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Religião e preconceito na construção da concepção de sexualidade

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CAPÍTULO I. RELIGIÃO E PRECONCEITO: ELEMENTOS CONSTITUINTES DAS

1.4 Religião e preconceito na construção da concepção de sexualidade

O objetivo desta construção conceitual sobre a sexualidade é, por meio dela, subsidiarmos a análise dos preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas soropositivas. Entende-se que a discriminação que incide sobre as pessoas soropositivas tem como base outro preconceito: uma concepção restritiva, normativa e negativa sobre a sexualidade. Entende-se, ainda, que as ideias religiosas são elementos constituintes dessa concepção e que, no processo de exteriorização, objetivação e interiorização, vão construindo tal preconceito. Para entendermos esta relação entre sexo biológico e sexualidade, torna- se necessário operacionalizar os principais conceitos a ela subjacentes. Heilborn (2003) entende que sexo é biológico e designa, em muitas análises sociológicas, somente a caracterização anatomofisiológica dos seres humanos e a atividade sexual propriamente dita. Para a autora, o raciocínio que apoia essa distinção biológica se baseia na ideia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é realizada pela dimensão da sexualidade (cultura).

O significado da palavra sexo, de acordo com o Dicionário Novo Aurélio (1986, p. 1580), é originário do latim sexu, consiste na “conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um

papel determinado na geração e conferindo-lhes certas características distintivas”. Diz respeito, portanto, aos aspectos biológicos apenas. Para Grossi (1998), o termo sexo é empregado para designar a parte biológica do indivíduo, ou seja, possuir uma identidade sexual e por identidade sexual, entende-se ser macho ou fêmea, homem ou mulher numa dada espécie.

Para o pensamento dos autores acima destacados, sexo refere-se ao dado biológico. No entanto, mesmo restrito a essa dimensão, a concepção do mesmo já vai adquirindo significados construídos culturalmente, o que vai colocando-o em um estreito diálogo com o conceito de sexualidade. Como afirma Grossi (1998, p. 15), “Sexo é uma categoria que ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres (...) e sexualidade é um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos”. Visando desvendar a presença da cultura na construção da concepção de sexualidade, recorremos a Foucault (1988), que concebe como um “dispositivo histórico”, ou seja, incorporada a um conjunto de fatores fornecidos pelos contextos sociais, como relações de poder, gênero e classes sociais, sendo um dispositivo de densas relações de poder: entre homens e mulheres, pais e filhos, educadores e alunos, padres e leigos e, assim, sucessivamente.

Para Foucault (1994), o uso do termo sexualidade é datado do início do século XIX. No entanto, o surgimento do termo em data tão recente, segundo ele, não significa que esta temática tenha emergido somente neste período, muito menos de uma maneira abrupta.

O uso da palavra foi estabelecido em relação a outros fenômenos: o desenvolvimento de campos de conhecimentos diversos (que cobriam tanto os mecanismos biológicos de reprodução como as variantes individuais ou sociais de comportamentos); a instauração de um conjunto de regras e de normas, em parte tradicionais e em parte novas, e que se apoiam em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas; como também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos (FOUCAULT, 1994, p. 9).

Ainda nas relações de poder, a sexualidade é, segundo o autor (1988), um elemento dotado de instrumentalidade, que pode ser usado em inúmeras manobras, nas relações sociais, bem como pode tornar-se útil na articulação das mais variadas estratégias. Não se deve conceber a sexualidade como uma

espécie de dado da natureza que o poder tenta pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar.

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, à formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 1988, p. 100).

Prado e Machado (2008) afirmam que a sexualidade é uma das dimensões mais importantes da vida do ser humano e da experiência social. Ela é permeada por inumeráveis questões. Todo um universo de desejos, crenças e valores são articulados, definidos e redefinidos num amplo espectro do que entendemos ser a identificação do ser humano e a construção da sua identidade social e sexual, sempre numa relação de poder.

O sexo é uma força básica de orientação da biologia humana: o poder é um aspecto fundamental da sociologia humana. Sexo e poder não são mundos distintos um do outro, mas estão entrelaçados um no outro. O poder pode ser observado no reino animal, enquanto as formas de sexualidade humana são socialmente construídas e variáveis. Ambos são moedas conversíveis e mescláveis uma na outra (TRERBORN, 2006, p. 11).

Para Giddens (1993), a sexualidade é uma categoria que vai sendo construída social e historicamente. “A sexualidade funciona como um aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primário entre o corpo, a autoidentidade e as normas sociais” (GIDDENS, 1993, p. 24). Portanto, se a sexualidade é uma categoria construída socialmente, ela tem por base a concepção de que se trata de uma dimensão humana que está para além do dado biológico.

As identidades sexuais e as práticas das sexualidades não são nada naturais. São construídas através das relações sociais e políticas de um tempo histórico, são caracterizadas como processos históricos que não estão sob a égide da lógica da naturalidade, mas sim da moral e da política (PRADO e MACHADO, 2008, p.19).

Ou, ainda, como assinala Rubin:

Sexo é sexo, mas o que se considera sexo é igualmente determinado e obtido culturalmente. Toda sociedade conta ainda com um sistema de

sexo/gênero: um conjunto de arranjos através dos quais a matéria-prima biológica do sexo e da procriação humana é moldada pela intervenção humana e social e satisfeita de forma convencional, pouco importando o quão bizarras algumas dessas convenções podem parecer (RUBIN, 1993, p. 5).

A histórica subordinação do gênero feminino, legitimada pela supremacia patriarcal e evidenciada pelas práticas morais e políticas continua sendo um grande desafio para o ser humano na concepção da sexualidade no Ocidente.

Entende-se, com isso, que a sexualidade é, portanto, um dos aspectos formadores da identidade da pessoa humana, que se constitui nas diversas relações sociais em que o sujeito está inserido. Nesse sentido, ao analisar as diferentes formas como a identidade humana vai se constituindo, autores como Prado e Machado (2008), Sennet (1989) e Oliveira (1976) afirmam que a identidade humana se modela sempre no intercâmbio de significados e contextos que ocorrem entre o ‘eu’ e o ‘outro’, o ‘eu’ e o ‘nós’, o ‘nós’ e ‘eles’, enfim, nunca é estática. Sempre ocorre na troca reinterpretativa de significados e interações sociais e institucionais que criam posições sociais e, consequentemente, posições identitárias e políticas.

Neste caso, o intercâmbio entre os indivíduos vai sendo estruturado e reconstruído, tendo as ideias religiosas como depositárias de significados culturais, pelos quais indivíduos e coletividade são capazes de reinterpretar a própria condição de vida e reconstruir para si novos significados. Desencadeia em si um processo ao mesmo tempo individual e coletivo de significações, com implicações psicológicas e sociais que articulam valores, crenças, preconceitos, tabus e desejos em relação à sexualidade humana. Pergunta-se, então: quais ideias religiosas irão prevalecer na construção de uma construção negativa e restritivas da sexualidade no Ocidente?

Vejamos, no item a seguir, as raízes históricas da construção da concepção de uma sexualidade atrelada às ideias religiosas.

1.5 A Religião na concepção cultural da sexualidade no Ocidente: a Grécia

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