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AS LAPAS E O HIPOGEÍSMO NO CENTRO E SUL DE PORTUGAL

9. Regresso ao passado: Conclusões sobre o hipogeu das Lapas

Estudar um sítio arqueológico não é unicamente contar e medir. É interpretar as comunidades nas suas actividades quotidianas. É recuperar e traduzir gestos físicos, que provém de crenças espirituais. Nos casos funerários, como bem se sabe, e já tantas vezes foi repetido, trata-se de interpretar mais os vivos que propriamente os mortos. No entanto, também esses vivos se tornaram mortos, possivelmente sujeitos a rituais diferentes, daqueles que eles outrora exerceram com os seus entes queridos. É esta evolução que mais que a arqueologia, nós, desejamos entender. O desconhecimento praticamente total, de povoados do Neolítico e Calcolítico na área do Maciço Calcário Estremenho, não deixa de ser estranho. O número de sepulcros naturais e artificiais reunidos numa área tão restrita, é bastante elevado. Não deixa de ser difícil perceber a necessidade de construção de sepulcros artificiais, quando na região as grutas naturais abundam em larga escala.

Através das fotografias que Manuel Heleno tirou do sepulcro e algumas estruturas agregadas (como o corredor), é possível, de certo modo, reconstituir a provável arquitectura do monumento.

Como tal, seria uma estrutura circular escavada no tufo calcário. Não seria muito alta, já que, pelas fotografias é possível reconhecer o arranque da cúpula. O corredor, estreito, de pequenas dimensões, conduziria ao interior do sepulcro. O hipogeu estaria associado a silos. No entanto, ficou por perceber se seriam silos de época neolítica ou islâmica. Importa mencionar que no hipogeu das Lapas, apareceram sete contas em osso polido características de época islâmica e ainda um botão em ferro. É obvio que o sepulcro sofreu intrusões, embora não seja possível perceber de que modo ou como se processaram. Aparecem ainda de época Romana, duas contas em vidro e uma pedra de anel. O restante conjunto artefactual é bastante homogéneo traduzindo uma utilização do sepulcro desde o Neolítico final, até inícios do Calcolítico inicial.

Embora a presença de geométricos pudesse sugerir um certo arcaísmo, a verdade é que, este tipo de surgimento, ainda em sepulcros do Neolítico final, não é raro. A análise das lâminas procurou novas abordagens. Nas Lapas existe uma maior execução de lâminas por percussão. No entanto, em várias delas, foi possível observar uma proximidade das características à técnica de pressão, neste caso, desmascaradas pelo talão. Seria fácil de pensar que lâminas elaboradas sobre pressão seriam de maiores dimensões, justamente com o intuito de constituírem ofertas funerárias. No entanto, a

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realidade é que o mundo quotidiano e o funerário acabam por se misturar. Já longe está a ideia de que apenas constituem ofertas votivas artefactos nunca utilizados. A análise traceológica realizada às lâminas das Lapas, comprova isso mesmo. Uma delas demonstrou uso em matérias vegetais macias e outra em corte de osso/haste. Apesar de, nenhuma destas ter sido elaborada por pressão (o que provaria que, também lâminas deste tipo seriam utilizadas em contexto habitacional), estes vestígios testemunham uma oferta votiva, com um percurso anterior.

Também em pedra lascada, a maioria das pontas de seta aponta para cronologias do Neolítico final. No entanto, salienta-se a presença de duas já mencionadas, pontas de seta de pequenas dimensões (sem retoques na área central). A realidade é que pela fina espessura das mesmas, o artesão poderia ter optado por não retocar a totalidade da peça, mas, poderá também corroborar uma cronologia mais antiga. É uma questão de difícil resposta, neste caso específico. No entanto, fica a questão. Interessante é também a presença de duas pontas de seta em osso. Inicialmente confundidas como calcário, pelo seu estado de má preservação pós deposicional, certo é, que, constituem um interessante reaproveitamento de matéria óssea, reforçando o significado atribuído às mesmas.

Em relação à pedra polida a presença maioritária de machados de secções quadrangulares e rectangulares, testemunha uma utilização do sepulcro a partir do Neolítico final. Destaca-se a presença de uma goiva de pequenas dimensões. Este tipo de artefacto ainda não fornece certezas cronológicas, contudo, sabe-se que, têm de facto maior representatividade em contextos sepulcrais que em habitacionais. O paralelo mais directo para este artefacto é também o idêntico encontrado na Lapa da Galinha (Alcanena).

O hipogeu das Lapas segue uma tendência amplamente verificada nos hipogeus Alentejanos. A escassez cerâmica necessita de ser compreendida. Não há dúvidas que se trata de uma preferência de quem sepulta. No entanto, qual a razão? Na área, existem diversos sepulcros com abundante cerâmica. No entanto, apesar de não conter muitos elementos cerâmicos, o sepulcro forneceu dois vasos elípticos que mereceram especial atenção desde que foram descobertos. Assinala-se assim que nas Lapas, existem pelo menos quatro tipologias de artefactos, pouco comuns: uma placa de xisto gravada com motivo oculado, enxó encabada em calcário, dois lagomorfos em pedra verde e dois vasos elípticos.

As placas de xisto gravadas, presentes nas Lapas, atestam a aparente facilidade de comunicação entre os diversos grupos populacionais, quer fosse através da movimentação de grupos ou de um indivíduo. Neste caso, estas evidenciam bem o acolhimento da crença inerente às placas de xisto, demonstrando a relação com o complexo mágico-religioso do Alentejo.

No entanto, o mundo do sagrado presente nas Lapas, mostra não só conexão exterior com a área Alentejana, mas também se insere no universo mágico-religioso da Estremadura. Esta ligação encontra-se atestada pela presença de uma enxó encabada em calcário, tipo de artefacto votivo de calcário, que apenas surge no território da

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Estremadura Portuguesa. Apesar de não se assemelhar muito às restantes, não deixa de ser interessante a tentativa de criação de um artefacto dentro dos moldes conhecidos. Atitude que demonstra mais uma vez as ligações existentes

Estes artefactos parecem demonstrar uma ligação directa do homem à natureza envolvente. Embora alguns não se pareçam efectivamente com coelhos, como o exemplar geminado das Lapas, sobre o qual partilho da opinião de Manuel Heleno (parece mais um suíno, neste caso dois). Nas Lapas, os dois são em pedra verde, o que acentua o valor atribuído aos artefactos, sendo o único local onde os dois coelhos são elaborados em pedra verde. Sobre o real significado destes e a sua relação com a roupagem, ainda não existem certezas. Certo é que na área envolvente não existem mais coelhos, conferindo ao sepulcro um simbolismo acrescido.

Nos elementos de adorno destaca-se um conjunto de contas sobre materiais distintos. Uma conta de forma pouco comum, elaborada sobre azeviche reforça o valor atribuído às matérias-primas na hora de oferecer. Sendo uma matéria que não abunda, e que é específica de ambientes marítimos costeiros, revela só por si, ser um possível elemento de troca. O mesmo acontece com uma série de cerca de cinco contas elaboradas sobre concha. Tanto as conchas como o azeviche implicariam contactos com a zona costeira, da área de Torres Vedras. O mais curioso é que na região do Maciço Calcário Estremenho diversos sepulcros têm contas de colar elaboradas sobre concha. Isto demonstra não só frequentes contactos entre a área costeira e o Maciço Estremenho, bem como o valor atribuído a esta matéria-prima.

O sepulcro localiza-se numa área próxima de fontes de aprovisionamento de matéria, como sílex, quartzo, calcite e calcário, pelo que, será fácil supor que as trocas efectuadas tinham estes materiais como base. Nas Lapas encontram-se também contas em calcite.

Relativamente ao dente de canis, é interessante verificar que se trata efectivamente de uma crença comum, presente um pouco por todas as necrópoles neo-calcolíticas do país.

Ao mesmo tempo que o hipogeu das Lapas apresenta semelhanças com sepulcros desta cronologia, é possível afirmar que, também apresenta particularidades, como já se mencionou. É extremamente interessante e necessário, observar e criar relações entre os diversos hipogeus distribuídos pelo país.

Se a arqueologia exercida em contexto de obras de grande envergadura nos traz grandes vantagens, também grandes são as desvantagens. A maior parte dos sítios acaba por ficar inédito e sem publicação. É possível observar, que nas fichas de sítio elaboradas sobre todos os locais com hipogeus, a maior parte (hipogeus Alentejanos), apresenta bibliografia referente a relatórios de escavação. Procurou-se junto da empresa EDIA uma listagem destes locais. No entanto, muitos deles que efectivamente existem, não foram mencionados. As descrições no Portal do Arqueólogo são completas, mas a filtragem do conteúdo por vezes não revela o verdadeiro sítio arqueológico, sendo impraticável a observação de sítio a sítio. Neste sentido foram aqui mencionados todos os locais que foram passiveis de serem “redescobertos”.

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A segunda parte tenta relacionar arquitecturas, deposições funerárias e espólio, dentro de cada área geográfica e áreas entre si.

É com esta análise global que nos apercebemos da dimensão do hipogeísmo no nosso país e da existência de uma relação de proximidade/distância entre áreas. Mesmo mal conhecida, a área Alentejana não deixa de ser um elo entre a Estremadura e Algarve, que apresenta as suas próprias particularidades. Sobre o futuro das estruturas hipogeicas portuguesas espera-se que muitos dos responsáveis publiquem efectivamente sobre os sítios escavados de forma a preservar informação. Lamentável é também o facto de muitas serem destruídas perante as obras de grande envergadura. Estruturas como as do Casal do Pardo, Alapraia ou Carenque, preservadas ao longo do tempo, fornecem ainda informação a quem a procura. Informação que ainda se pode obter ao contrário das já destruídas. A evolução da sociedade tem de passar pela necessidade de preservação imediata do nosso património, independentemente do período cronológico a que este se reporta. Para uma melhor percepção do enquadramento arqueológico do hipogeu das Lapas é necessário um estudo dos sítios arqueológicos, já conhecidos, envolventes, algo que actualmente ainda não existe. Espera-se que a evolução da ciência possa também trazer novos contributos para o conhecimento do hipogeu das Lapas.