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REFLEXÕES SOBRE A INFÂNCIA NA PÓS-MODERNIDADE A PARTIR

1.2.1. A modernidade e a Questão da Técnica: considerações heideggerianas

Esta Ontologia Fundamental é o caminhar que nos põe na busca de recuperar o esquecido, de enxergar novamente o simples que, em nossa época, através do embotamento provocado pelo universo

tecnológico, se tornou uma das tarefas mais difíceis. (Heidegger)

Caracterizando o mundo moderno pelo domínio da racionalidade, do saber científico e pela ênfase em um processo produtivo marcado pela tecnologia – aspectos que permeavam todo agir do homem, o filósofo Martin Heidegger convida a uma reflexão acerca desse mundo, ao qual chamou de técnico, que teve sua ascensão na modernidade e funcionou como horizonte de sentido para o ser do homem na contemporaneidade (Heidegger, 1954/2010).

Possamai (2010), ao discutir o pensamento heideggeriano sobre a técnica, destaca: “Há algum tempo, a técnica, encarnada tanto no homem quanto na máquina, é o signo atual de nossa relação com o mundo e o modo como a sociedade contemporânea se articula” (p. 21).

Heidegger (1954/2010) inicia o seu ensaio “Questão da Técnica”, propondo um questionamento da técnica a partir da construção de um caminho que leve o homem a um relacionamento livre com a mesma, a um relacionamento capaz de abrir sua Pre- sença à essência da técnica, que, segundo o filósofo, não tem nada de técnico:

Assim também a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico. Por isso nunca faremos a experiência de nosso relacionamento com a essência da técnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que é técnico. Enquanto a ele nos

moldarmos ou dele nos afastarmos. Haveremos sempre de ficar presos, sem liberdade, à técnica tanto na sua afirmação como na sua negação apaixonada. A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra, pois essa concepção, que hoje goza de um favor especial, nos torna inteiramente cegos para a essência da técnica (p. 11).

Discorrendo sobre essência como aquilo que alguma coisa é, o filósofo reconhece a técnica como sendo uma atividade do homem, que funciona como meio para determinado fim, a partir da produção e uso de ferramentas. Sendo essa a determinação instrumental da técnica, Heidegger (1954/2010) não a nega, reconhece-a como legítima, mas aponta para a necessidade de se ir mais além, em busca do verdadeiro, pois acredita que, só assim, se terá um relacionamento livre com a técnica, a partir do momento que ela for compreendida como uma forma de desencobrimento, de desabrigar:

A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo um outro âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade (p. 17).

Para Heidegger (1954/2010), a determinação instrumental da técnica, de um meio para determinado fim, de exploração de energia da natureza para ser armazenada e beneficiada, caracterizava enfaticamente a técnica moderna que, como um desencobrimento, era vista como um modo de produção de verdade da época.

Durante a modernidade o homem dis-punha – no sentido de explorar – da natureza os requisitos necessários para certo processamento, buscando promover, com o mínimo de gasto, o maior rendimento possível, sendo controle e segurança marcas fundamentais do desencobrimento explorador moderno (Heidegger, 1954/2010).

Para Heidegger, a partir dos tempos modernos, o mundo humano transformou-se em um universo técnico. Nesse período, enquanto a razão tecnológica ganhava força,

passando a ser a referência do progresso material, do desenvolvimento e do prestígio econômico de uma nação, a técnica, cada vez mais, era compreendida como um conjunto de meios que instrumentalizam para a realização de uma tarefa (Cocco, 2006; Dantas & Moura, 2009). Segundo Cocco (2006), no mundo moderno nada escapava do controle técnico e não se tinha espaço para o oculto, tudo era essencialmente cognoscível pelos métodos racionais da ciência, e as coisas eram conhecidas a partir da sua funcionalidade.

Santos, Neto e Ribeiro (2008) destacam, também com base no pensamento de Heidegger, que o homem moderno caracterizava-se por apresentar um pensamento calculador, por pensar o mundo de forma padronizada, cristalizada, objetiva, ou seja, matematizada:

Este cálculo caracteriza todo o pensamento planificador e investigador. Este pensamento continua a ser um cálculo, mesmo que não opere com números, nem recorra à máquina de calcular, nem a um dispositivo para grandes cálculos. O pensamento que calcula (das rechnende Denken) faz cálculos. Faz cálculos com possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula nunca pára, nunca chaga a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt) sobre o sentido que reina em tudo o que existe (Heidegger, 1944/1945, p. 13).

Para Dantas e Moura (2009), o predomínio do pensamento calculador diz de um sujeito que realiza esforços sistemáticos para conhecer e controlar o mundo a partir, não da reflexão, mas dos saberes científicos:

Vivemos uma época na qual sucumbimos a um estado ilusório, que nos dá a sensação (falsa) de um controle sobre o real – pensamos que o verdadeiro só coincide com o que se tem pleno conhecimento, e de que o conhecimento surge somente do que se pode dominar e produzir artificialmente (Possamai, 2010, p. 25).

Dantas e Moura (2009) trazem à tona a discussão sobre os tempos modernos, a técnica e o pensamento calculante, destacando haver nesse período uma verdadeira guerra contra o imprevisto e a vulnerabilidade, resultando num quadro que:

Pode ser visto como uma tendência ao empobrecimento do pensamento visto que o pensamento dominante se mostra como um pensamento representacional e calculante. Apoiando-se na sua capacidade de conseguir resultados considerados “práticos”, tais como as inquestionáveis conquistas alcançadas pelas pesquisas tecnológicas, sobretudo os avanços da indústria farmacêutica, este modo de pensar calculante, progressivamente, avança com pretensões de tornar-se o único modo legítimo de pensar. Seguindo a ditadura deste pensar, criam-se determinados mecanismos de homogeneização dos modos de se apresentar no mundo baseados numa sociedade de controle onde nada lhe escapa ou pode escapar. Desta maneira impõem-se formas de ser, estar, agir e pensar que marcam as formas de adoecimento no contemporâneo (pp. 224-225).

Nesse contexto, cabe ressaltar o pensamento de Heidegger quando este aponta para um possível esquecimento do ser em um mundo marcado pela exacerbação do controle tecnológico. A esse respeito Possamai (2010) ressalta que “a principal questão que se nos apresenta é sabermos se continuaremos sendo humanos numa era em que a tecnologia maquinística passar a ser mais importante do que o próprio homem” (p. 20). Cocco (2006), ainda, evidencia tal imposição do saber sobre o ser colocando que, no contexto técnico, o ser do ente2 encontra-se reduzido à instrumentalidade e ao controle técnico, não havendo mais espaço para ele, mas apenas para o ente. A esse respeito, o próprio Heidegger (1963/2000) anuncia o seu temor “de o homem ser totalmente entregue à técnica e de ser transformado, um dia, numa máquina pilotada” (p. 591, citado por Loparic, s.d. a, p. 13).

2

Em sua obra mais tradicional, Ser e Tempo, Heidegger (1927/2005) faz uma distinção entre ser e ente. O filósofo denomina de ente “tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmo somos” (p. 32). O ser, por sua vez, “está naquilo que é e como é, na realidade” (p. 32). Para Sá (s.d.), Heidegger discorre sobre a distinção entre ser e ente atribuindo ao ser a responsabilidade por fazer com que o ente seja, sua essência ou fundamento.

Nessa conjuntura que aponta para o risco de esquecimento do ser, torna-se pertinente abordar a ideia de impessoalidade (impropriedade) proposta por Heidegger (1927/2005). Segundo o filósofo, como possibilidade de ser, o modo impessoal “retira a responsabilidade de cada pre-sença” (p. 180), fazendo com que o Dasein se afaste de si. Na impessoalidade, o homem, absorto em seus afazeres mundanos e em meio ao predomínio da interpretação pública de tudo o que é, permite que os outros tomem o seu próprio ser, retirando-lhe, assim, o peso da responsabilidade de existir (Duarte, 2002).

Para Heidegger (1927/2005) o homem vive, na cotidianidade, na maioria das vezes, no modo impessoal, na tentativa de escapar do nada, do estranho, da indeterminação, bem como da vulnerabilidade e instabilidade pronunciadas pelas tonalidades afetivas3 fundamentais do tédio e do temor4:

O tédio, como tonalidade afetiva fundamental em nosso horizonte histórico, no qual predomina as referências da técnica, surge do fato de o homem ter se tornado totalmente desinteressante para si mesmo. Trata-se aqui de uma tendência acirrada pela própria história da filosofia enquanto história do ser, a tendência de se realizar a partir do total esquecimento do ser. O ser, na tradição ocidental de pensamento, é obscurecido, na medida em que buscamos todos os tipos de ocupações e distrações, tão estimuladas pelo mundo da técnica. Enfim, “matamos” o tempo e, assim, não despertamos para a diferença ontológica, para a impossibilidade de reduzir o ser ao ente ou a uma construção ôntica. Já na tonalidade afetiva fundamental do temor, na tentativa de obscurecer o caráter de vulnerabilidade, de ameaça e de perigo em que a existência sempre se encontra, tendemos a restringir aquilo de que temos medo. E, nessa restrição, passamos a acreditar que, retendo-nos frente àquilo que ameaça a nossa existência, poderemos nos proteger dessa iminência. Assim, nessas situações, o que fazemos é escapar da nadidade, da negatividade e do desamparo em que sempre nos encontramos (Feijoo, 2011, pp. 45-46).

3

Para Heidegger (1927/2005), o que ontologicamente denomina-se disposição afetiva, onticamente é mais conhecida como estado de humor. O Dasein está sempre de humor, de modo que “o humor revela ‘como alguém está e se torna’” (p. 188).

4

Antes de seguir com a citação, faz-se necessária uma breve distinção entre os termos ôntico e ontológico na perspectiva heideggeriana. Para Spanoudis (1981), o ôntico é concebido por Heidegger como tudo aquilo que é percebido, entendido e conhecido de imediato. A ontologia fundamental heideggeriana, por sua vez, não concebe conceitos ou essências – como faz a ontologia no pensamento ocidental, mas parte do cotidiano para procurar “as origens genuínas que possibilitam a tudo manifestar-se (...). O ontológico é aquilo que possibilita as várias maneiras de algo tornar-se manifesto, presente, criado, produzido, atuado, sentido, etc.” (p. 10).

Heidegger (1927/2005) utiliza o termo de-cadência para indicar o modo do Dasein estar lançado no mundo das ocupações, perdendo-se no impessoal. Decair no

mundo indica o empenho do homem na convivência cotidiana, na qual predominam o falatório, a curiosidade e a ambiguidade. No falatório tanto a escuta como a compreensão se colam previamente no que já foi falado. “Falatório é a possibilidade de compreender tudo sem se ter apropriado previamente. O falatório que qualquer um pode sorver sofregamente não apenas dispensa a tarefa de uma compreensão autêntica, como também elabora uma compreensibilidade indiferente, da qual nada é excluído” (p. 229). Trata-se de repetir e passar adiante a fala. A curiosidade ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, mas apenas para ver, caracterizando-se pela impermanência e dispersão e culminando no desamparo, no desenraizamento. Surge, então, a ambiguidade, pois ao homem tudo parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente quando não o foi. No impessoal, o Dasein não vê a si mesmo em suas possibilidades autênticas, pois sua pre-sença se dá de modo ambíguo, a partir do domínio do falatório e da curiosidade.

Feijoo (2011) ressalta que o obscurecimento das condições da existência que ocorre no modo de ser impessoal faz com que o homem assuma uma identidade, tomando para si sentidos e determinações que se revelam no modo como ele vai lidar com os entes que vão ao seu encontro. A partir de então, faz sentido destacar a ocupação como uma forma de cuidado característica do modo impessoal de ser. Do ponto de vista heideggeriano, a ocupação pode ser compreendida como uma forma de cuidado – característica ontológica do Dasein de ser em relação com os outros entes – que corresponde ao modo do Dasein se relacionar com os entes simplesmente dados, ou seja, aqueles que não são dotados de existência (Heidegger, 1927/2005). Vale ressaltar que para Sá, Mattar e Rodrigues (2006), o que acontece, por vezes, principalmente em

um contexto técnico, é que o Dasein acaba por se relacionar com ele mesmo e com outros entes dotados de seu modo de ser como se fossem entes em que o modo de ser fosse simplesmente dado, devido ao caráter de instrumentalidade de algumas relações humanas:

O modo mais imediato do Dasein se relacionar com os outros entes se dá sempre através da ocupação no manuseio e uso, subordinados ao “ser-para” dos instrumentos, ou seja, está sempre referido a um contexto de significância, mundo, em que predomina o uso ou utilidade. Embora o Dasein seja essencialmente abertura de possibilidades de sentido, de início e na maior parte das vezes, apreende a si mesmo e aos outros, a partir daquele contexto instrumental, como um ente cujo modo de ser fosse simplesmente dado (p. 114).

Mesmo que a impessoalidade seja condição ontológica do ser, relevante ao ser- no-mundo5, o seu predomínio, na denominada Era da Técnica, preocupa, de modo que pode restringir as possibilidades de ser. É então nesse momento, em que o homem vem experimentando o afastamento do seu próprio ser, que faz sentido refletir acerca de uma urgência de se pensar outras formas de ser-no-mundo, buscando um caminho que suporte o imprevisto e o pensamento na tragicidade da vida (Dantas & Moura, 2009). Afinal, conforme destaca Critelli (2007) “viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez” (p. 17).

É nesse sentido, então, que Heidegger (1954/2010) questiona a técnica, alertando para a necessidade de ir além dela, em busca de sua essência, para que se tenha um relacionamento livre com a mesma:

Assim, a vigência da técnica guarda em si o que menos esperamos, uma possível emergência do que salva. Por isso, tudo depende de pensarmos esta emergência e a protegermos com a dádiva do pensamento. E como é que isto se dá? Sobretudo, percebendo o que vige na técnica, ao invés de ficar estarrecido diante do que é técnico.

5

Para Heidegger o Dasein ou ser-aí não apenas tem, de certo modo, uma ligação com o mundo; ao contrário, a ligação com o mundo é um traço essencial deste, é a sua constituição essencial marcante. “Ser-aí não significa nada senão ser-no-mundo” (Heidegger, 2008a, p. 324). Esse constructo será melhor explicitado no tópico seguinte.

Enquanto representarmos a técnica, como um instrumento, ficaremos presos à vontade de querer dominá-la. Todo nosso empenho passará por fora da essência da técnica (p. 35).

Ressalta-se que as críticas de Heidegger à ciência e à técnica não questionam a legitimidade das mesmas, nem decerto pretende substituí-las por algum outro modo de saber; o que o filósofo pretende fazer é ressaltar o modo histórico responsável pela relação prisioneira do homem com a técnica na modernidade (Sá, 2002b). No que diz respeito a esse modo histórico, e acerca da busca da essência da técnica por meio do desencobrimento, Brüseke (2002), baseado em Heidegger, ressalta:

Definir a técnica como uma maneira de desocultamento significa entender a essência da técnica como a verdade do relacionamento do homem com o mundo. A técnica não é mais algo exterior e exclusivamente instrumental, mas a maneira pela qual o homem se apropria e aproxima-se da natureza. Esta maneira não é algo físico, todavia possui temporalidade e, assim, história (p. 140).

Critelli (2002) complementa:

Cuidar do ser é, então, cuidarmos da nossa própria destinação histórica: como os indivíduos exclusivos que cada um de nós é, mas ao mesmo tempo em conjunto, pois a humanidade não nos é dada apenas no singular, mas também no plural; não existimos, co-existimos (p.88).

Ao discorrer sobre a relação da técnica moderna com as ciências naturais, Heidegger (1954/2010) traz a ideia de com-posição (Gestell), esclarecendo que o homem, enquanto ser-no-mundo, imerso na essência da composição, relaciona-se com a essência da técnica na medida em que a técnica vigora no mundo junto com ele, e não depois dele, ou seja, para Heidegger, não necessariamente as ciências modernas surgiram antes e a técnica moderna as utiliza como instrumento, mas o próprio surgimento das ciências modernas já pode ter sido proveniente de um contexto permeado pela técnica.

Heidegger (1954/2010) acredita que, como um modo de desencobrimento, a com-posição configura-se como o apelo que conduz o homem a “dis-por do que se des- encobre como dis-ponibilidade” (p. 23), ou seja, conduz o homem a estar aberto para as possibilidades desveladas pelo desencobrimento a partir da reflexão da com-posição:

Somente à medida que o homem já foi desafiado a explorar as energias da natureza é que se pode dar e acontecer o desencobrimento da dis-posição. Se o homem é, porém desafiado e dis-posto, não será, então, que mais originariamente do que a natureza, ele, o homem, pertence à disponibilidade? (p. 21-22).

A partir de então, o filósofo fala da essência da técnica moderna, que põe o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real de acordo com a dis- ponibilidade, ressaltando-se que o destino de tal desencobrimento tende a reger o homem em seu ser sem, contudo, ser fatalidade de uma coação.

Nesse sentido, Heidegger (1954/2010) – que não concebe a subjetividade como substância, nem tampouco interioridade psíquica, a exemplo do que faz o pensamento metafísico (Feijoo, 2011) – ao desenvolver a noção de um eu vivencial, ser-no-mundo, fala de um espaço livre do destino, que ocorre justamente quando se experiencia a essência da técnica a partir da composição. Para o filósofo, nesse espaço livre, não acontece uma coação absoluta, que forçaria uma entrega às cegas à técnica, nem uma condenação desesperada contra ela, que também poderia aprisionar: “abrindo-se para a essência da técnica, encontramo-nos, de repente, tomados por um apelo à libertação” (p.

28).

No que diz respeito a esse apelo, Heidegger (1927/2005) discorre acerca do clamor ou chamado da consciência, que corresponde ao apelo à libertação na direção do ser-mais-próprio e que surge a partir do estado da angústia. Para Critelli (2007) a experiência do vazio e a falta de sentido do mundo é o que Heidegger denomina angústia. Não se trata de tristeza ou ansiedade, nem de medo, mas da compreensão de

que “nos falta mundo (rede de relações significativas), nos falta nosso próprio ser” (p. 136).

Na filosofia heideggeriana, concebe-se que a tonalidade afetiva da angústia anuncia o caráter de indeterminação da existência:

Assim, pela escuta à voz silenciosa da angústia, duas possibilidade podem se abrir: a possibilidade de dar ouvidos ao clamor e, com isto, surpreendendo-se as prescrições do impessoal, poder se abrir um espaço para que o singular pronuncie como possível; e a de ensurdecer frente ao clamor da angústia, retomando, assim, o ritmo do impessoal, no qual as possibilidades se restringem em um movimento de ilusão frente à retomada da determinação e do controle (Feijoo, 2011, p. 54).

Quando acontece do Dasein atender ao clamor, ele tende a aproximar-se de si, havendo então um desencobrimento:

Quando a pre-sença descobre o mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de “mundo” e esta abertura da pre-sença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a pre-sença se tranca contra si mesma (Heidegger, 1927/2005, pp. 182-183).

Para Heidegger, o chamado ou clamor “interpela o si-impessoal e o traz para a propriedade de si mesmo, interrompendo a escuta ambígua e curiosa do falatório, de maneira a instaurar uma outra escuta de si mesmo, que abra a compreensão para o poder-ser mais próprio” (Duarte, 2002, p. 178).

O filósofo utiliza o termo “decisão” para designar, em sintonia com sua concepção de singularização, o projetar-se do homem silencioso e pronto a angustiar-se com vistas ao débito, à condição de finitude e retomar o seu poder-ser mais próprio. A partir da decisão, o ser-aí, respondendo ao clamor, se compreende em vistas do seu poder-ser e assume a impossibilidade de suprir sua incompletude. Trata-se de um projeto silencioso, que nasce a partir da suspensão do discurso sedimentado e da semântica cotidiana e conduz a uma postura questionadora (Casanova, 2009).

Nesse contexto, ganha força o pensamento meditante, o outro estilo de pensamento explicitado por Heidegger que, contrário ao pensamento calculante, é o pensamento caracterizado pela reflexão, que reflete sobre o sentido que reina em tudo que existe (Heidegger, 1944/1945).

À medida que o Dasein se aproxima de si, a partir do desencobrimento, pode-se observar, também, a predominância de outro estilo de cuidado que difere da ocupação, desvela-se a preocupação que, com suas formas substitutiva e antepositiva6, constitui o modo de cuidado em que o Dasein se relaciona com os entes dotados do seu mesmo modo de ser (Heidegger, 1927/2005) – para Sá (2002a) a preocupação revela a constituição do Dasein enquanto ser-com. A preocupação substitutiva ocorre quando o Dasein substitui o outro ente da relação, podendo deixá-lo dependente e dominado;

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