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3. JORNAL CINE CLUBE

3.3. REFLEXÕES TEÓRICAS

Alguns artigos destacam-se no jornal Cine Clube por conta de seu caráter teórico. Os textos abordam desde explanações mais simples, sobre os elementos básicos de um filme, até discussões mais densas sobre a política dentro do cinema e a questão da administração como fundamental ao processo cinematográfico.

Em seu primeiro número, nas páginas 4 e 5, Cine Clube conta com o texto de Rolf de Luna Fonseca, “Cinema: linguagem e significação”, em que, primeiramente, o autor preocupa-se em definir linguagem, através de citações de Merleau-Ponty e de Décio Pignatari e L. Angelo Pinto. Em seguida, lembra que a definição de linguagem escolhida, de Décio Pignatari e L. Angelo Pinto, deve ser aplicada ao cinema e, portanto, não ser confundida com a linguagem falada. Além disso, ele ressalta que uma boa utilização da linguagem não se restringe a seu uso correto, de acordo com os padrões, mas sim a uma quebra de regras e convenções, a fim de trazer novas possibilidades.

Após a introdução, Rolf explica detalhadamente cada um dos elementos que considera essenciais a um filme: planos e enquadramentos, ângulos de tomada, movimentos de câmera, montagem e ritmo, e, sempre que possível, citando obras que acredita possuírem bons exemplos de cada um dos tópicos. Essa explicação é sucedida por uma breve “evolução da linguagem cinematográfica: linhas gerais”146, em que Fonseca realiza uma rememoração da

história da linguagem cinematográfica, dando destaque aos trabalhos de D. W. Griffith, passando pela vanguarda soviética, com Kuleshov, Pudovkin e Eisenstein, pelo Expressionismo alemão, por Orson Welles e seu Cidadão Kane, Akira Kurosawa, Luchino Visconti, Alain Resnais, com Hiroshima, meu amor e O ano passado em Marienbad, Antonioni, Francesco Rosi, Godard, Truffaut e o Cinema Novo brasileiro.

Para finalizar, Rolf opta por explicar rapidamente a significação no cinema, que seria a capacidade de “recriar ou inventar uma realidade”, não se ligando a questões de forma e conteúdo que, na maioria das vezes, se mostram vazias. O autor aproveita os últimos

146 FONSECA, Rolf de Luna. Cinema: linguagem e significação. Cine Clube, ano I, n.º 1, novembro/1965, pp. 4-

92 parágrafos para enfatizar a consciência crítica que deve possuir o espectador, uma vez que não há obra isenta de significações ideológicas. O público deve, pois, ter um posicionamento ético-estético não conformista, porém não aquele “stalinista” adotado por certos críticos considerados de esquerda. O cinema como arte destinada às massas deve ser capaz de atingir tamanha qualidade para poder mostrar “o homem ao homem”.

Podemos considerar o artigo de Rolf de Luna Fonseca de caráter introdutório e pedagógico, pois busca explorar os constituintes básicos de um filme. A razão desse texto haver sido publicado no número 1 do jornal Cine Clube, provavelmente, é por ser uma tentativa de passar esse conhecimento aos associados do CCUC, para que fossem estimuladas suas análises de filmes, o que renderia, também, melhores debates. De qualquer forma, o fato de o texto ser escrito para iniciantes está de acordo com a primeira edição do jornal, em que o processo de aprendizagem iniciava-se para todos os envolvidos.

As fotos que acompanham o artigo de Rolf são quatro, uma de Orson Welles e Akim Tamiroff, em A marca da maldade (Touch of evil, Orson Welles, 1958), na página 4, e três conjuntos de fotos utilizados para ilustrar o texto, na página 5. A primeira é uma série de fotogramas de um filme de Chaplin, para explicar a escala de planos, depois, há duas fotos de Emanuelle Riva e Eiji Okada, em Hiroshima, meu amor, e, por fim, dois frames de Mae Marsh, em Intolerância (Intolerance, D. W. Griffith, 1916).

Já na última página do jornal número 2, está transcrito um texto do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, traduzido por José Lino Grünewald, e publicado anteriormente no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 13 de maio de 1961, como uma homenagem póstuma, exatamente nove dias após a morte do pensador. Ao lado do título, “O cinema e a nova psicologia”, há uma foto de Alain Delon e Monica Vitti, com a seguinte legenda: “Antonioni: O ECLIPSE (Alain Delon, Monica Vitti): cinema fenomenológico – do comportamento.”147 Assim, já é feito um prenúncio do que tratará o artigo.

Após a breve explicação sobre a origem do texto, feita, em parte, pelo jornal Cine Clube e, em parte, por Grünewald, o leitor tem acesso às palavras de Merleau-Ponty. O filósofo inicia suas considerações, apontando a primeira diferença fundamental entre a nova psicologia e a psicologia clássica, em que o homem passa a ser visto como um ser integrante do mundo e, não mais, como uma inteligência que o constrói. Assim, a nova psicologia seria capaz de levar os estudiosos a melhores reflexões sobre os filmes, partindo do pressuposto de

147 MERLEAU-PONTY, Maurice. O cinema e a nova psicologia. Cine Clube, ano II, n.º 2, abril/1966, p. 6.

93 que “um filme não é uma soma de imagens, porém uma forma temporal”. Também aborda a temática da montagem, que concede sentido às imagens, e a questão do som e da música, que devem se incorporar ao conjunto do filme e não, simplesmente, a ele se justapor.

Merleau-Ponty acredita, portanto, que entender um filme como uma reprodução visual e sonora da realidade é algo ingênuo. A ideia desse “realismo fundamental pertinente ao cinema” é onde reside o equívoco. A partir de uma citação de Kant, o autor explica que enquanto, “no conhecimento, a imaginação trabalha para a inteligência, [...] na arte, a inteligência trabalha para a imaginação”. Assim, o sentido da película estaria incorporado a seu ritmo, à disposição temporal e espacial de seus elementos. “Um filme não é pensado e, sim, percebido.”

A maciça participação, como sócios do CCUC, dos estudantes universitários permitia a divulgação de artigos de caráter mais teórico, principalmente ligados à filosofia e à psicologia, que passavam pelas transformações descritas no próprio texto. A inserção de um artigo como esse de Merleau-Ponty, no jornal Cine Clube, representa a divulgação do trabalho de um teórico de bastante prestígio na época, cujas ideias despertavam interesse junto aos cineclubistas e demais colaboradores da publicação, tanto que fora citado no artigo de Rolf de Luna Fonseca, na edição anterior de Cine Clube. Além disso, a transcrição de um texto originalmente publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil indica que os cineclubistas campineiros acompanhavam a publicação, um dos principais espaços de crítica cultural do país.

Novamente, um texto retirado do Correio da Manhã foi utilizado para fechar a quarta edição do jornal. José Lino Grünewald argumenta, em “Cinema ou administração”, que peculiaridades de cada forma de arte são problemas de administração. E o cinema, “do calista ao diretor, da manicura ao cenarista, do contínuo ao produtor executivo, é administração à máxima potência.”148 Segundo ele, tanto em um filme de Rossellini quanto em um filme de

Henry Koster, em um filme da MGM ou uma produção independente, é possível apreciar o trabalho da equipe e sua administração.

Grünewald relembra que o projeto de realização de um filme obedece a um plano de ação de equipe e tem o objetivo de impactar as massas. Assim, ele afirma que a fruição de um espectador cinematográfico difere-se muito da apreciação de um livro pelo seu leitor, uma vez que é realizada em meio a vários outros espectadores, em uma sala de cinema. Por isso, a

148 GRÜNEWALD, José Lino. Cinema ou administração. Cine Clube, ano II, n.º 4, novembro/1966, p. 8. Acervo

94 estética do filme não pode fugir dessa realidade de espetáculo. Mesmo quando o filme é O ano passado em Marienbad, existe uma administração desse espetáculo. Apesar de haver sido compreendido por poucos, Alain Resnais teria realizado uma obra para o futuro, porém “quando se inferir o alcance de um relacionamento de funções e especializações numa estruturação administrativa movida pelas contingências da máquina (e dentro dela o comportamento do homem), todos, então, haverão de entendê-lo.”

O artigo de José Lino Grünewald reforça pensamentos teóricos já divulgados por Cine Clube anteriormente, citando estudiosos como Walter Benjamin, tão prestigiados no período. Ademais, o fato de Grünewald aparecer novamente no jornal indica que seus textos e ideias eram admirados pelos membros do conselho editorial, a ponto de serem divulgados com regularidade para os associados do Cineclube Universitário.

A tradução do texto de Michel Mardore para a revista Cahiers du Cinèma, “Idade do ouro, idade do ferro: Notas sobre a política e o cinema”, ocupa as páginas 6 e 7 da quinta edição de Cine Clube. No extenso artigo, o autor argumenta que a imagem cinematográfica é, por essência, engajada politicamente, o que não permite sua utilização para obras apolíticas. O apolitismo por parte de um crítico, portanto, é impossível, já que tudo é político. O mesmo acontece com os cineastas, que, para serem analisados, a partir de um ponto de vista político, devem ter suas obras investigadas em todos os detalhes. O cinema, como obra sintética deve, portanto, confundir-se com a ética do indivíduo que o realiza.

Para a realização do cinema político ideal, de acordo com Mardore, é necessária uma atitude, tanto por parte do autor quanto do espectador, que vise o conhecimento e, não mais, a emoção. “O verdadeiro cinema político [...] será um cinema objetivo, sereno, complexo, impiedoso, à medida dos mistérios e da crueldade de nosso tempo.”149Ao realizador cabe,

inicialmente, conhecer o assunto de que tratará, e não divulgar uma série de expressões e sentimento acerca do tema. A política no cinema tem como finalidade servir ao esclarecimento dos fatos, e não ‘”substituir a ação dos combatentes, com armas irrisórias.” Segundo ele, esse tipo de cinema é capaz de ultrapassar o sentimental e vergonhoso, glorificando a honestidade e a honra.

O texto de Mardore evidencia uma certa expectativa quanto ao poder de intervenção do cinema, a partir da realização e da absorção pelo público desse cinema político. Além disso, fica clara a preocupação característica dos textos publicados nos Cahiers du Cinéma,

149 MARDORE, Michel. Idade do ouro, idade do ferro: Notas sobre a política e o cinema. Tradução de Ivanize e

Disnei Scornaienchi. Cine Clube, ano II, n.º 5, setembro/1967, p. 6. Acervo Dayz Peixoto Fonseca. A citação seguinte é do mesmo texto.

95 com a perspectiva estética dos filmes, e não somente com um conteúdo político. O autor busca um cinema consciente da realidade do homem no mundo que não se atenha a sentimentalismos e que possua preocupações estéticas consoantes com as especificidades da linguagem cinematográfica. A escolha, pelo jornal Cine Clube, de publicar um artigo como esse revela alguma concordância com relação à necessidade da presença da política no cinema, porém, se analisados os filmes de curta metragem realizados pelo próprio CCUC, notamos a presença do engajamento, condenado no artigo por Mardore.

Diante dos textos expostos, notamos que a maior quantidade de autores que discorreram sobre assuntos teóricos tiveram seus artigos retirados de outras publicações, como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil e a revista Cahiers du Cinèma. Assim, podemos auferir, apesar da existência do texto de Rolf de Luna Fonseca, que os integrantes do cineclube que escreviam para o jornal, assim como os demais colaboradores campineiros, estavam mais interessados em se utilizar dessas teorias, levantadas pelos estudiosos, na análise de filmes. A fenomenologia aparece novamente, no texto de Merleau-Ponty, a noção de administração no cinema está no artigo de José Lino Grünewald e o tema da política dentro das obras cinematográficas é tratado no texto de Michel Mardore, o que denota, mais uma vez, a presença maciça das teorias francesas e dos filmes europeus, que funcionam como exemplos. Ao menos, podemos afirmar que esses artigos, tão densos e complexos, estão espalhados por todos os números de Cine Clube, o que permitia ao leitor digerir com calma cada uma das discussões, edição após edição.