que a busca por um ensino crítico-reflexivo, valorizando a autonomia e a liberdade humanas, bem como a construção desses aspectos, é uma tendência à barbárie. Nesse sentido, ponderamos essa problemática a partir de Adorno (2003b, p. 123-124):

[...] Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.

Assim, ao invés do dever, vindo de uma perspectiva de um compromisso moral heterônomo, esvaziado de reflexão e permeado do mesmo espírito dos algozes de Auschwitz, a escola precisa (caso pretenda desenvolver em seus alunos

um espírito crítico-reflexivo e sensível para os problemas do tempo presente) refletir constantemente sobre o que ensina, porque se ensina e, sobretudo, permitir experiências filosóficas em que se busque o enfrentamento das condições de um ensino que pretende manter os alunos distantes de sua autodeterminação enquanto sujeitos, prendendo-os a deveres estipulados por um estado de coisas que perpetua o ideal neoliberal.

Apesar dessa problemática, podemos destacar que a proposta curricular de Filosofia de 1992 reitera a necessidade da inclusão da disciplina, considerando-a “em função da importância [...] para a formação de um cidadão crítico e participante numa sociedade democrática” (SÃO PAULO, 1992, p. 11). Sabe-se, entretanto, que essa introdução foi modesta: “em outubro de 1988, 67% das escolas estaduais já incluíam Filosofia em pelo menos uma das séries do Segundo Grau.” (SÃO PAULO, 1992, p. 13).

Ao analisarmos os fundamentos dessa proposta, vemos que a inclusão da Filosofia se deve e se justifica pela necessidade de uma educação formativa e que integre o trabalho, as relações sociais e a cultura simbólica (SÃO PAULO, 1992). Um modelo de educação para combater as situações de alienação da existência humana. Assim, temos uma proposta que compreende que a educação “precisa desenvolver-se de forma competente e crítica, garantindo as mediações que lhe permitam tomar consciência das condições específicas da existência humana.” (SÃO PAULO, 1992, p. 15-16).

Vislumbramos, nessa proposta, uma coerente relação entre o ensino e a aprendizagem, uma vez que se considera a necessidade de exploração dos fundamentos construídos ao longo da história e da cultura humanas. Entende-se que o ensinoaprendizagem não pode ser “reduzido a uma atividade meramente contemplativa, já que possui uma finalidade prática, tendo em vista a inserção dos jovens no universo do trabalho, mediação também fundamental da existência humana.” (SÃO PAULO, 1992, p. 16).

Contudo, essa relação coerente entre ensinoaprendizagem pode esbarrar no próprio processo emancipatório do sujeito: até que ponto o aluno pode realizar uma atividade educacional plenamente crítica e consciente se a própria escola não consegue fazer um bom equilíbrio entre o currículo e a formação desse sujeito? O próprio documento chama a atenção para este problema:

Desde o Primeiro Grau o aluno não vivencia conscientemente o processo cognitivo, não se reconhece nesse processo, ou seja, ao adquirir o saber, não sabe o que está fazendo. Ao chegar ao Segundo Grau, entra numa faixa etária na qual se colocam de forma crítica questões relacionadas à sua formação e inserção social, já que o processo de emancipação é fundamentalmente interrogativo e questionante. No entanto, esse potencial crítico trazido pelo jovem pode morrer no nascedouro: ou pela continuação das regras básicas do aprendizado mecânico do Primeiro Grau, ou por um questionamento difuso, não fundamentado e consciente, dos procedimentos de ensino que enfrenta em nível de Segundo Grau. (SÃO PAULO, 1992, p. 17).

O discurso da proposta, nesse sentido, é o de tentar estabelecer um modelo, para que a escola fuja do excesso de formalidade, mas, também, consiga prevenir tentativas espontaneístas de resolver os desafios ora detectados.

A proposta de ensino de Filosofia, ansiada pela Escola Padrão, diante dos pressupostos trazidos até aqui, tenta estabelecer alguns princípios, dos quais destacamos: “O exercício da reflexão crítica a partir de problemas (...) sobre a experiência (realidade), em que a própria reflexão torna-se, ela mesma, uma experiência. É importante, pois, levar o jovem a fazer esta experiência de reflexão e ao mesmo tempo, refletir sobre ela”. (SÃO PAULO, 1992, p. 24).

O que se pretendia era dar aos destinatários do ensino de Filosofia condições para colocar-se diante da realidade objetiva e para assumir uma postura crítica diante dessa realidade. Uma postura crítica, contudo, diferente de criticar sem ter nenhum fundamento. Assim, o ensino de Filosofia, de acordo com a proposta, permitiria ao estudante se apropriar de uma linguagem de segurança, procedendo de uma forma sistemática, procurando as raízes da questão até os seus fundamentos e examinando as dimensões do problema num todo articulado.

Segundo Fabbrini (1996), conhecer é uma atividade contínua e inacabada, pois estamos constantemente interpretando a realidade. Nesse sentido, é preciso aprender a ter familiaridade com os significados que se apresentam constantemente a nós e buscar nos educar, compreender tudo isso. O ensino de Filosofia, nesse sentido, não é algo inerte: o professor deve levar aos alunos a pluralidade de textos, de ideias, evitando, assim, que o conhecimento seja tratado como algo acabado, objetificado, estabelecido como um modelo pronto.

A História da Filosofia seria o referencial teórico obrigatório para nortear a reflexão dos problemas vivenciados, pois ela traz os recursos necessários para a compreensão das questões sociais, éticas, políticas e culturais, resgatando-se a gênese histórica e teórica dos problemas tratados. (SÃO PAULO, 1992).

Diante desses princípios apresentados, vemos que a proposta de ensino de Filosofia da Escola Padrão tem suas qualidades e seus limites. Qualidades no sentido de resgate da importância da formação humanística do sujeito, a partir de uma proposição de experiências reflexivas, que partiriam dos conteúdos e dos recursos acumulados ao longo do tempo, próprios da realidade. Limites, no sentido de termos um ensino atrelado a uma perspectiva de mercado, de trabalho, separando o sujeito numa dualidade intransponível: o homem que pensa e o homem que faz, competente.

1.2.2 Reflexões a partir da atuação docente: o contato com a formação