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O ser criança no cenário da infância pós-moderna hiper-realizada

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA. O SER CRIANÇA NO CENÁRIO DA INFÂNCIA PÓS-MODERNA HIPER-REALIZADA. Mariana Meira Pires Simonetti. Natal 2013.

(2) Mariana Meira Pires Simonetti. O SER CRIANÇA NO CENÁRIO DA INFÂNCIA PÓS-MODERNA HIPER-REALIZADA. Dissertação elaborada sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Symone Fernandes de Melo e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.. Natal 2013 ii.

(3) Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).. Simonetti, Mariana Meira Pires. O ser criança no cenário da infância pós-moderna hiper-realizada / Mariana Meira Pires Simonetti. – 2013. 167 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2013. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Symone Fernandes de Melo. 1. Infância – Natal (RN). 2. Subjetividade. 3. Psicologia fenomenológica – Natal (RN). 4. Psicologia infantil – Natal (RN). I. Melo, Symone Fernandes de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.. RN/BSE-CCHLA. CDU 159.922.7. iii.

(4) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES. Departamento de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia. A dissertação “O ser criança no cenário da infância pós-moderna hiper-realizada”, elaborada por Mariana Meira Pires Simonetti, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.. Natal, 19 de abril de 2013.. BANCA EXAMINADORA. Prof.ª Dr.ª Symone Fernandes de Melo. ______________________________. Prof.ª Dr.ª Clara Maria Melo dos Santos. ______________________________. Prof.ª Dr.ª Ana Maria Monte Coelho Frota. ______________________________. iv.

(5) Se criança governasse o mundo... O trânsito seria uma maravilha. Guerras, se existissem, não teriam tiros nem bombas. Terminariam sempre bem, com amigos e inimigos guardados juntos na caixa da paz. Os bancos teriam dinheiro pra todos. Feito ali mesmo, rapidinho. Fome? Não haveria. Comida? Seria feita sem fogo: salada de grama, farofa de areia, bife de caco de telha e suco de mentirinha. Cada um teria sua casa, móveis, camas quentinhas pros filhos. E carinho, muito carinho. A TV e o rádio contariam histórias e só dariam boas notícias: - Hoje tem espetáculo! - Desinventaram a injeção! - Tempestade de sorvete prevista pra hoje à tarde! (...) A tristeza seria respeitada e enterrada como um ritual. Alegria nasceria todo dia, junto com o Sol. As árvores seriam coroadas “Rainhas da Natureza” (...) Todos os bichos seriam pra sempre. Inquebráveis! As praias, limpas. Os rios, cheios de peixes. O correio chegaria rápido e as respostas, mais ainda. As lojas teriam de tudo. Pra gente comprar ou trocar (...) O tempo todo ia ter um trem pronto pra partir: o Japão é logo ali. Pra Rússia são dois minutos. Até a Lua, um pouco mais. Brigas e desavenças teriam duras sentenças: - Três dias sem ver desenhos. (...) Uma banda tocaria todo dia. Música é fundamental! (...) Ninguém ficaria sem escola. Todos aprenderiam a ler, escrever e contar. Voar seria tranquilo e totalmente seguro. Os escritórios fariam ligações pro mundo inteiro. Altos negócios fechados, sentado... em um travesseiro! Seria a coisa mais fácil ter um castelo à beira-mar. Todos poderiam pintar e bordar. Afinal, se criança governasse o mundo, sabe o que ele seria? Uma bola de brincar! (Marcelo Xavier). v.

(6) À Marcela e George, com o desejo de que sejam escandalosamente felizes em suas experiências de infância. O ser criança de vocês foi, sem dúvida, a minha maior inspiração para chegar até aqui. Foi muito por vocês e para vocês! Ao meu novo “pequeno”, ou “pequena”, que chega para mim como símbolo de renovação de uma esperança em uma infância que possa apresentar-se, ainda nos dias de hoje, sempre mais bonita. A todas as crianças do meu convívio, no âmbito pessoal e/ou profissional. Minha dedicação a vocês diz muito de uma crença de que possamos habitar um “mundo melhor” a cada dia.. vi.

(7) AGRADECIMENTOS. Pensar em agradecer a todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste trabalho não é tarefa fácil. Primeiro, pela complexidade inerente à própria elaboração de uma dissertação, segundo, pelo momento em que decidi enfrentar tamanho desafio. Não foi nada fácil, mas EU CONSEGUI! E não teria conseguido se não fosse o apoio de vocês, a quem agradeço, tentando colocar em palavras um pouco do que estou sentindo. Deus, minha fonte de força e coragem. Por vezes, quando achava que não ia conseguir, me apareciam forças que eu só posso acreditar que vinham D’Ele. Obrigada por ter guiado meu caminho até esse fim, ou para esse novo começo! Mainha, aquela que me deu tanto trabalho! Parecia que “queria” dividir com o mestrado a minha atenção, que não podia desviar-se dela por muito tempo. Mas, mesmo sendo assim, eu só tenho a agradecer. O significado de realização que esse momento tem para mim hoje não seria tão intenso se não fosse a presença dela em minha vida. Aquela que me guiou (e me guia), e a quem eu agradeço, não só por essa vitória, mas pela minha vida, e pelo ser-humano que sou hoje. Meu irmão! Porque não consigo imaginar minha vida sem ele. Certamente um dos grandes alicerces do meu caminho. A segurança que tenho nele me ajudou a persistir até aqui, e sua crença sempre em minha vitória é fonte de força e coragem. Minha família, a quem eu agradeço a partir das minhas avós Didi, Irma e da minha Tia Luiza, torcedoras sempre fiéis pelo meu sucesso. Minha “veinha”, nunca vou esquecer a sua disponibilidade em escutar meus enfadonhos ensaios, mesmo dizendo não entender muita coisa do que eu estava falando. Vó (Irma), sua mensagem de incentivo chegou como uma “surpresa boa”, em um momento conturbado do mestrado, e funcionou como combustível de ânimo. Tia, saber que posso contar com você nos meus mais diversos caminhos, me dá segurança para seguir em frente. Bia, não posso deixar de citar alguém que, mesmo estando longe, encontra-se bem perto. Valeu pela ajuda de sempre! A todos vocês, obrigada por acreditarem em mim. Meus amigos! Verdadeiros presentes em minha vida. Sem vocês essa caminhada não teria sido concretizada. Obrigada pela companhia, compartilhamento de angústias, ajuda nas transcrições, compreensão de minhas ausências, enfim, obrigada vii.

(8) por estarem comigo! Impossível agradecer a cada um aqui, mas alguns não podem deixar de estar devidamente registrados em mais essas “páginas da minha vida”. Jéssica, minha amiga querida! A compreensão e disponibilidade demonstradas, eu não consigo agradecer com palavras. Sem dúvida, um cuidado de Deus em minha vida. Pri e Dxa, “foi com elas que eu ri e chorei”. Porque a palavra amizade encontra todo o sentido em vocês! Obrigada por estarem junto comigo em mais esse momento. Candi, minha companheira de longa data. Compartilhar com você, ao longo desses anos, ideias, muitas vezes misturadas com sentimentos, enriqueceu essa dissertação e, mais ainda, a minha vida. Sigamos em frente naquilo em que acreditamos, amiga! Helô, é impressionante como o mestrado tem “a sua cara”! Agradeço a inegável disponibilidade para estar junto, bem além das crises e dúvidas acadêmicas. Symone, porque eu não conseguiria encontrar alguém melhor para dividir comigo a elaboração dessa dissertação. De uma sensibilidade inegável para “fazer ciência”. Além de orientadora, um ser-humano ímpar, que eu tive o privilégio de me aproximar no ano do estágio e que quero manter contato pela vida! Sua disponibilidade e cuidado são exemplos caros que tento levar comigo sempre. Obrigada, “simplesmente”, por SER. Pat, nossa, quem diria que aquela “pessoa desconhecida”, que caía meio de paraquedas para ser minha companheira no mestrado, passaria a ter todo o significado que tem hoje para mim. A cada dia aprendi a admirar a dedicação e o comprometimento para o alcance dos seus objetivos. Além disso, conheci um ser-humano lindo que, sem dúvida, foi um dos meus maiores presentes do mestrado. Amiga, foi muito bom ter encontrado você nesse caminho. Grupo de Estudos Subjetividade e Desenvolvimento Humano. Porque as discussões desse grupo fomentaram verdadeiras contribuições para essa dissertação. Pessoal, obrigada pelo acolhimento de sempre! Elzinha, obrigada por ter acreditado em mim naquele começo, quando nem eu estava acreditando. Beatriz, Carolina, Gabriela e Paula. A vocês agradeço pela disponibilidade nas transcrições das gravações e pelas contribuições nos momentos que tivemos de discussão da temática da pesquisa.. viii.

(9) Instituição de ensino onde foi realizada a pesquisa. Agradeço, a partir principalmente da psicóloga, a abertura e confiança que possibilitaram a consecução do estudo empírico. Olívia, Luiza, Natália, Melissa, Shnitzel, Wii, Iara e Fernanda. As experiências de vocês são a vida dessa dissertação. Obrigada por dividirem comigo um pouco dos seus modos de ser criança. Aos responsáveis pelas crianças, obrigada pela confiança. Clarinha, minha “eterna professora”. Não é por acaso que você ocupa esse lugar hoje. Obrigada pela disponibilidade para a leitura deste trabalho e pelas valiosas contribuições ao longo do percurso de mestrado. Prof.ª Ana Maria Frota. Agradeço por ter aceitado o convite para a leitura desta dissertação. CASE. Agradeço o apoio de toda a equipe, principalmente na pessoa de Luciana, que sempre acreditou em mim e, muitas vezes, possibilitou minha dedicação a essa dissertação. Lú, nunca irei esquecer o que você fez por mim! UFRN e CNPQ. Agradeço por minha formação profissional e pela concessão de bolsa de estudos para a realização do mestrado.. ix.

(10) SUMÁRIO. RESUMO........................................................................................................................xii ABSTRACT...................................................................................................................xiii APRESENTAÇÃO..........................................................................................................14 1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................17 1.1. A PÓS-MODERNIDADE E A INFÂNCIA........................................................23 1.1.1. Traçando um caminho: as infâncias e suas representações ao longo da história.................................................................................................................23 1.1.2.. Preparando. o. cenário:. da. modernidade. ao. contexto. pós-. moderno...............................................................................................................27 1.1.3. Crianças na pós-modernidade: contornos de uma infância hiperrealizada...............................................................................................................33 1.2. REFLEXÕES SOBRE A INFÂNCIA NA PÓS-MODERNIDADE A PARTIR DAS IDEIAS DE MARTIN HEIDEGGER......................................................49 1.2.1.. A. modernidade. e. a. Questão. da. Técnica:. considerações. heideggeriaas.....................................................................................................49 1.2.2. Os sentidos de ser na infância pós-moderna hiper-realizada: reflexões sobre a Era da Técnica.......................................................................................62 2. MÉTODO....................................................................................................................70 2.1. Procedimentos éticos...........................................................................................73 2.2. Participantes.........................................................................................................74 2.3. Procedimentos de construção dos dados..............................................................76 2.4. Procedimentos de análise dos dados....................................................................78 x.

(11) 3. CONHECENDO OS SENTIDOS DE SER CRIANÇA NO CENÁRIO DA INFÂNCIA PÓS-MODERNA HIPER-REALIADA.................................................80 3.1. Significados atribuídos à infância........................................................................82 3.2. A criança e o outro...............................................................................................92 3.3. A criança e o tempo...........................................................................................108 3.4. A criança e o espaço..........................................................................................120 3.5. A criança e a tecnologia.....................................................................................124 3.6. A criança e o consumo.......................................................................................134 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................140 REFERÊNCIAS............................................................................................................144 APÊNDICE...................................................................................................................154. xi.

(12) RESUMO. O século XX, marcado pela consolidação do progresso técnico e científico, lança o homem em um novo cenário, com consequentes repercussões em seus modos de ser. As crianças, seres históricos e ativos, desenvolvem-se nesta conjuntura. Uma parcela desta população insere-se em um contexto que pode ser denominado de infância hiperrealizada, marcado pela realidade virtual, ritmo de vida acelerado, apelo ao consumo, excesso de informações e altas expectativas de desempenho e sucesso. A despeito do lapso temporal, o filósofo Martin Heidegger traz contribuições para uma reflexão sobre a experiência destas crianças a partir da discussão sobre a “Questão da Técnica”. O objetivo deste trabalho é, portanto, compreender, em uma perspectiva heideggeriana, a experiência de algumas crianças que vivem no contexto pós-moderno da infância hiperrealizada. O estudo apresenta um delineamento fenomenológico com enfoque exploratório e compreensivo. A pesquisa contou com oito participantes, com idades entre sete e nove anos, estudantes de escola privada do município do Natal-RN. Para a construção dos dados foram utilizadas estratégias lúdicas, visando uma aproximação do vivido. A partir de uma compreensão fenomenológica, apreende-se que o sentido de ser criança é associado primordialmente ao brincar e estudar. As relações com os pais refletem as mudanças advindas da pós-modernidade, evidenciando-se, em especial, a confusão ante a falta de parâmetros seguros que sirvam de norte no processo educativo e a solidão frente, principalmente, à ausência paterna no cotidiano dos filhos. O salto para o ciberespaço e o advento da cultura do consumo perpassam as vivências da infância, subvertendo as experiências de tempo e espaço. Nas respostas das crianças ao avanço tecnológico evidencia-se, por vezes, o domínio da impropriedade. Em alguns momentos, entretanto, elas parecem questionar a técnica; na descoberta do mundo em que vivem, experimentam as oportunidades que se apresentam, e conseguem relacionarse com a técnica como possibilidade, e não como necessidade. Assim sendo, ressalta-se a necessidade de abertura para compreender os sentidos de ser criança para aqueles que já nasceram na Era da Técnica, pois, somente assim, será possível encontrar caminhos para uma profícua intervenção no âmbito desta relação. Palavras-chave: subjetividade; pós-modernidade; infância; analítica heideggeriana; fenomenologia. xii.

(13) ABSTRACT. The twentieth century, marked by the consolidation of scientific and technical progress, places men in a new scenario with consequent repercussions on their lifestyle. Children, historical and active beings, develop in this new setting. A portion of this population falls in a context that can be called hyper-realized childhood, marked by the virtual reality, accelerated pace of life, consumer appeal, information overload and high expectations of performance and success. Despite the time lapse, the philosopher Martin Heidegger brings contributions to a reflection on the experience of these children from the discussion on "The Question concerning Technology." The objective of this work is therefore to understand, in a Heideggerian perspective, the experience of some children who live in the postmodern context of hyper-realized childhood. The study presents a phenomenological design with exploratory and comprehensive focus. The research involved eight participants, aged between seven and nine years old, private school students in the city of Natal, RN. For data gathering 'play' strategies were used, seeking an approximation with their every day life. From a phenomenological understanding, the study captures that their perception of being a child is primarily associated with playing and studying. Relationships with parents reflect changes resulting from postmodernity. Such as confusion caused by the lack of reliable parameters to guide the educational process and loneliness observed to be caused mainly by father's absence on children's daily routine. The leap into cyberspace and consumer culture permeates the experiences of childhood, subverting the experiences of time and space. In the children's responses to technological advancement, the domain of impropriety can be observed. However, sometimes they seem to question technology; In the world they live in, they experience opportunities as they present themselves, and relate to technology as a possibility, not a necessity. Thus, the need for openness to understand the meaning of being a child for those who were born in the Era of Technology is emphasized. Only then, one can find ways to a fruitful intervention in that relationship. Keywords:. subjectivity;. postmodernity;. phenomenology.. xiii. childhood;. analytical. Heidegger,.

(14) 14. APRESENTAÇÃO. O interesse pela infância acompanha minha trajetória antes mesmo do ingresso na universidade, sendo inclusive um dos motivadores para a escolha pelo curso de graduação em psicologia. Ao ingressar no curso participei, inicialmente como aluna voluntária e, depois, como bolsista de pesquisa, do Núcleo de Estudos Sócio-Culturais da Infância e Adolescência (NESCIA), colaborando em diferentes pesquisas que envolviam o público infantil. No estágio curricular, minha opção não foi diferente; busquei ampliar o conhecimento sobre a criança a partir da prática em Psicologia Clínica Infantil Humanista-Existencial, estágio que me propiciou a oportunidade do aprendizado no encontro com algumas crianças, em contextos diversos. O percurso empreendido suscitou indagações que deram origem à proposta do presente trabalho. A vivência do estágio curricular possibilitou o contato com diversas expressões de sofrimento psíquico infantil, apresentadas, em sua maioria, por crianças que vivenciavam a infância em contexto de vulnerabilidade social – situações de baixa renda, institucionalização e violência, por exemplo. A despeito da inegável pertinência do olhar acadêmico voltar-se a tal população, especialmente considerando-se o contexto de uma universidade pública, algumas leituras nessa época e o contato com crianças no âmbito familiar instigaram-me a compreender a infância vivida pelas crianças de classes econômicas privilegiadas, que “habitam” um mundo, certamente diverso daquele das crianças de baixa renda, mas, sob uma perspectiva existencialista, também inóspito e incerto. Levando em consideração as mudanças verificadas na sociedade contemporânea, e a partir da abordagem de temas como avanço tecnológico, consumismo, novos arranjos familiares, dentre outros, foi consolidando-se o interesse em conhecer um.

(15) 15. pouco mais esse “outro lado” da infância, em compreender as repercussões das transformações oriundas da modernidade na experiência de crianças que vivenciam a infância que pode ser denominada, conforme Narodowski (2001), de hiper-realizada. Tais crianças por vezes são consideradas, pelo senso comum, felizes, por já “terem tudo”; numa perspectiva científica, entretanto, alguns estudos apontam intenso sofrimento nesta parcela da população e associam tal fenômeno às transformações da pós-modernidade (Furlan & Gasparin, 2003; Meira, 2003; Salles, 2005). A partir de tal cenário, surgiram alguns questionamentos acerca da infância que vive no contexto hiper-realizado: como é ser criança na pós-modernidade? Como é ser criança no contexto das novas configurações familiares? O que mudou na rotina da criança, no seu brincar, nas suas relações? Quais as repercussões das mídias virtuais nos modos de ser criança? Na tentativa de conhecer um pouco mais acerca do tema em foco, foram realizadas buscas sistemáticas em algumas bases de dados (Scientific Electronic Library Online/Scielo, Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia/BVS Psicologia, PsycINFO), mas um reduzido número de pesquisas empíricas envolvendo o público alvo dessa pesquisa foi localizado. Tal achado levou-me a constatar um fenômeno intrigante: a produção acadêmica em psicologia com crianças contempla apenas parte da infância atual. Percebendo-se essa “lacuna”, e aliando-a ao interesse prévio pelo tema, a proposta da presente pesquisa foi elaborada no intuito de ouvir crianças do cenário da infância hiper-realizada, visando compreender os sentidos dados por elas à experiência de ser criança na pós-modernidade. Na busca de consecução do objetivo proposto, a presente dissertação está estruturada. da. seguinte. forma:. na. introdução,. a. temática. é. apresentada,.

(16) 16. contextualizando-se a questão de pesquisa e delimitando-se os objetivos a serem alcançados. Desenvolvem-se, ainda, nesta seção, as ideias que embasam o estudo empírico, iniciando-se por um percurso pela história social da infância e culminando com uma breve discussão acerca da pós-modernidade. O cenário da infância hiperrealizada é então delineado, buscando-se discutir os principais vetores que o caracterizam. Em seguida, algumas ideias do filósofo Martin Heidegger são apresentadas e, a partir destas, procede-se à discussão sobre a Era da Técnica. A seção seguinte refere-se ao método, apresentando-se os participantes da pesquisa, os instrumentos e procedimentos de construção e análise dos dados. Os resultados e discussão apontam os principais achados do estudo empírico, buscando uma compreensão da experiência das crianças à luz da analítica heideggeriana. Por fim, nas considerações finais, procura-se apontar as principais contribuições e limitações do estudo, desvelando novos caminhos para pesquisas sobre o tema..

(17) 17. 1. INTRODUÇÃO. As transformações no campo do trabalho verificadas no decorrer da história afetaram, de forma significativa, as relações entre indivíduo e sociedade. A partir da Sociedade Industrial, os indivíduos foram fixados em padrões sociais de classe, gênero, profissão e em normas de comportamento estáveis e socialmente reconhecidas, à medida que se incrementava a racionalidade tecnológica – como metáfora de ordem – e a urbanização, fenômenos que, acompanhando a industrialização, indicavam o ideal de progresso, acarretando mudanças significativas na vida em sociedade (Dantas, 2009). Progressivamente, a predominância das tecnologias de informação, os avanços da realidade virtual e a ampliação das possibilidades de interação mediadas por artefatos tecnológicos (Sennett, 1975; Tajfel, 1984; Giddens, 2002; Hall, 2002, citados por Salles, 2005) contribuíram para que o século XX entrasse para a história como signo da consolidação do progresso técnico e científico e do grande salto para o ciberespaço (Dantas, 2009). O avanço das tecnologias de informação e comunicação, em especial, produziram algumas características específicas dos dias atuais que, marcando diferenças da chamada modernidade clássica, confere à atualidade o estatuto de pós-modernidade (Saraiva, 2005). Dantas (2009) utiliza os termos pós-modernidade e contemporaneidade indistintamente, para referir-se a um conjunto de mudanças ocorridas nos mais diversos campos da atividade humana a partir da década de 1960. Furlan e Gasparin (2003), por sua vez, abordam o tempo pós-moderno ou pós-industrial, marcado pelo fenômeno da globalização; apontam que, nos dias de hoje, vive-se um momento peculiar da história,.

(18) 18. em que há uma espécie de culto ao novo que insere a sociedade contemporânea em um conjunto de conhecimentos a serviço da produção e do consumo. Harvey (2011) caracteriza a condição pós-moderna a partir das mudanças nas práticas culturais e político-econômicas, datadas do início da década de 70 do século passado e vinculadas à emergência de novas formas de experimentar o tempo e o espaço. O autor, entretanto, alerta que tais mudanças não anunciam algo inteiramente novo, que poderia caracterizar uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial. Giddens (1991), também opta por não referir-se a um encerramento da modernidade – não concordando com as denominações “pós-modernidade”, “´pósmodernismo”, “sociedade pós-industrial” – defende, outrossim, a utilização de termos que apontem a emergência de um novo tipo de sistema social para referir-se aos dias atuais, tais como “sociedade de informação” e “sociedade de consumo”. Bauman (2001), por sua vez, cria um termo para se referir aos tempos atuais – modernidade líquida, “no que parece uma tentativa de oferecer ‘fluidez’ como a principal metáfora para o estágio presente da era moderna” (p. 8). A literatura evidencia uma diversidade de termos para denominar o tempo atual e demarcar as diferenças em relação ao período que o precede. Para registro nesse trabalho, os diversos termos referidos para nomear o período em foco serão utilizados indistintamente, em consonância com a opção de cada autor referenciado. As crianças, como seres históricos, ativos na conjuntura social e econômica, são também atingidas pelas transformações sociais, a ponto de alguns autores, como MarínDíaz (2010) e Postman (1999), chegarem a apontar a morte da infância. Ainda que a imaturidade biológica seja um aspecto universal dentro das sociedades humanas, a instituição “infância” assume “naturezas” que variam segundo épocas e condições históricas diferentes. Assim, pode-se dizer que a infância é uma construção de cada.

(19) 19. grupo social e não um “em si”, uma essência. Neste sentido, a afirmação de que a “infância acabou” desconsidera a produção social da diferença, uma vez que o que morre é aquela infância que se conhece em um determinado momento histórico. Seria, portanto, razoável admitir que as representações de infância de cada época encerram “mortes” e “nascimentos” diversos, não sendo cabível tomar o modelo de infância de um determinado período histórico ou estrato social como protótipo da infância (Castro, 2002; Marín-Diaz, 2010; Pinto & Sarmento, 1999; Sarmento, 2005; Soares, 2005). Diversas características são associadas à denominada infância pós-moderna. Furlan e Gasparin (2003) ressaltam, por exemplo, a consideração dessa camada da população como clientes passíveis de consumir mercadorias e como seres em quem se deve investir para que estejam aptos a competir no mercado global e informatizado do futuro. Meira (2003), em instigante análise da infância contemporânea pautada nas ideias de Walter Benjamin, também aponta o consumo como marca da infância atual, com claras repercussões em diversos âmbitos, inclusive no brincar. Considerando esse cenário, Narodowski (2001) distingue dois grandes pólos de infância que coexistem na sociedade contemporânea. A infância hiper-realizada, foco deste trabalho, é definida pelo autor como a infância da realidade virtual (o que justifica sua denominação), constituída por crianças que vivem em um contexto permeado pela internet, computadores e diversos canais de TV e, devido à facilidade de acesso, muitas vezes acabam por ter seu processo de socialização mediado por tais recursos midiáticos. Pode-se ampliar tal noção, considerando que fazem parte deste grupo as crianças que vivem em um cenário que propicia a experiência de um ritmo de vida muito acelerado – decorrente do excesso de informações e possibilidades de escolha – sendo cobradas, cada vez mais, a acompanhar um mercado de consumo e se capacitar no sentido da garantia de um futuro promissor, de modo a se tornarem adultos bem sucedidos..

(20) 20. O outro pólo da infância contemporânea apontado por Narodowski, o da infância des-realizada, é o que ele chama de infância da realidade concreta. Trata-se da infância “que é independente, que é autônoma, porque vive na rua, porque trabalha desde muito cedo” (2001, p. 174); as crianças dessa infância, apesar de serem atingidas por muitas informações, assim como as crianças da infância hiper-realizada, têm um acesso mais restrito às possibilidades de consumo e, diante dessa limitação, assim como da comum falta de perspectivas para o futuro, acabam por fixar-se no momento presente. A despeito de ressalvas às denominações propostas por Narodowski (2001) para os diferentes pólos da infância, a distinção feita pelo autor parece pertinente. Neste estudo, cuja temática é o ser criança no cenário da infância hiperrealizada, busca-se, numa perspectiva fenomenológica hermenêutica, compreender a infância que se configura na pós-modernidade, desvelando os sentidos de ser criança a partir das narrativas infantis. São inúmeros os olhares possíveis em relação ao tempo infância.. Nesta. dissertação faz-se a opção pela perspectiva Existencialista. O filósofo Martin Heidegger merece destaque nessa discussão por ter como fundamento de toda a sua investigação exatamente o sentido do ser, influenciando a psicologia, principalmente, com o que chama de analítica da existência (Sá, 2010). Para Heidegger, o homem – caracterizado como Dasein, enquanto ser-no-mundo e ser-com, projeta-se para fora de si mesmo sem, contudo, sair das fronteiras do mundo em que se encontra, tendo em vista a consideração de que o eu e o mundo são inseparáveis (Chauí, 1979). Ao referir-se ao homem com Dasein, Heidegger busca evidenciar o modo específico de ser do homem, caracterizado por ser-com-os-outros e ser-no-mundo e por sua capacidade de atribuir sentidos e significados às suas experiências (Roehe, 2006)..

(21) 21. Heidegger enfatiza que, no mundo, o ser vive, inicialmente, na maioria das vezes, um modo de vida impróprio e impessoal, típico da existência humana, relacionando-se de modo involuntário com suas possibilidades de ser (Sá, 2002a). Nesse sentido, o filósofo faz uma discussão acerca do que pode ser chamado de Era da Técnica, quando reflete sobre a técnica moderna, apontando reflexões para o mundo contemporâneo. O filósofo alerta para a necessidade do questionamento da técnica moderna para se conseguir um relacionamento livre com a mesma, e do perigo do homem ficar preso a esta, sem liberdade, ao afirmá-la ou negá-la apaixonadamente (Heidegger, 1954/2010). Ele ressalta a importância da busca pela essência da técnica, questionando a sua concepção como instrumento e apontando a necessidade de experimentar-se sua essencialização como destino de um desabrigar, pois é esse desabrigar “que leva o homem a perceber e a entrar na mais alta dignidade de sua essência” (Heidegger, 1954/2010, p. 34). A discussão heideggeriana sobre a “Questão da Técnica” mostra-se extremamente relevante para a compreensão da experiência de ser criança na contemporaneidade.. Autores como Narodowski (2001), Furlan e Gasparin (2003),. Salles (2005), Meira (2003), Souza e Salgado (2008), que discorrem acerca de questões referentes ao que se concebe como infância contemporânea hiper-realizada, problematizam a infância atual e alertam que as crianças podem estar se distanciando cada vez mais do seu ser-mais-próprio, à medida que são expostas a uma cultura tecnológica e de consumo em massa que pode estar comprometendo a expressão de sua singularidade. Partindo dessas discussões acerca do ser criança hoje, considera-se importante ouvir das próprias crianças da infância hiper-realizada suas experiências de infância, buscando-se, assim, chegar aos sentidos mais próprios de ser criança nesse contexto..

(22) 22. Em consonância com a perspectiva de pesquisa que concebe as crianças como sujeitos ativos na construção de sua história e capazes de atribuir significado a sua vivência (Cruz, 2008), busca-se, para esse trabalho, realizar uma pesquisa não apenas sobre crianças, mas com crianças. A partir do exposto, o objetivo desse trabalho consiste em compreender os sentidos de ser criança para aquelas que vivem no cenário da infância hiper-realizada. Tendo como norte a consecução deste objetivo geral, têm-se como objetivos específicos: - Apreender, a partir da perspectiva das crianças, seus modos de se relacionar com os outros – adultos e pares; - Conhecer a forma como tais crianças utilizam seu tempo; - Observar como se revelam as experiências de passado, presente e expectativas quanto ao futuro para essas crianças; - Relacionar a representação de infância apresentada pela criança (infância pensada) com sua vivência como criança (infância vivida); - Desvelar, a partir da perspectiva das crianças, consequências de viver em um contexto de infância hiper-realizada..

(23) 23. 1.1.. A PÓS-MODERNIDADE E A INFÂNCIA. O trabalho do conhecimento implica mergulhar profundo nos paradoxos e questões de nossa época e voltar à tona com maior clareza sobre os diferentes desafios que precisam ser enfrentados. (Solange Jobim e Souza). 1.1.1. Traçando um caminho: considerações sobre as infâncias e suas representações em uma perspectiva histórica. Segundo a sociologia da infância, discutida por autores como Belloni (2009), Pinto e Sarmento (1999), Postman (1999) e Soares (2005), a infância se dá em um contexto socialmente construído, transformando-se ao longo da história da humanidade. A compreensão do ser criança no mundo pós-moderno exige, pois, que seja traçado um breve resumo histórico sobre a infância. De acordo com Ariès (1981) pode-se dizer que na Idade Média (Séc. V ao XV) não existia o sentimento de infância, não havia a consciência de peculiaridades dessa fase de desenvolvimento que distinguisse as crianças dos adultos. O período da infância era passageiro, logo que a criança nascida não precisasse mais dos cuidados de sua mãe ou ama, ela já compartilhava da vida dos adultos, convivendo com eles nos mesmos ambientes. Tal ideia, no entanto, não é consensual entre os diversos historiadores que se dedicam a tal temática. Heywood (2004), apesar de considerar Ariès como o grande responsável pela abertura das discussões sobre a história da infância, alerta para a ingenuidade, referida por alguns autores, da abordagem que Ariès faz das fontes históricas que embasam seus escritos, principalmente no que diz respeito às evidências iconográficas. Segundo Heywood (2004), os autores criticam o exagero na afirmação de Ariès acerca da.

(24) 24. inexistência de qualquer consciência de infância na civilização medieval; contrapondose a tal ideia, referem, inclusive, a existência de algumas concessões nos códigos jurídicos medievais “ao status de minoridade das crianças” (p. 26); e colocam que as análises de Ariès são centradas no momento histórico por ele vivido, não considerando a possibilidade de existência de um sentimento de infância próprio de cada época. No fim do século XVI, desenvolveu-se, no contexto familiar, de acordo com Ariès (1981), o sentimento de infância como “paparicação”. Num período em que as famílias começavam a se importar mais com as crianças, devido às mudanças econômicas e sociais pelas quais passava a sociedade, estas começaram a ser percebidas como seres graciosos, que relaxavam os adultos. No século XVII, no entanto, fora do ambiente familiar, começaram as críticas ao sentimento de “paparicação” da infância, surgindo um movimento de negação a essa infância “paparicada”, principalmente por parte dos escolásticos e estudiosos da época, que acreditavam que era preciso disciplinar as “frágeis criaturas de Deus”, pois uma criança mimada não se tornaria um bom homem. A partir daí, desvelou-se um novo sentimento de infância e o interesse em se conhecer as peculiaridades psicológicas dessa fase da vida, além de uma preocupação moral, a fim de se obter um maior controle no desenvolvimento dessa criança e futuro cidadão (Ariès, 1981). Esse novo sentimento, nascido fora do ambiente familiar, por sua vez, passou a habitar as famílias do final do século XVII, quando surgiram também as primeiras preocupações com a higiene e a saúde física das crianças. Esse século inaugurou não apenas a preocupação com o futuro da criança, mas também com a sua existência no presente, de modo que no século XVIII as crianças passaram a assumir lugar central nas famílias (Ariès, 1981). Para Hansen (2009), a criança que até então era vista no imaginário como “nada”, passou a ser “tudo”, na medida em que o investimento na sua.

(25) 25. formação poderia, por exemplo, significar uma estabilidade política futura. Ainda de acordo o mesmo autor, diante da busca por uma melhor forma de se educar as crianças, surgiram, nessa época, manuais e tratados de costumes que ensinavam lições práticas aos pais. Um anúncio do sentimento moderno de infância, segundo Ariès (1981), surgiu no século XIX, uma vez que se instalou de forma mais evidente a tendência a separar o mundo das crianças do mundo dos adultos. De acordo com Elkind (2004) e Silva (2008), no final desse século, o interesse da psiquiatria por assuntos relativos às crianças, e o estabelecimento da pediatria e da psicologia infantil como disciplinas científicas, contribuíram para um aumento considerável no reconhecimento cultural da infância como fase distinta da vida. Percebe-se que essa singularidade, que diferenciou as crianças dos adultos, também as transformou, segundo o olhar de algumas correntes teóricas, em uma categoria de sujeitos com algum tipo de incapacidade e que, por esta razão, necessitava de controle da família e da escola. A sociologia da infância (Belloni, 2009; Pinto & Sarmento, 1999; Postman, 1999; Soares, 2005) defende as crianças como pertencentes a. um grupo geracional diferente dos adultos, mas não por considerá-las incapazes, e sim por conceber que têm habilidades e comportamentos que lhes são próprios, conferindolhes, assim, o status de sujeitos ativos e capazes. É importante ressaltar que tais variações na concepção de infância foram decorrentes de mudanças macrossociais, mudanças essas que influenciaram a forma de ver as crianças em cada época. Segundo Stearns (2006), a evolução do modelo econômico na história da humanidade teve grande influência na percepção da infância ao longo dos séculos..

(26) 26. O autor coloca que, na época da prática da caça e coleta, por exemplo, a infância era vista como a fase da brincadeira e do trabalho ocasional; as crianças por vezes atrapalhavam o trabalho dos adultos e por isso eram mais comumente vistas como “peso para o sustento”, já que quase não ajudavam na subsistência da família. Com o passar do tempo, e com o surgimento da agricultura, mais especificamente, as crianças passaram a ser utilizadas como mão de obra no trabalho; nessa época a natalidade aumentou bastante, devido ao interesse de toda família ter filhos para ajudar na subsistência. Com a revolução industrial, surgiu o modelo econômico moderno; as máquinas substituíram o trabalho das crianças, que, nessa época, passaram a ser vistas como seres que precisavam estudar e se especializar para acompanhar a tecnologia que se modernizava cada vez mais; as crianças saíram, então, no âmbito do modelo moderno, da posição de “seres ativos” e passaram a ser “passivos econômicos” (Stearns, 2006). Tal modelo econômico moderno, caracterizado principalmente pelo aumento da tecnologia (industrialização fortalecida pela globalização), pelo mercado de trabalho cada vez mais competitivo (necessidade de investimento educacional), pelo aumento da urbanização (decorrente do processo de industrialização) e pela entrada das mulheres em massa no mercado de trabalho (Stearns, 2006), acabou por trazer consequências à infância, que perduram até os dias de hoje. Antes de caracterizar a infância contemporânea, faz-se necessário desvelar brevemente o cenário pós-moderno que, com suas particularidades, constitui os modos de ser criança hoje..

(27) 27. 1.1.2. Preparando o cenário: da modernidade ao contexto pós-moderno. A pós-modernidade é, segundo Harvey (2011), uma condição histórica que requer elucidação, por tratar-se de uma transição ainda a completar-se. Nesse sentido, ressalta-se a importância de abordar a modernidade para compreender os dias atuais, como bem assinala Giddens (1991): A desorientação que se expressa na sensação de que não se pode obter conhecimento sistemático sobre a organização social, devo argumentar, resulta, em primeiro lugar, da sensação de que muitos de nós temos sido apanhados num universo de eventos que não compreende-os plenamente, e que parecem em grande parte estar fora de nosso controle. Para analisar como isto veio a ocorrer, não basta meramente inventar novos termos, como pós-modernidade e o resto. Ao invés disso, temos que olhar novamente para a natureza da própria modernidade (pp. 12-13).. De acordo com Dantas (2009), a chamada Sociedade Industrial, como ficou conhecida a Europa principalmente a partir da segunda metade do século XIX, sendo influenciada. pelas. repercussões. da. Revolução. Industrial,. foi. marcada. por. transformações na indústria, tecnologia e no mundo do trabalho que afetaram de forma profunda o modo de vida do homem. Tal sociedade promoveu a racionalidade tecnológica como símbolo de ordem, verificando-se, como nunca antes, a valorização do ideal de progresso, que torna a industrialização e a urbanização fenômenos caros ao homem moderno (Brito & Ribeiro, 2002/2003; Dantas, 2009). O presente cenário propiciou o declínio do antigo status tradicional apresentado pelas sociedades até então – que se caracterizavam por apresentar tradições sociais bem definidas e relações de poder provenientes da ordem divina (Dantas & Moura, 2009) – e proporcionou as condições necessárias para a moderna concepção de indivíduo, que apresentava um cunho rígido e individualista, ao conceber o homem como um ser que deve a tudo e a todos transformar, com o intuito de saciar seu desejo de enriquecer a.

(28) 28. nação: “A ciência é quem pode fornecer ao homem um amparo moral e ético, uma crença, enfim, não mais em Deus, é certo, mas no próprio homem” (Brito & Ribeiro, 2002/2003, p. 148). O projeto da modernidade entrou em foco durante o século XVIII, tendo por horizonte desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais. Buscava-se utilizar o conhecimento em prol da emancipação humana. O domínio científico da natureza deveria acabar com a escassez e com as calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento promoveria a libertação das irracionalidades do mito, da religião, do uso arbitrário do poder e mesmo do lado sombrio da própria natureza humana (Harvey, 2011). No momento em que o indivíduo não se encontrou mais referência nas relações tradicionais de dependência social, ele passa a apoiar-se na noção de propriedade privada e de valorização extrema do trabalho para legitimar sua existência (Dantas, 2009); sendo inserido em um contexto moderno caracterizado pela busca de ordem e uma consequente escassez de liberdade (Bauman, 1998). É importante ressaltar que o ideal de ordem moderno já confrontava o homem com certo sentimento de vazio, angústia e perda de sentido, tendo em vista que o homem moderno perdeu a referência dos ideais divinos e passou a viver de acordo com outros parâmetros de referência, de trabalho e produção, mas que o fazia depender dele próprio (Brito & Ribeiro, 2002/2003). No tocante ao primado da ordem, Bauman (1998) destaca a modernidade como sendo representada por ideais de beleza – “‘essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização’” (p. 7), limpeza – “‘a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização’” (p.7) e ordem – “Ordem é uma espécie de compulsão.

(29) 29. à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão’” (p. 7). Toda essa beleza, limpeza e ordem estariam, outrossim, relacionadas ao padrão moderno de realização do homem a partir das noções já citadas de propriedade privada e valorização extrema do trabalho. Ressalta-se, contudo, que o advento da industrialização e sua consequente urbanização, fenômenos em destaque nos tempos modernos, contribuíram para o aumento do número de trabalhadores “não proprietários”. Tais trabalhadores, por não apresentarem o padrão de indivíduo compatível com o modelo moderno – podendo ser considerados a “sujeira” da modernidade, de acordo com as ideias de Bauman (1998) do sonho da pureza moderna – acabavam condenados à miséria e decadência social (Dantas, 2009): Logo, aqueles que não são proprietários não possuem nem mesmo uma inscrição territorial mínima em sua comunidade que lhes permita gozar do benefício de uma segurança mínima ou de reconhecimento social como indivíduo. Desta forma, até o século XIX, os indivíduos que pertenciam à classe de “não-proprietários” não dispunham de nenhum direito social, sendo social e moralmente desprezados ( pp. 109110).. Nesse sentido, na tentativa de elaborar uma solução parcial para esse problema, e buscando manter a coesão da sociedade civil, a Sociedade Industrial instituiu a chamada propriedade social. Com a função da propriedade privada concedida aos nãosproprietários, assegurando-lhes proteção e segurança para que pudessem existir como indivíduos, atribuiu-se ao homem uma responsabilidade por seu próprio destino a partir da inserção dele no mundo do trabalho assalariado (Dantas, 2009). Dessa forma, a civilização moderna acabou por eliminar muitos dos paradoxos existentes no seu modo de conceber o indivíduo, fazendo com que o homem, na.

(30) 30. contemporaneidade, passasse a ser livre para buscar as mais diversas formas de prazer sem culpa (Dantas, 2009). Para Bauman (1998), “os homens e as mulheres pósmodernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (p. 10). Em sua discussão acerca da modernidade líquida, Bauman (2001) relata que houve um estado avançado de desintergação/derretimento dos sólidos dos tempos prémodernos: Se na modernidade prevaleciam os signos que determinavam um contexto social ordenado, racional, instrumental e mecanizado: o pertencimento a uma profissão, a uma classe, a uma ideologia, a um sexo, enfim, a uma identidade fixa, na pós-modernidade constatamos uma identidade heterogênea e plural: sincretismo ideológico, mobilidade profissional, indiferenciação sexual, dentre outros aspectos que revelam um novo espírito do tempo (Dantas, 2009, p. 119).. Livre da rigidez dos valores e modelos da civilização moderna, poder-se-ia conceber o indivíduo contemporâneo como um sujeito feliz e realizado. No entanto, percebe-se que, apesar da reavaliação dos valores ser instigante, os valores reavaliados não necessariamente garantem um estado de satisfação (Bauman, 1998). Portanto, o que se vê, nos dias de hoje, segundo Dantas (2009), é um homem fragilizado, carregando em si um sentimento de insuficiência a partir de uma subjetividade de caráter estetizante na qual o olhar do outro ocupa posição central. Bauman (1998) aponta a diferença central evidente entre o mal-estar do indivíduo na modernidade e na pós-modernidade. Enfatiza que, no primeiro momento, o mal-estar provinha de uma segurança proporcionada pela civilização, que acabava por favorecer o cerceamento das liberdades individuais e o sentimento de culpa provocado pelo desejo de transgressão dos modelos modernos. Já no que diz respeito ao mal-estar da pós-modernidade, o autor discorre que a liberdade que essa época dispõe para o.

(31) 31. sujeito, livrando-o para buscar o prazer sem culpa, acaba por oferecer uma segurança muito pequena, que produz no sujeito contemporâneo uma experiência de ruptura e fragmentação. Segundo Dantas (2009), a pós-modernidade – que surge no cenário, dentre outros fenômenos, da supervalorização da cultura de massa, da televisão, do movimento feminista, da rápida expansão do consumo de massa, do neoliberalismo, da globalização e do enfraquecimento das normas disciplinares e autoritárias – oferece uma grande abertura de possibilidades existenciais para o sujeito que dependerão da sua capacidade de realização. Com essa liberdade e gama de possibilidades, o homem contemporâneo sofre sem saber exatamente como utilizá-las em seu proveito, já que a sociedade em questão não oferece de forma clara os parâmetros a serem seguidos: Isso não significa, porém, que os ideais de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados, ou tenham perdido um tanto do brilho original. Agora, todavia, eles devem ser perseguidos – e realizados – através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais (Bauman, 1998, p.9).. O mundo contemporâneo, que Bauman (2011) chama de líquido, é assim conhecido exatamente pela característica que tem de jamais conservar sua forma por muito tempo: Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (...); as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição. (...) esse mundo, nosso mundo líquido moderno, sempre nos surpreende; o que hoje parece correto e apropriado, amanhã pode muito bem se tornar fútil, fantasioso ou lamentavelmente equivocado (pp. 7-8).. Harvey (2011) também ressalta ser a pós-modernidade marcada por uma intensificação da volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção,.

(32) 32. processos de trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas estabelecidas, o que leva à sensação de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” (p. 258). O autor destaca, ainda, no domínio da produção de mercadorias, a ênfase na instantaneidade e descartabilidade, o que, configurando uma sociedade do descarte, se estende à tendência de atirar fora não só mercadorias, mas valores, relacionamentos, lugares e modos de agir e ser. Nesse sentido, Miranda (2005) ressalta que a corrida desenfreada do sujeito contemporâneo por novidades que, no piscar dos olhos, já se tornam obsoletas, vem garantindo ao homem novas relações de tempo e espaço que, por vezes, deparam o sujeito contemporâneo com um sentimento de vazio – “Do cinema mudo à realidade virtual, do telégrafo ao e-mail, do zepelin ao ônibus espacial, as mudanças ocorridas neste século alcançaram um patamar até então desconhecido em milhares de anos da história da humanidade” (p. 29). Acerca desse sentimento, a autora destaca, ainda, uma polêmica que aparece no final do século XX: “Estaríamos assistindo ao esvaziamento da sociabilidade, ao favorecimento do individualismo contemporâneo, ou à produção de novas formas de socialização?” (p. 40). De acordo com Bauman (2001), o homem que vive na modernidade líquida tenta buscar novos padrões, códigos e regras que possam servir como pontos estáveis de orientação, e não os encontra; o que não quer dizer que ele não seja mais dependente da sociedade para constituir-se enquanto indivíduo. Para o autor, o que acontece é que tais padrões e configurações não são mais dados, mas, ao contrário, eles existem e são muitos, chegando a chocar-se entre si e contradizer-se em alguma medida, o que faz com que não sejam mais providos de poderes de coercitivamente compelir e restringir as possibilidades do sujeito..

(33) 33. Diante dessa diversidade de padrões, e na busca por uma orientação, o sujeito contemporâneo – por influência do pensamento iluminista moderno, que deu início à consolidação das experiências subjetivas individualizadas e da capacidade humana de domínio de si e da natureza – passou a acreditar no maior desenvolvimento da ciência e da tecnologia como suportes para tornar o mundo mais estável e ordenado: Vivemos, acentuadamente, numa busca para que tudo esteja cada vez mais sob nosso comando. Queremos uma vida segura e previsível e, a ciência e tecnologia, estão inevitavelmente envolvidas em nossas tentativas de fazer face aos riscos inerentes do existir humano (Dantas & Moura, 2009, p. 222).. A partir do século XX, então, com o avanço das novas tecnologias, o mundo passa a apresentar-se cada vez mais referenciado por ilusórias promessas científicas, que respondem à necessidade do homem contemporâneo de ter controle absoluto sobre a vida (Dantas & Moura, 2009). Eis que surgem, então, instrumentos como a internet, a mídia e os diversos produtos tecnológicos que, como ideais de controle, passaram a constituir o mundo contemporâneo, que é cenário da infância pós-moderna.. 1.1.3. Crianças na pós-modernidade: contornos de uma infância hiperrealizada. No cenário pós-moderno, Narodowiski (2001) aponta a existência de dois pólos da infância que podem ser vivenciados pelas crianças na atualidade. A infância desrealizada é descrita pelo autor como sendo uma infância da “realidade real” (p. 174), vivenciada pelas crianças que vivem na rua, que trabalham desde cedo, e por isso são independentes e autônomas: “São também as crianças da noite, que puderam reconstruir uma série de códigos que lhes dão certa autonomia cultural e lhes permitem realizaremse, ou melhor, des-realizarem-se, esta é a palavra correta, como infância” (p. 174)..

(34) 34. Pode-se refletir sobre a existência deste pólo da infância ao se analisar as mudanças da sociedade – crescente avanço científico e tecnológico – que contribuíram para o aumento da desigualdade social, propiciando, dessa forma, a existência de crianças vivendo em situação de risco. Em decorrência de situações de trabalho e de vulnerabilidade social que vivencia, essa parcela da população infantil vive na urgência de prover necessidades imediatas, como a de subsistência. Dessa forma, as crianças dessa infância podem ser consideradas como “adultos em miniatura” (Furlan & Gasparin, 2003). O outro pólo definido por Narodowiski (2001), o da infância hiper-realizada, consiste na infância da realidade virtual, vivenciada pelas crianças que têm oportunidade de realizar sua infância com a internet, videogames, computadores, televisões e que “há tempo deixaram de ocupar o lugar do não-saber” (p. 174). Esse modo de vivenciar a infância pode ter seu sentido ampliado para a vivência em um ritmo muito acelerado, decorrente do excesso de informações e possibilidades de escolha, em um contexto que cobra, cada vez mais, que as crianças acompanhem um mercado de consumo em ebulição e se capacitem com o objetivo de garantir um futuro promissor, que possa torná-las adultos bem sucedidos – aparece aqui, mais uma vez, ainda que em contexto diverso, a ideia de “adulto em miniatura” discutida por Furlan e Gasparin (2003). Como foco dessa dissertação, a infância hiper-realizada será discutida a seguir nessa sessão. Ressalta-se que algumas situações apresentadas como referentes à vivência da infância hiper-realizada também podem ser vivenciadas pelas crianças da infância des-realizada, tendo em vista que, conforme aponta Narodowiski (2001), os dois modos de vivenciar a infância aqui apresentados não são estritamente polarizados,.

(35) 35. podendo, por vezes, um se misturar com o outro; no entanto, a vivência da infância desrealizada, em decorrência de suas peculiaridades, não será discutida nesse trabalho. Na atualidade, junto às transformações históricas e tecnológicas: O mundo e a cultura das crianças mudaram. As expectativas e exigências a que elas estão sujeitas multiplicaram-se. São outros os brinquedos que lhe são oferecidos, com os quais elas ocupam o tempo. As crianças da atualidade têm outro jeito de brincar, imaginar, sofrer, pensar e construir sua realidade infantil (Levin, 2007, p. 11).. Ciente dessas transformações, é importante refletir, em primeiro lugar, acerca dos lares que recebem as crianças na contemporaneidade. O ambiente familiar, anfitrião desses novos seres, foi se transformando ao longo do tempo, acompanhando as mudanças sociais, de modo que, nos dias de hoje, a família no formato conjugal, nuclear e heterossexual, com filhos biológicos de único casamento, inspirado no modelo nuclear burguês, vem dando espaço às, até então estigmatizadas, novas configurações de constituição e reconstrução do grupo familiar (Mantilla de Souza, 2006). Se antes era comum o homem ser provedor do lar e a mulher ficar em casa cuidando dos filhos, em famílias caracterizadas pela hierarquia e submissão feminina; nos dias de hoje, com a ampliação do mercado de consumo que favoreceu o trabalho feminino,. e. as. diversas. exigências. sociais. relacionadas. às. realizações. pessoais/individuais, é cada vez mais comum o surgimento de modelos familiares pósmodernos formados por pais divorciados, por pessoas que optam por criar filhos sozinhas (produção independente) ou, ainda, por casais homoparentais, que passaram a constituir família graças aos avanços tecnológicos e flexibilidade das normas sociais que possibilitaram a filiação independente da orientação sexual (Mantilla de Souza, 2006; Passos, 2006). Diante desse novo cenário no âmbito das configurações familiares, Wagner (2002) discute acerca do processo de transição e adaptação para novos modelos de.

(36) 36. famílias – monoparental, homoparental, reconstituída –, alertando que o mesmo encerra questões sociais multifacetadas, sendo necessário, então, se pensar nas possíveis repercussões que esses novos arranjos familiares podem acarretar no desenvolvimento das crianças que vivenciam esse período de transição. Nesse sentido, Passos (2006) reflete: Sem dúvida, a inserção dos diferentes arranjos familiares no cenário social exige deslocamentos. Embora transformações sejam inerentes à condição humana, nem sempre as adotamos, muitas vezes preferimos possibilidades que nos mantenham em um espaço sem ameaças e menos expostos a aspectos imponderáveis. Arriscar possibilidades exige uma disposição que, além de certas condições intrapsíquicas, requer boa dose de possibilidade de escolha – e responsabilização pelas consequências. Em contrapartida à possível vulnerabilidade, a “recriação de si” permite posturas mais flexíveis e a abertura necessária à compreensão das diferentes formas de ser família, seus processos de humanização, suas dificuldades e também seu potencial de superação (pp. 65-66).. Além desse contexto familiar mais amplo, cabe discutir a realidade dos pais na contemporaneidade. Os novos pais parecem, cada vez mais, não estarem preparados para receber seus filhos. Segundo autores como Campos e Souza (2003) e Petrini, Alcântara e Moreira (s.d.), nos dias de hoje os pais demonstram despreparo para abrir mão da correria do dia-a-dia e das exigências do trabalho, responsáveis por prover um maior poder aquisitivo que permita acompanhar o mercado consumidor atual: “O mundo moderno leva muitas pessoas a sonhos tão altos, a exigências tão grandes de crescimento econômico, de conhecimento, de estudos que, parece, não está sobrando tempo para viver, criar filhos, ser feliz com as coisas simples da existência” (Martins Filho, 2007, p.56). No tocante a esse aspecto, Petrini, Alcântara e Moreira (s.d.) refletem: A exigência de satisfação no momento presente coloca em questão o ideal do sacrifício individual em prol da família. A disponibilidade individual ao sacrifício para o outro é mais reduzida, o que provoca o rápido alcance do ponto de saturação do relacionamento.

(37) 37. conjugal. A independência econômica dos cônjuges configura maior autonomia individual e uma responsabilidade familiar mais compartilhada, o que predispõe, em muitos casos, à ruptura do vínculo familiar (p. 3).. No caso das mães, mais especificamente, a própria gravidez tem sido um paradoxo. Se, por um lado, a possibilidade de “dar à luz” a uma criança continua por encantar, por outro, de acordo com Martins Filho (2007), pode acarretar inquietações estéticas nas mulheres, que se preocupam em perder rápido todo o peso ganho durante a gravidez, tendo em vista uma sociedade que vive “o momento do marketing, do narcisismo expresso em corpos esculturais, em mulheres malhadas, em seios siliconados, que frequentemente impedem o desenvolvimento de uma lactação de sucesso” (p. 60). Além das preocupações estéticas, as mães ainda precisam trabalhar. Desde que entraram no mercado de trabalho, as mulheres ganharam mais uma responsabilidade, além do cuidado com os filhos: passaram a ser, junto com os homens, provedoras do lar. Tal ideal de igualdade entre homens e mulheres deu origem ao que se chama de formas mais democráticas e igualitárias de dividir as tarefas e responsabilidades no âmbito das famílias (Petrini, Alcântara & Moreira, s.d.). E então, com as mães fora de casa ajudando no sustento da família, e os pais sem retornar para o lar – e ainda as avós, que podiam assumir o lugar de cuidadoras, estando bem atarefadas e exercendo diversas funções na sociedade – com quem ficam os filhos? É então nesse contexto que se constata um aspecto cada vez mais comum na sociedade pós-moderna, denominado por Martins Filho (2007) de “terceirização das crianças”, que acontece quando os cuidados com os filhos são transferidos para outros que não os pais: as creches, as escolas e as babás, por exemplo..

(38) 38. Em casa, sob os cuidados das babás, e para que fiquem comportadas, as crianças tendem a receber atenção eletrônica – vídeos, televisão, jogos – cada vez em maior quantidade. Vale ressaltar que, mesmo no pouco tempo que passam com os pais, esses, muitas vezes, oferecem às crianças equipamentos eletrônicos para que elas se distraiam e os deixem descansar. A tecnologia passa a ser, então, por vezes, a principal companhia do dia-a-dia no mundo infantil (Levin, 2007; Pereira, 2008). Outro fator que, sem dúvida, contribuiu para o aumento da interação crianças e tecnologia foi o aumento da violência nos grandes centros urbanos. Se antes era comum as crianças brincarem nas ruas, com seus pares, atualmente a violência tem feito com que, pouco a pouco, os espaços coletivos deixem de ser ocupados pelas brincadeiras infantis, que estão cada vez mais ocorrendo nos apartamentos, casas de moradia ou de parentes próximos (Furlan & Gasparin, 2003; Salles, 2005). No ambiente da casa, ainda, muitas crianças não têm a companhia de irmãos, devido ao crescente número de famílias de classe média com filho único, consequência das transformações contemporâneas evidenciadas no ambiente das famílias com o passar do tempo (Passos, 2006). Além disso, nas famílias que têm muitas crianças, nos casos dos casamentos desfeitos e refeitos, pode acontecer: o problema da solidão no meio da multidão. Crianças em situações em que há um excesso de pessoas demandando atenção sentem-se muito sós e podem ter comportamentos muito parecidos com os de crianças marginalizadas, abandonadas ou terceirizadas por outros motivos (Martins Filho, 2007, p. 77).. Nesse novo contexto, então, em que o espaço coletivo das ruas foi sendo substituído pelas brincadeiras em casa, os grupos logo foram dando lugar aos jogos eletrônicos e à televisão, os quais privam as crianças de uma gama de aspectos indispensáveis ao desenvolvimento infantil, tais como a companhia dos pares, a.

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