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O reflexo do sofrimento causado pela doença HIV/AIDS em relação à moral

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CAPÍTULO II. RELIGIÃO: PRECONCEITO/ESTIGMA EM RELAÇÃO À

2.4 O enfrentamento da soropositividade por meio da religião

2.4.1 O reflexo do sofrimento causado pela doença HIV/AIDS em relação à moral

Para Parker (2001), o papel da mídia que se assessorou com profissionais da área de saúde foi fundamental para apresentar informações da AIDS e, sobretudo, ajudou abordar temas como o comportamento sexual, riscos e uso de preservativos.Com isso, levou as igrejas a cessarem o discurso ameaçador e a tratarem deste problema como um caso de amor ao próximo e, sobretudo, de saúde pública.

Nessa mesma perspectiva, Galvão (2000) afirma que o aparecimento do soropositivo para o HIV/AIDS (SPP/HIV/AIDS) no Brasil propiciou diferentes tipos de manifestações por parte de diferentes tradições religiosas, entre elas o acolhimento aos fiéis e a orientação aos enfermos. Ora, a interpretação cosmogônica da doença como forma de remissão está entre os refúgios que a pessoa encontra na divindade, cujos símbolos são apresentados nas instituições religiosas. A experiência desse fenômeno foi destacada pela entrevistada quando fora mencionada a importância da religião para a sua vida. Primeiramente, abriu um sorriso e com palavras firmes e contundentes, assim relatou:

Quando o meu filho morreu, eu pedia vinte e quatro horas por dia para eu morrer. Sabe quando uma carniça fede? Assim eu me sentia. Eu me via viva, mas como uma carniça que não prestava mais para nada. Perdi todos os meus sonhos. Eu me escondia dentro de mim. Quando as pessoas começavam a falar perto de mim eu saía. Até o ponto que uma pessoa me falou o seguinte – você sabe se você se matar você vai perecer eternamente lá no inferno? Poxa! Eu nunca matei, eu não fiz nenhum mal para ninguém. Fui contaminada pelo meu marido inocentemente. Agora vou ter que sofrer eternamente na outra vida. Ele começou a rezar para mim, dizendo que nós precisamos limpar a nossa alma. Nós temos uma alma boa, uma alma limpa, nós precisamos prestar contas para Deus. Há vida após a morte, só quem morre é a

carne, nós temos o espírito que é limpo e bonito. Eu comecei a me perguntar e me perturbar com isso. Não é justo eu sofrer tanto aqui na terra e continuar sofrendo no céu! Vou fazer o seguinte – vou conhecer esse Deus. Só que todo o dia tinha uma senhora que passava e gritava – vamos à igreja? Isso durante quatro meses. Eu fugia ou dava uma desculpa para não ir. Já não suportava mais essa pressão dessa mulher. Um dia eu a vi de longe e falei o seguinte, não precisa me chamar, hoje eu vou à igreja. Foi numa quarta feira e gostei muito. Foi preenchendo aquele vazio e fui numa segunda vez e aceitei. Ai eu comecei a sonhar, comecei a ficar feliz, aquela coisa já não me atormenta mais. Olha! Eu vou te falar, hoje eu entendo porque eu tive que passar por tudo isso (PCP/sp/f/ 38 anos).

Neste caso, a religião poderá ser compreendida na perspectiva de Geertz (1989, p. 67) como um sistema simbólico que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos seres humanos por meio da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral. As concepções são vestidas de tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem, segundo o autor, singularmente realistas. Ou seja, intervém tanto na definição do sentido como na orientação das práticas sociais. Para Geertz, (1989, p. 68), a religião pode fornecer explicação e a justificação das relações sociais, bem como construir o sistema das práticas destinadas a reproduzi-las.

No momento que a entrevistada aceitou ir à igreja, a religião pode intervir na vida, tanto na definição do sentido para a sua existência como na orientação das práticas sociais. ‘Foi preenchendo aquele vazio e fui numa segunda vez e aceitei. Aí comecei a sonhar, comecei a ficar feliz. Hoje, eu entendo, porque eu tive que passar por tudo isso’. O depoimento dela continua:

Eu queria ter uma vida boa. Tive chance de ir ao Japão. Imagine eu pobre com o coração endurecido daquele jeito? Imagine eu rica financeiramente? Quanta maldade eu iria praticar contra as pessoas. Meu coração seria pior. Hoje eu não tenho nada, mas não troco pela vida que eu não tive. A religião me ensinou o melhor caminho (PCP/sp/f/38 anos).

Nesse caso, as informações religiosas vão sendo objetivadas nas pessoas a partir do preconceito construído e legitimado pelas próprias ideias religiosas. A legitimação ocorre em vias opostas, muitas vezes ela condena por ser a legitimadora das práticas preconceituosas construídas ao longo da história, especificamente em relação à sexualidade. Mas, a religião também pode desempenhar um papel essencial na acolhida e aconchego das pessoas epidemiológicas. Instituições e líderes já percebem que a religião não é só um

conceito dinâmico, mas que ela pode ser uma incrível plataforma para mudanças quando se fala do HIV/AIDS. Essas iniciativas refletem uma mudança de mentalidade em relação aos próprios preconceitos sustentados ao longo da história. O papel da religião não é julgar, mas mostrar perdão, compaixão e solidariedade. E quando isso é feito genuinamente, ela pode ajudar a encontrar um novo começo depois do diagnóstico positivo.

São duas as situações evidenciadas pela entrevistada: sonhar em ter uma vida boa e ir morar no Japão. Mas a soropositividade interrompeu abruptamente a concretização do projeto. ‘Perdi todos os meus sonhos. Eu me escondia dentro de mim. Quando as pessoas começavam a falar perto de mim eu saia’ (PCP/sp/f/38 anos).

Depois da comprovação da SPP/HIV/AIDS da entrevistada e do seu próprio filho, com o suicido do marido, sem ele contar para ela que havia contraído o Vírus/HIV/AIDS, afirma ela que pagou o preço pelo preconceito, mas também, encontrou em Deus um novo começo para a sua vida e dos seus filhos.

Entendeu que há maldade no mundo. Eu pago por não fazer nada de errado, porque eu me cuidei, mas o meu marido irresponsável não. Eu passei por isso porque eu acreditava cegamente nas pessoas e na sociedade. Não adianta você viver corretamente, o mundo não tem coração (PCP/sp/f/38 anos).

Sabe quem é a minha maior confiança? Não é a medicina – é só Deus. É ele que sabe o que vai ocorrer comigo. Não que eu deixei de me cuidar, tomar remédio, eu tomo direitinho, agora é Deus que sabe o que vai ocorrer comigo. Se ele quiser me curar ele me cura, se não quiser ele não me cura. Leva-me senhor no tempo certo, me leva no tempo que o senhor achar que tem que me levar (PCP/sp/f/38 anos).

O drama partilhado pelos vinte e cinco participantes da pesquisa em relação às suas vidas após a confirmação do diagnóstico da soropositividade é praticamente o mesmo. Eles (entrevistados) sentem-se à margem de toda e qualquer realidade, seja familiar, profissional e social. Afirmam eles que a religião (Deus) e a cumplicidade entre eles tornaram-se a maior aliada para a própria sobrevivência humana e existencial de cada diagnosticado SPP/HIV/AIDS.

Ninguém quer ouvir, fulano morreu, outro morreu - isso acaba com a gente, por isso dá preocupação para que todos estejam bem. É preferível não saber. Algumas vezes você precisa se alienar para dar conta de viver. Muitos se alienam e não querem fazer o exame porque

não teriam estrutura para suportar o diagnóstico positivo. Eu estou aqui agora para mostrar para os outros que eu estou bem, senão eles ficariam angustiados (JRS/sp/m/48 anos).

O acreditar no transcendente e o afeto cúmplice entre os participantes da ONG são gotas cotidianas de motivação para aguentar a dor física e social da doença, afirma um participante que estava na ONG naquele momento, somente para mostrar para os seus colegas que ele se encontra bem de saúde. Para os participantes da pesquisa, não frequentar a ONG nos dias marcados, causa um mal-estar geral a todos. Acreditar numa divindade e a cumplicidade15 entre eles (portadores da soropositividade) são seivas que alimentam a todos com vida e esperança.

2.5 A culpabilidade de quem tem que omitir a soropositividade

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