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Refugiados: breve histórico e contribuições da perspectiva habermasiana

REFUGIADOS NO BRASIL E SUA INTEGRAÇÃO

2.3 Refugiados: breve histórico e contribuições da perspectiva habermasiana

Apesar de os refugiados existirem ao longo de toda a história da humanidade, foi somente durante a segunda década do século XX que se iniciou uma proteção institucionalizada, sistematizada e também gradualmente internacionalizada desses indivíduos.

No contexto posterior à ruptura de paradigma verificado nas duas grandes guerras mundiais, os Estados-nações irão cercar-se de instrumentos jurídicos, de acordos multilaterais e instituições políticas visando garantir a estabilidade e a proteção contra novos abusos como os acontecimentos catastróficos que haviam dissolvido a plausibilidade sociopolítica até então concebida e vivenciada na Era Moderna. O espanto naquele período de crise e ruptura era a constatação de que “o homem que nada mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratá-lo como semelhante” (ARENDT, 1989). A autora considera a condição de refugiado, de perda forçada da nacionalidade, da sua comunidade, como uma perda de identidade no mundo:

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A primeira perda que sofreram essas pessoas privadas de direito não foi a da proteção legal, mas a perda dos seus lares, o que significava a perda de toda a textura social na qual haviam nascido e na qual haviam criado para si um lugar peculiar no mundo. O que era sem precedentes não era a perda do lar, mas a impossibilidade de encontrar um novo lar. Era um problema de organização política. Ninguém se apercebia de que a humanidade, concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas via-se expulsa de toda a família das nações. A segunda perda sofrida pelas pessoas destituídas de seus direitos foi a perda da proteção do governo, e isso não significava apenas a perda da condição legal no próprio país, mas em todos os países.[...] Os novos refugiados não eram perseguidos por algo que tivessem feito ou pensado, e sim em virtude daquilo que imutavelmente eram. (ARENDT; 1989, p. 328).

Arendt analisa o processo de ruptura totalitária do nazismo e fascismo e traz à tona um descompasso existente na tradição do pensamento a partir do acontecimento dos regimes totalitários que reduziram os seres humanos a supérfluos e descartáveis e transcenderam a lógica do razoável. A partir da ruptura totalitária, a tradição do pensamento ocidental ficou marcada por uma lacuna: todas as tentativas de entender, compreender ou explicar o político, o social e o humano irão passar por reorganizações.

Lafer destaca que a ruptura totalitária ocorreu no bojo da própria modernidade e configurou-se um real hiato entre o passado e o futuro, uma vez que no plano social, o totalitarismo foi uma proposta inédita de organização social, na qual a nova forma de governo almejava a dominação social através da utilização em larga escala da propaganda ideológica e do terror com o intuito de disseminar na população a ubiquidade do medo.

No plano ético- jurídico, a lógica da razoabilidade foi abandonada, houve o descumprimento dos compromissos anteriormente acordados (pacta sunt servanda) e a inauguração do “tudo é possível”, a partir da instrumentalização do ser humano (LAFER, 2003, p.112). Lafer analisa que o tema da ruptura totalitária será central na análise e filosofia arendtianas, bem como a da crise epistemológica do paradigma da razoabilidade (“do razoável”).

Arendt discorre sobre a liberdade humana como “a capacidade de dar início, no espaço público da palavra e da ação, a coisas novas, singulares e sem precedentes” (LAFER, 2003, p.90). Nesse período de crise epistemológica ocorre a crise dos direitos humanos no pós-guerras. A abstração e a falta de efetivação dos direitos humanos ficaram especialmente visíveis na situação-limite dos campos de concentração.

Os refugiados, apátridas e outros seres humanos foram tidos como objetos, como supérfluos e a premissa da pessoa humana como valor-fonte da sociedade moderna foi brutalmente negada. Lafer analisa que nesse período posterior ao não cumprimento dos

96 Direitos Humanos – em especial dos refugiados nos campos de concentração - há uma busca dos diversos Estados e da sociedade civil por uma reconstrução dos direitos humanos para a vida em sociedade (LAFER, 2003).

Ao se analisar a situação-limite da experiência totalitária na Europa do século XX, os refugiados são a própria essência da banalização do ser humano que esse período trouxe e tipificou para a vida social e política.

Para Arendt, a privação fundamental dos direitos humanos dessas pessoas manifestava-se, primordialmente, na privação de um lugar no mundo que tornasse a sua opinião significativa e a sua ação eficaz. Dessa forma, os refugiados, antes mesmo de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião; já não pertenciam a qualquer comunidade política na qual pudessem reivindicar tais direitos. O fundamental a ser destacado aqui é que foi criada uma condição de completa privação de direitos antes mesmo que o direito à vida fosse ameaçado.

O conceito de refugiado foi definido pela Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. Embora a definição adotada pela Convenção tenha limites temporais e geográficos, o Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967 retirou estas reservas e ampliou a definição de refugiado (ONU. ACNUR, 1951), (ONU. ACNUR, 1967). De acordo com a Convenção de 1951:

define-se que refugiado é todo ser humano que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1.º de janeiro de 1951, e receando ser perseguido em virtude de sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar. (ACNUR, IMDH; 2010).

Neste debate, destacamos a análise de Habermas de que para problemas que atingem todos os cidadãos e Estados do globo – como as violações de direitos humanos que geram fluxos de refugiados- só terão validade de fato as ordens políticas se as mesmas forem construídas e constituídas a partir da legitimação baseada nos Direitos Humanos.

Vale destacarmos que Jürgen Habermas orienta sua visão de Direitos Humanos pelas premissas básicas do reconhecimento recíproco e do discurso intercultural (HABERMAS, 2013). A premissa orientadora da discussão sobre a legitimação baseada nos direitos humanos se resume em um diálogo (democracia deliberativa) no qual os representantes vinculados às diferentes culturas tenham condições de participar de maneira equitativa do espaço público e

97 desenvolver suas ações políticas e seus respectivos discursos, convencimentos, lógicas, reconhecimentos. Primordial é o aperfeiçoamento do processo democrático que permitirá a coexistência de indivíduos de diferentes culturas coexistindo em um espaço de liberdade de escolha. Habermas discute:

A mesma reflexão hermenêutica acerca do ponto de partida de um discurso sobre os direitos humanos entre participantes com distintas origens culturais revela os conteúdos normativos que estão presentes nos pressupostos tácitos de qualquer discurso orientado para o entendimento. Independentemente das culturas particulares, todos os participantes de um discurso bem sabem, de forma intuitiva, que não pode haver consenso baseado no convencimento enquanto não existam relações simétricas entre os participantes da comunicação, isto é, relações de reconhecimento mútuo, de admissão da perspectiva do outro, de uma comum disposição de também considerar as próprias tradições com os olhos de um estranho, de uma disposição de aprender uns com os outros, etc. (HABERMAS, 2001, p.17.).

Arendt e Habermas possuem pontes de conexões em suas teorias: ambos os filósofos consideram como fundamental para a legitimação do poder político: a ação coletiva, a ação conjunta e comum da comunidade política a fim de obter consensos; bem como a palavra, o discurso individual ser preservado ou ainda: a possibilidade de todo e cada individuo poder ter sua opinião. Essas premissas de legitimação do poder político são premissas de uma legitimação baseada nos direitos humanos e que anseiam por um equilíbrio entre a esfera publica e a esfera privada desses direitos fundamentais.

O nosso país foi o pioneiro na região latino-americana tanto a ratificar as convenções internacionais para proteção dos refugiados bem como a elaborar uma legislação nacional para refugiados, a lei federal 9.474 de 1997. A lei nacional é considerada inovadora e bastante avançada, desde sua promulgação, e instituiu já em 1997 um órgão colegiado para analisar e julgar as solicitações de reconhecimento do status de refugiado: o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). (BRASIL, 1997). A partir de 2000, além do reconhecimento do status dos refugiados e de sua proteção – vinculada a esse reconhecimento - o Estado brasileiro inicia de maneira mais sistemática e organizada a integração dos refugiados em nossa sociedade.

A partir de 2007, o governo brasileiro iniciou estratégia para a proteção dos refugiados também por meio da integração de refugiados.

98 2.4A linguagem como identidade emancipatória

A proposição de Habermas possui um avanço teórico ao apontar as interações comunicativas como possibilidades de auto-entendimento e de autorreflexão dos sujeitos, o que os possibilitaria a alcançar à emancipação via concretização relacional de sua autonomia política (MARQUES, 2013).

Habermas afirma que o indivíduo se constitui na ação discursiva e, nessa mesma prática, molda o contexto social. A autonomia será desenvolvida mediante o uso da linguagem nas interações socais.

Portanto, o sujeito habermasiano deve buscar a sua emancipação e a sua autonomia através das práticas do discurso e da justificação pública; contribuindo também para o progresso moral coletivo. E, a fim de que tenham chances de participar desse processo de discussão, todos devem ser capazes de exercer sua autonomia política (MARQUES, 2013).

A autonomia que Habermas teoriza não está relacionada ao individualismo, sua construção é intersubjetiva, dialógica e exige competências comunicativas originadas nas redes de interação que as pessoas estabelecem. Em outras palavras, o indivíduo adquire autonomia somente por meio de seu envolvimento, de sua participação em uma rede de relações comunicativas com os outros.

Dizer que a autonomia para Habermas é intersubjetiva significa dizer que o tipo de autonomia que o indivíduo possui só é possível devido às relações intersubjetivas (entre os sujeitos, entre as pessoas) que o indivíduo mantém (MARQUES, 2013).

Ademais, o sujeito em Habermas é fruto de um processo de socialização mediado pela linguagem, por meio da qual o indivíduo também formula, reflexivamente, uma história de vida.

Uma vez que Habermas considera que os sujeitos de direito só podem chegar a se tornarem indivíduos por intermédio da socialização, temos também que a integridade da pessoa somente será protegida se e quando for assegurado o seu acesso às relações interpessoais e às tradições culturais nas quais pode conservar sua própria identidade (MARQUES, 2013).

A identidade dos indivíduos socializados constitui-se ao mesmo tempo por intermédio do entendimento linguístico com os outros, bem como por intermédio do entendimento intrasubjetivo. Em suas interações comunicativas, os atores podem desenvolver suas identidades por meio da troca argumentativa que realizam uns com os outros. O sujeito se

99 desenvolve e se autocompreende a partir de reconhecimentos recíprocos por meio dos quais os indivíduos definem as suas identidades.

Assim, o sujeito em Habermas busca emancipação por meio da construção de sua autonomia, a qual depende da participação nas interações linguísticas e exige o reconhecimento recíproco das identidades dos falantes (MARQUES, 2013).

Importante destacar que a emancipação não é um resultado, mas um processo que requer uma postura crítica de compreensão da situação real e não ideal. A emancipação implica uma autocompreensão no mundo.

Segundo o modelo habermasiano, as pessoas se realizam por meio da linguagem e do uso que dela fazem para se verem inseridas dentro de uma comunidade de sentidos na qual são negociados pontos de vista para além das diferenças de cada um (MARQUES, 2013).

Neste cenário, Habermas traz à tona a problemática da convivência nas sociedades multiculturais da contemporaneidade.

Destacamos, portanto, a questão dos refugiados e sua integração nas sociedades em que passam a viver (como os refugiados que vivem no Brasil): a participação dos refugiados na democracia em seu aspecto deliberativo é condição essencial para a busca de sua integração real nas sociedades e a busca de sua identidade emancipatória.

Há a necessidade de um aperfeiçoamento do processo democrático para que as diferentes culturas ou identidades coletivas múltiplas possam coexistir em um espaço de liberdade e respeito recíproco (POKER, 2014).

O autor analisa o problema da discriminação das minorias na sociedade multicultural e afirma que essa problemática poderá ser resolvida dentro dos parâmetros institucionais e sociais do Estado democrático de Direito, uma vez que Habermas considera que apenas nesta configuração de Estado será possível uma inclusão com sensibilidade para as diferenças. (POKER, 2014).

Poker (2014) argumenta que a convivência intercultural exige como pressuposto que todo indivíduo, a despeito da cultura à qual se vincule, deve ser recoberto pelos direitos fundamentais (direitos civis, políticos), mediante os quais o sujeito é reconhecido como cidadão e se torna apto a participar do processo democrático.

Esta seria a base para a convivência nas sociedades multiculturais, caracterizadas como espaços sociais constituídos e mantidos pela permanente negociação de identidades de sujeitos que se vinculam a culturas diversas (POKER, 2014).

100 Em outras palavras, a democracia e a convivência em sociedades multiculturais são possíveis mediante a participação dos cidadãos vinculados às diversas matrizes culturais no processo democrático. Essa participação política, por sua vez, depende essencialmente de garantirmos a todos os cidadãos o acesso à linguagem em seu aspecto comunicativo. Logo, a linguagem constitui-se como identidade emancipatória para os indivíduos em sociedades multiculturais.