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Significados atribuídos à infância

2. MÉTODO

3.1. Significados atribuídos à infância

No contato com as crianças, buscou-se compreender o que era ser criança para elas, sendo esta questão apresentada de formas diversas ao longo dos encontros, por meio de mediadores adequados à faixa etária contemplada pelo estudo. As respostas apontaram, inicialmente, um “saber sobre” o que é ser criança, remetendo ao conhecimento formal acerca do tema. Ao longo do tempo, entretanto, foi possível observar uma expressão mais espontânea por parte dos participantes, quando, então, buscaram na própria vivência as respostas à questão a eles dirigida.

Nos encontros com as crianças, algumas vezes, estas associavam o ser criança com conceitos que parecem ter sido apreendidos por elas principalmente no contexto escolar, no qual têm contato com assuntos relativos, por exemplo, às fases do desenvolvimento humano. A infância compreendida como fase da vida, etapa passageira que antecede o estágio adolescência/adultez, pode ser apreendida nos trechos abaixo:

Pesquisadora: certo, gente. E o que é criança? (...)

Fernanda: eu acho que é uma fase da vida da gente, a gente passa por várias fases, e essa é uma delas.

Pesquisadora: como é ser uma criança. O que você colocaria aqui pra ajudar Flip? Ele tá assustado, não sabe o que é criança e tá todo mundo chamando ele de criança. Como é ser uma criança?

Wii: não sei direito não.

Pesquisadora: é do jeito que você sabe, aqui nos nossos encontros não tem nada de certo e errado, nada, nada, nada. É do jeito que você sabe. Como é que você acha que é ser uma criança? O que você diria para Flip?

Pesquisadora: criança é o que? Você me falou um pouco no encontro passado. Wii: criança é a par... É a parte... É a segunda parte da vida depois de bebê.

Pesquisadora: aqui por que você lembrou criança, Luiza? (referindo-se a uma figura recortada pela criança no grupo).

Natália: é adolescente.

Luiza: porque são duas amigas.

Pesquisadora: e adolescente também lembra criança, Natália? Natália: porque de criança a gente vai pra adolescência.

Pesquisadora: ah, e qual é a diferença de criança pra adolescente? Tem alguma diferença ou não?

Olívia, Natália e Luiza: adolescente já vai pra faculdade... já não é mais criança. Já não brinca mais.

Olívia: é, já tá perto da puberdade.

Diante desses trechos, pode-se considerar natural que respostas dessa natureza tenham sido proferidas inicialmente pelas crianças, tendo em vista ser esperado que elas busquem suas respostas, a princípio, nos significados que lhes são dirigidos. Tal ideia remete à questão da impessoalidade colocada por Heidegger, principalmente no que diz respeito ao caráter da cotidianidade do impessoal, expresso pelo filósofo.

Heidegger (1927/2005) atenta para o fato de que na maioria das vezes, de início, o Dasein assume um modo de ser impessoal, marcado pelo predomínio do falatório, curiosidade e ambiguidade. Casanova (2006), por sua vez, alerta para a atenção em não se considerar apenas a função negativa do impessoal – aquela que afasta o homem do seu ser mais próprio – considerando que se deve, a todo custo, preocupar-se em escapar da ditadura do cotidiano; pelo contrário, o autor acredita na importância do impessoal ser visto como uma possibilidade existencial do ser-aí que precisa ser considerada, inclusive, para a emergência do que é mais próprio do homem:

É preciso levar a sério a afirmação de que todas as possibilidades existenciais do ser-aí em geral estão enraizadas na semântica fática de cada mundo. No momento em que fazemos isso, mesmo a diferença entre impessoalidade e pessoalidade, impropriedade e propriedade ganha um novo contorno. Nesse caso, o próprio vem à tona como uma modulação ou uma modificação do impróprio, como uma nova possibilidade de apropriação da linguagem sedimentada na cotidianidade. Dizer isso equivale ao mesmo tempo a afirmar que a possibilidade mesma de novos mundos encontra-se enraizada na significância do mundo fático mediano e que toda e qualquer postura negativa em relação a esse mundo sedimentado tem consigo por consequência um obscurecimento das possibilidades criativas aí vigentes (p. 83).

No caso das crianças participantes da pesquisa, se, inicialmente, elas pareciam preocupadas em dar “respostas corretas” – titubeavam um pouco para responder às questões que lhe eram colocadas, parecendo buscar corresponder a possíveis expectativas dirigidas a elas –, no decorrer da pesquisa, no entanto, ficaram mais à vontade, expressando significados mais próprios.

Foi bastante expressiva na narrativa das crianças a caracterização da infância associada a brincadeiras, brinquedos e diversão, como pode ser verificado abaixo:

Pesquisadora: me diga uma coisa, gente, dessas figuras, dessas coisas que vocês falaram que lembram criança, o que é que lembra mais crianças pra vocês?

Natália: diversão. Luiza: brinquedo. Olívia: brinquedo, é... Luiza: bebê é muito fofo. Olívia: se melar...

Luiza: brincar.

Olívia relata no livro de Flip: “Ser criança é brincar estudar e ser feliz”. Pesquisadora: certo. O que é que deixa a criança feliz?

Luiza relata no livro Flip que ser criança “é... você brincar, se divertir, estudar... pular, correr, ter muitos brinquedos... adoecer... cheirar flor”.

Pesquisadora: cheirar flor? Hum, criança gosta de cheirar flor? Luiza: eu gosto.

Shnitzel relata no livro Flip como é ser criança: “criança é, criança é muito legal de ser porque é um dos momentos que você pode mais aproveitar na sua vida toda. E também é um dos momentos que você mais pode usar os brinquedos que você gosta de brincar”.

Heidegger (1927/2005) relata que o Dasein alterna sua existência da impropriedade para a propriedade, entre os modos de ser do impessoal e do pessoal. Ao referir-se ao ser criança, ora os participantes destacaram os significados instituídos sobre essa fase da vida, ora se referiram a sua experiência como criança. Ao falar sobre o brincar, a tonalidade afetiva predominante foi de alegria. Os gestos e palavras denotavam que as crianças se referem à sua experiência com o brincar, valorizando-o e resgatando-o como uma forma de expressão própria. O lúdico parece aproximar a criança de um modo de ser mais próprio.

A partir dos trechos destacados, é possível observar como a brincadeira encontra-se presente no discurso, inexoravelmente relacionada ao ser criança. Autores como Furlan e Gasparin (2003) acreditam que, na atualidade, as crianças são submetidas a um excesso de estímulos que pode deixá-las sem tempo para suas brincadeiras. Meira (2003), por sua vez, refere-se a um apagamento da memória do brincar na infância contemporânea. Nas narrativas dos participantes deste estudo, a relação entre ser criança e brincar, entretanto, desvela que, a despeito das mudanças na cultura lúdica infantil, a brincadeira aparece, ainda, como referência de sentido para as crianças.

É perceptível a importância que as crianças dão ao brincar, destacando, inclusive, a relação dessa atividade com a felicidade. Tal constatação pode ter sua compreensão ampliada quando se concebe a brincadeira como uma atividade natural da infância, que faz parte do desenvolvimento da criança e configura-se como uma forma de expressão privilegiada dos infantes (Levin, 2007). As crianças referiram muitos brinquedos e brincadeiras, tradicionais e modernos, como parte de suas rotinas – carrinho, boneca, bola, jogos de tabuleiro, jogos eletrônicos, esconde-esconde, tica-tica, futebol, polícia e ladrão, etc.

Ressalta-se que, algumas vezes, os argumentos levantados para justificar a importância do brincar envolveram o seu papel no aprendizado e desenvolvimento da criança. Nestes momentos, os argumentos parecem advir, uma vez mais, dos significados que circulam sobre a função pedagógica do brincar ou mesmo podem estar relacionados aos sentidos atribuídos pelas crianças ao termo “importância”:

Pesquisadora: é importante para a criança brincar, ou não? Shnitzel e Wii: é.

Pesquisadora: por que vocês acham que é importante? Wii: para o desenvolvimento da criança.

Pesquisadora: (...) É importante para a criança brincar com esses jogos? Wii: hum hum.

Pesquisadora: muito ou pouco? É bom que as crianças brinquem muito ou pouco com esses jogos eletrônicos, jogos de tabuleiro...?

Wii: bem, os eletrônicos muito não, mas os outros até que é, porque aí alguns ajudam o desenvolvimento da criança. Até joguinhos eletrônicos.

Pesquisadora: hum, me diz uma coisa, Melissa. Você acha que importante para a criança brincar, ou não?

Melissa: acho que é importante, porque ajuda a aprender, também.

Cumpre destacar que, além da brincadeira, aprender/estudar também foi destacado como aspecto próprio da infância, conforme se pode observar nos trechos a seguir:

Wii: porque se a gente não aprender muita coisa, a gente não consegue ter uma profissão.

Pesquisadora: a gente estava conversando e você falou a questão de estudar e aprender, não foi? Que isso é ser criança também. Aí, o estudar é importante para que?

Natália: para a criança saber das coisas. Pesquisadora: para crianças saber das coisas? Natália: é... aprender!

Pesquisadora: o que é que a criança precisa aprender? Que coisas a criança precisa saber?

Natália: todas as matérias.

Pesquisadora: para que elas precisam saber de todas essas matérias? Natália: para quando tiver prova ela já saber.

Pesquisadora: ah, para quanto tiver prova ela já saber daquilo ali. Natália: desde criança já estuda.

Pesquisadora: certo! E você sabe para que serve essas provas que passam para as crianças?

Natália: pra... testar a inteligência?! Pesquisadora: pra testar a inteligência? Natália: é... Pelo menos isso!

Na atividade de recorte, Melissa escolhe uma figura de livros como algo associado à infância. Segue diálogo abaixo:

Melissa: esse aqui me lembrou da criança... Porque assim, é um livro de matemática, ciência, história e geografia, e as crianças, a maioria, estudam isso.

Pesquisadora: ah, então são matérias que criança estuda? Melissa: é.

Pesquisadora: certo, me diz uma coisa, Melissa... Você acha que é importante para a criança estudar, ou não?

Melissa: acho.

Pesquisadora: acha que é? Para que é importante? Melissa: para se dar bem no futuro.

Pesquisadora: para se dar bem no futuro?

Melissa: é, para ter bom emprego, para poder ser inteligente.

Luiza, ao destacar o que gostaria de mudar em sua rotina, aborda a escola:

Pesquisadora: por que você tiraria o ir pra escola, Luiza?

Luiza: porque eu não gosto da escola, é meio chato. Eu não gosto muito de estudar, nem de ler.

Pesquisadora: você falou que acha meio chato vir pra escola. Mas você acha que é importante ou que não é importante?

Luiza: é importante.

Pesquisadora: você acha que é importante por quê? Luiza: porque sem a escola você não faz nada da vida. Pesquisadora: como assim fazer alguma coisa da vida?

Luiza: por exemplo, minha mãe ela é médica, sem a escola ela não seria médica.

Nos exemplos percebe-se como a questão do aprendizado está presente na narrativa das crianças ao discorrerem sobre o período de desenvolvimento que vivenciam. Ao se conceber a criança como ser-no-mundo e considerar o mundo pós-

moderno, marcado pela necessidade de extremo aperfeiçoamento, muitas vezes relacionado a expectativas futuras de sucesso profissional (Campos & Souza, 2003; Furlan & Gasparin, 2003; Salles, 2005), é possível compreender que as crianças tomem como fato o estudo como algo inerente à infância. Seja para “testar a inteligência”, para saber as coisas na prova, ou mesmo para “se dar bem no futuro”, o estudo foi considerado, pelas crianças, indubitavelmente importante.

É importante ressaltar, portanto, que ser criança para todos os participantes desta pesquisa é, essencialmente, brincar e estudar. Para além disso, a concepção sobre o ser criança também pode ser compreendida a partir da distinção entre o ser criança e o ser adulto, conforme pode ser observado nos discursos abaixo:

Natália: porque o adulto, não sei, assim, ele vai ter mais responsabilidades do que a criança.

Pesquisadora: hum, o adulto já tem mais responsabilidade do que a criança. E o que você acha de ter mais responsabilidades, é ruim ou é bom?

Natália: é ruim.

Pesquisadora: é ruim? Hum, você falou que o adulto tem mais responsabilidade do que a criança. A criança tem responsabilidade?

Natália: tem.

Pesquisadora: quais são as responsabilidades que a criança tem? Natália: estudar, é... hum... ir pra escola.

Iara: porque adulto, ele faz o que ele quer, ele já manda na sua própria vida. A gente, como criança, a gente não manda na nossa própria vida, os nossos pais que nos aconselham a fazer isso e fazer aquilo.

Pesquisadora: ah, então adulto já manda na própria vida e as crianças... Iara: e já faz o que ele quer, e as crianças não podem fazer o que quer. (...)

Iara: gosta de dormir bem tarde, assistindo as coisas, e gosta de acordar bem tarde, isso eu não posso. (...) Gostam também de comer muito chocolate, mas não pode. (...) A gente não pode ir pro shopping quando quer, mas os adultos sim.

(...)

Pesquisadora: (...) Tem mais alguma coisa que é diferente? Iara: não.

Pesquisadora: não?

Iara: tem, os adultos gostam de namorar e a gente não.

Natália e Iara destacam a vivência da liberdade e da responsabilidade como marcos distintivos entre a infância e a idade adulta. Se, por um lado, a liberdade é compreendida em sua positividade – poder fazer o que se quer, “mandar na própria vida”, a responsabilidade aparece como algo penoso, ruim. Natália atribui ao estudo o caráter de responsabilidade.

Além do exposto, outro aspecto a ser evidenciado nessa unidade de significado, por ter aparecido de forma recorrente nas narrativas, foi o destaque dado pelas crianças para as suas relações com animais de estimação. Nos procedimentos de grupo, os participantes recortaram figuras de animais como algo que lembra criança e, por vezes, levaram a relação com estes para o âmbito pessoal:

Olívia: esse aqui é porque criança adora cachorro. Pesquisadora: criança adora cachorro...

Natália: adora animais.

Fernanda: esse cachorrinho porque ele lembra criança porque ele é bem... tipo, ele é bem engraçado e eu gosto muito de cachorro.

Fernanda: e geralmente as crianças gostam também.

Pesquisadora: e o que faz lembrar criança com cachorro? Shnitzel: porque, porque as crianças gostam de cachorro.

Wii: e crianças são solitárias, e os pais são muito ocupados, então os pais compram alguns companheiros para a criança poder brincar. Já eu não brinco, eu não tenho cachorro e eu sou solitário, mas, meus pais não trabalham assim muito, e eles me deram um Wii, em recompensa eu jogo o Wii.

Shnitzel: e também às vezes quando alguém faz uma coisa que me irrita muito eu vou e fico alisando meu cachorro.

Percebe-se que as relações com animais se manifestaram das mais diversas formas. Além de adorar animais, as crianças relataram que os cachorros são companheiros para elas em suas brincadeiras e, por vezes, ajudam a acalmar em momentos de estresse.

Heidegger (2011), em “Os Conceitos Fundamentais da Metafísica”, discute sobre a essência da animalidade, posicionando os animais entre os entes simplesmente dados e o homem. Enuncia, pois, que o animal tem acesso ao mundo, mas, por ser um ser pulsional, há neste uma “pobreza de mundo”. Tal assertiva coloca a possibilidade de uma relação outra com os animais, distinta daquelas que se estabelece com os entes destituídos de mundo. Embora tal discussão fuja ao escopo deste trabalho, cabe destacar que, no mundo técnico contemporâneo, o apreço demostrado pelos animais sinaliza a relevância das disposições afetivas que emergem dessa relação.

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