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Flavia Bahia Martins

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)

§ 6º Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Gover- nadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito.

A desincompatibilização determina a obrigatoriedade do afastamento de certas funções, cargos ou emprego, na administração pública, direta ou indiretamente, com vistas à disputa eleitoral. A finalidade dessa disposição negativa de direito eleitoral é impedir que o agente público, no exercício da atividade pública, venha a se utilizar da própria máquina administrativa em proveito pessoal. Em resumo, é uma ferramenta legal para combater o abuso de poder político e econômico, nas eleições.

Na história das Constituições Brasileiras, a duração do período dos mandatos governamentais tem variado de quatro a seis anos.1 Por sua vez,

a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), na sua redação original, fixou o mandato para os titulares do Executivo em cinco anos, sem reeleição, além de também fixar a necessidade de desin- compatibilização, conforme o § 6º do art. 14 da CRFB/1988, determinando que, para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Go- vernadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos deveriam renun- ciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito. 

O instituto visa, portanto, evitar a manipulação pelo governante/can- didato da condição privilegiada de detentor de mandato executivo, com todo o destaque na imprensa que tal condição propicia, para desequilibrar a disputa eleitoral em seu favor.

Por meio da Emenda Constitucional de Revisão (ECR) nº 5/94, o man- dato foi reduzido para quatro anos, ainda sem reeleição. Somente pela Emenda Constitucional (EC) nº 16/97 é que a recondução para um man- dato consecutivo foi inserida na Constituição, mas a referida reforma não 1 Até a Constituição de 1937, a duração do mandato do Presidente da República era de quatro anos. Com a Constituição de 1937, que não se cumpriu, o mandato teria seis anos. A Constituição de 1946 firmou o mandato em cinco anos. Já a Constituição de 1967 estabeleceu quatro anos de mandato e a Emenda nº 1/1969 o elevou para cinco.

tratou da desincompatibilização para quem pleiteasse a reeleição, ou seja, o texto de origem não foi modificado pela nova emenda, desperdiçando-se, assim, a oportunidade de impor, naquela circunstância, a extensão da de- sincompatibilização ao ocupante do cargo executivo que se candidata à re- eleição, em respeito ao princípio da igualdade entre os candidatos, que não disputam em condições paritárias com aquele que pretende se reeleger.

A preocupação em equilibrar as disputas eleitorais é antiga no cenário político brasileiro. Entre 1989 e 1996, foram oferecidas quatro Propostas de Emenda à Constituição (PEC) para modificação do § 6º do art. 14, referente à desincompatibilização,2 já antevendo, diante da PEC 1/1995, transformada

na Emenda Constitucional (EC) nº 16/1997,3 que a reeleição para os cargos

no Executivo se tornaria realidade no país.

Na primeira proposta de reforma apresentada sobre o tema pelo en- tão Deputado Federal Tidei de Lima (e, curiosamente, também assinada pelo atual Presidente da República, Michel Temer, à época Deputado Fede- ral), a redação sugerida do dispositivo ficaria assim:

Art. 14, § 6º São inelegíveis para os mesmos e para outros cargos o Presidente da República, os Governadores de Estado ou Territórios, do Distrito Federal e os Prefeitos se, não renunciarem aos seus respectivos mandatos, até seis meses antes do pleito, bem como quem os houver su- cedido, ou substituído, nesse período. (PEC 39/1989).

A Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, em reunião ordi- nária plenária realizada no dia 29 de março de 1990, opinou, unanimemen- te, pela admissibilidade da referida proposta de emenda, nos termos do parecer do relator, o Deputado Federal Ney Lopes de Souza. Em 31 de maio de 1994, infelizmente, a PEC nº 39/1989 foi arquivada.

As três propostas restantes, também já arquivadas, tratavam do tema sob a mesma ótica, senão vejamos. A PEC nº 113/1995, em resumo, previa que: 2 São elas: PEC nº 39/1989; PEC nº 58/1995; PEC nº 113/1995 e PEC nº 172/1995.

3 A redação originária da PEC 1/1995 dizia: “Art. 14, § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído nos cursos do mandato poderão ser reeleitos por um período imediatamente subsequente e concorrer no exercício do cargo”. Ainda, suprimia a expressão “vedada a reeleição para o período subsequente” constante do art. 82. A emenda constitucional 16/1997, por seu turno, modificou a redação originária (“Art. 14, § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”) e ampliou a quantidade de artigos modificados.

Para concorrem no mesmo ou a outro cargo, as autoridades mencio- nadas no parágrafo anterior devem renunciar aos respectivos mandatos até três meses antes do pleito, tornando-se inelegíveis para o mesmo plei- to aqueles que os sucederem ou substituírem neste período.

A PEC nº 172/1995, no mesmo sentido, estabelecia: “Para concorrerem à reeleição ou a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos ou quem os houver sucedido ou substituído poderão fazê-lo no exercício do cargo.”

Nessa mesma linha, a PEC nº 58/19954 determinava que:

Para concorrerem à reeleição ou a outros cargos, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Governadores e Vice-Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos e Vice-Prefeitos devem licen- ciar-se dos respectivos cargos, até 90 dias antes do pleito.

Já com a nova redação do § 5º do art. 14 da CRFB/1988, dada pela EC nº 16/97 estabelecendo a reeleição para os cargos do Executivo, o número de propostas para alteração do § 6º do art. 14 só aumentou. Até o momen- to, foram 35 PECs para este dispositivo constitucional. Dessas, 25 foram arquivadas5 e 10 ainda estão em tramitação.6 Destas últimas, separamos

algumas, a seguir resumidas.

4 Apresentada em março de 1995, pelo Deputado Federal Adhemar de Barros Filho. Dispunha sobre a possibilidade de reeleição do Presidente e Vice-Presidente da República, dos Governadores de Estado e do Distrito Federal, e de Prefeitos e Vice-Prefeitos. Arquivada em janeiro de 1997. Disponível em: <http://www. camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=24969>. Acesso em: 15 set. 2018.

5 Originárias da Câmara dos Deputados, encontramos vinte PECs arquivadas. São elas: PEC nº 115/1999 (apensada à PEC 44/1999 em 27/10/1999); PEC nº 16/1999 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 160/2007 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 164/2007 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 261/2008 (Arquivada em 31/01/2001); PEC nº 262/2004 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 334/2004 (Arquivada em 31/01/2007); PEC nº 351/2004 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 359/2001 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 383/2005 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 392/2009 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 44/1999 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 500/2010 (Arquivada em 31/01/2015); PEC nº 528/1997 (Arquivada em 31/01/2003); PEC nº 529/2006 (Arquivada em 31/01/2007); PEC nº 559/2006 (Arquivada em 31/01/2011); PEC nº 628/1998 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 99/1999 (Prejudicada em 17/06/2015); PEC nº 121/2007 (Arquivada em 31/01/2011). Já dentre as originárias do Senado Federal, encontramos seis PECs: PEC nº 44/2000 (Arquivada em 03/08/2001); PEC nº 45/2000 (Arquivada em 19/06/2001); PEC nº 46/2000 (Arquivada em 30/03/2007); PEC nº 48/2008 (Arquivada em 26/12/2014); PEC nº 56/2013 (Arquivada em 12/03/2015) e PEC nº 6/2001 (Arquivada em 29/03/2007).

6 Originárias da Câmara dos Deputados, temos: PEC nº 140/1999; PEC nº 16/2003; PEC nº 238/2016; PEC nº 245/2016; PEC nº 376/2009 e PEC nº 104/2007. Originárias do Senado Federal, temos: PEC nº 12/2011; PEC nº 29/2011; PEC nº 73/2011 e PEC nº 32/2017.

A PEC 376/2009 estabelece a coincidência geral dos pleitos para todos os mandatos eletivos, aumenta de 8 para 10 anos o mandato de Senador, fixa o mandato de 5 anos para todos os cargos eletivos e põe fim ao institu- to da reeleição para os cargos do Poder Executivo. A última movimentação de maior relevância se deu em 31 de março de 2010, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania deu parecer pela sua admissibilidade.

Já a PEC nº 12/2011 prevê a necessidade de desincompatibilização em caso de reeleição, fixa a mudança de redação dos §§ 5º e 6º do art. 14 da CRFB/1988, para determinar que os Senadores possam ser reeleitos para um único período subsequente, assim como os chefes do Poder Executivo federal, estadual, distrital e municipal e dispõe também que, para concorre- rem na eleição, os detentores de mandatos no Poder Executivo devem re- nunciar até seis meses antes do pleito e os Senadores devem se licenciar no mesmo prazo. Desde 5 de julho de 2018, a referida proposta está nas mãos da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para parecer.

No mesmo sentido da PEC nº 12/2011, a PEC nº 73/2011 sugere a se- guinte redação: “Art. 14 (...) § 6º Para concorrerem às eleições, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Pre- feitos Municipais devem se afastar de seus cargos até seis meses antes do pleito.” No dia 26 de março de 2015, a proposta foi entregue à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para parecer. Desde então, não houve novas movimentações.

Já a PEC nº 245/2016, de cunho parlamentarista,7 mantém a desneces-

sidade de desincompatibilização, nos seguintes termos: “Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, os Gover- nadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver su- cedido ou substituído no curso dos mandatos devem renunciar aos respec- 7 Apesar de se referenciar ao sistema parlamentarista, a PEC 245/2016 se assemelha mais a um sistema de governo semipresidencialista. Conforme Octávio Amorim Neto explica, o semipresidencialismo é um sistema de governo em que o Chefe de Estado é eleito diretamente pelo povo (“Presidente”) e que abriga a figura de um Primeiro- Ministro e gabinete de confiança parlamentar. Na proposta em tela, como o Presidente da República tem dentre suas atribuições “indicar, nomear e exonerar o Primeiro-Ministro e, por indicação deste, os Ministros de Estado” (art. 84, I; da PEC 245/2016), verifica-se que a proposta, na realidade, planeja instaurar um sistema de governo semipresidencialista com regime presidencial-parlamentar. Para mais informações, cf.: AMORIM NETO, Octavio. A reforma do sistema de governo: rumo ao parlamentarismo ou ao semipresidencialismo? In: SOARES, Gláucio Ary Dillon; RENNÓ, Lucio R. Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro, FGV, 2006. p. 316-344.

tivos mandatos até seis meses antes do pleito.” A última movimentação se deu em 1º de fevereiro de 2017, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania deu parecer pela admissibilidade da proposta.

O tema foi judicializado e o Supremo Tribunal Federal manteve, lamen- tavelmente, o entendimento pela desnecessidade de desincompatibiliza- ção para fins de reeleição, como observamos logo abaixo:

Somente a Constituição poderia, de expresso, estabelecer o afasta- mento do cargo, no prazo por ela definido, como condição para concorrer à reeleição prevista no § 5o do art. 14, da Lei Magna, na redação atual. (...) A Emenda Constitucional no 16/97 não alterou a norma do § 6o do art. 14 da Constituição. Na aplicação do § 5o do art. 14 da Lei Maior, na redação atual, não cabe, entretanto, estender o disposto no § 6o do mes- mo artigo, que cuida de hipótese distinta. A exegese conferida ao § 5o do art. 14 da Constituição, na redação da Emenda Constitucional no 16/97, ao não exigir desincompatibilização do titular para concorrer à reeleição, não ofende o art. 60, § 4o, IV, da Constituição, como pretende a inicial, com expressa referência ao art. 5o, § 2o, da Lei Maior. Não são invocáveis, na espécie, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, da isonomia ou do pluripartidarismo, para criar, por via exegética, cláusula restritiva da elegibilidade prevista no § 5o do art. 14, da Constituição, na redação da Emenda Constitucional no 16/97, com a exigência de renúncia seis meses antes do pleito, não adotada pelo constituinte derivado.8

Para incrementar a reflexão, ainda é preciso ressaltar que 100% dos candidatos à Presidência da República que pleitearam a reeleição no Brasil obtiveram êxito nas urnas. Fernando Henrique Cardoso foi eleito em 1994 e reeleito em 1998, beneficiando-se da proposta que foi apresentada em seu próprio Governo. Luís Inácio Lula da Silva ganhou as eleições de 2002 e 2006. Já Dilma Rousseff foi eleita em 2010 e reeleita em 2014, não con- cluindo o mandato em razão do processo de impedimento que sofreu.

Será que com a desincompatibilização imposta também para a ree- leição teríamos o mesmo cenário político? Será que não há manipulação 8 STF – ADI-MC 1805/DF, Relator: NÉRI DA SILVEIRA, Data de Julgamento: 26/03/1998, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 14/11/2003 PP-00011 EMENT VOL-02132-12 PP-02272.

da máquina pública com arranjos e privilégios por aquele que pretende a reeleição? E, finalmente, o princípio democrático da igualdade entre os candidatos não fica prejudicado?

A resposta para todas essas perguntas não temos, mas acreditamos que é chegado o momento de corrigir essa importante imperfeição no sistema eleitoral constitucional, e fazê-lo em proveito da cidadania, ao possibilitar processos eleitorais mais justos e equilibrados. Que a grande reforma política, tanto prometida por sucessivos governantes, um dia saia do discurso eleitoral e se transforme em realidade, beneficiando assim a nossa democracia.

da Democracia

Federativa Brasileira