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A regulação legal do crime de estupro face aos princípios constitucionais

1 A PROTEÇÃO À LIBERDADE SEXUAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA:

2.3 A regulação legal do crime de estupro face aos princípios constitucionais

Conforme visto, a ideia de proteção aos costumes e à moral sexual vigente até o advento da Lei 12.015/2009 foi substituída, ao menos no que diz respeito aos delitos sexuais, pela proteção da dignidade.

Diante disso, se faz necessário analisar se essas mudanças estão de acordo com os princípios penais consagrados na nossa Carta Magna, uma vez que o direito penal deve ser construído tendo como base os princípios e garantias constitucionais, razão pela qual as alterações normativas promovidas pela Lei 12.015 devem ser avaliadas segundo tais princípios e garantias.

Há muito já se notava a necessidade de reformar o Título VI do Código Penal. Estefam (2009, p. 16-17) aponta que essa necessidade já vinha se impondo desde a promulgação da nossa atual Constituição Federal, “que erigiu a dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil”, ou, no mínimo, de se fazer uma releitura de suas disposições.

Ainda segundo Estefam (2009, p. 18)

No limiar do século XXI, portanto, não poderia o Estatuto Penal pátrio permanecer ligado a conceitos hoje tidos como ultrapassados. Mais do que isso, não poderia permanecer divorciado da tutela dos valores consagrados na Carta de 1988.

Conforme referem doutrinadores como Greco (2011), Estefam (2009), Marcão e Gentil (2011) e Nucci (2010), a expressão escolhida para o novo Título VI do Código Penal (“dignidade sexual”) foi oportuna e se encontra em sintonia com a nossa Constituição Federal, uma vez que a dignidade da pessoa humana,

princípio consagrado constitucionalmente no artigo 1º, III, envolve, obviamente, a dignidade sexual.

Nas palavras de Estefam (2009, p. 19)

Ao tratar nosso Código de crimes contra a ‘dignidade sexual’, fica claro que busca garantir a dignidade da pessoa humana (CF, art 1º, III), a liberdade de escolha de parceiros e da relação sexual, a salvo de exploração, a intangibilidade ou indenidade sexual, além do pleno e sadio desenvolvimento da personalidade, no que se refere à sexualidade do indivíduo.

O princípio da intervenção mínima encontra-se intimamente ligado com o princípio da subsidiariedade e da fragmentariedade. De acordo com o que se extrai do primeiro, como já visto anteriormente, o direito penal deve ser a ultima ratio, somente devendo ser aplicado quando os demais ramos do direito se mostram insuficientes. Já de acordo com o segundo, o direito penal deve atuar sobre um pequeno fragmento das condutas humanas, quais sejam, somente aquelas que lesionam os bens jurídicos mais importantes.

No que diz respeito ao princípio da intervenção mínima deixou o legislador a desejar. Nucci (2010, p. 26) questiona se todos os tipos penais constantes no Título VI são efetivamente necessários, tais como, por exemplo, o rufianismo (uma vez que a prostituição não é mais configurada como crime), casa de prostituição e mediação para servir a lascívia de outrem, questões essas que poderiam ser resolvidas pela via administrativa, em observância aos princípios da intervenção mínima do direito penal e da adequação social dessas condutas.

Ainda segundo Nucci (2010, p. 25), o princípio da intervenção mínima do Estado lembra que o direito penal deve ser a última opção legislativa para compor conflitos aplicando-se sanção. Conforme esse autor, dentro do princípio da intervenção mínima há a presença do princípio da lesividade ou ofensividade, de forma que o direito penal não deve ser utilizado para resolver qualquer conflito,

mas somente aqueles realmente ofensivos à sociedade, que podem gerar resultados trágicos se não forem devidamente contidos.

Mais especificamente, o princípio da lesividade proíbe, dentre outras coisas, as condutas que não afetem bens jurídicos, estando intimamente ligado com o princípio da alteridade, que refere que só haverá crime quando houver lesão ao bem jurídico alheio.

Além disso, o princípio da adequação social aponta que o direito penal só deverá intervir sobre as condutas que não sejam socialmente aceitas. A conduta socialmente aceita se torna uma conduta materialmente atípica. Para o Supremo Tribunal de Justiça, a adequação social é um critério de orientação para o legislador, ou seja, é o legislador que deve dizer se a conduta é ou não socialmente aceita, e, caso esta conduta seja criminalizada pelo legislador, ela passará a ser crime, embora aceita pela sociedade.

Bitencourt (2010, p. 6) refere que

esses conceitos prévios dominantes em determinado contexto social são considerados pelos legislador no momento legislativo, como também pelo próprio julgador, no momento de concretizar seus preceitos na hora de decidir.

Ainda em relação às condutas socialmente aceitas, o princípio da exclusiva proteção ao bem jurídico vai no sentido de que o direito penal não pode proteger os atos tidos como meramente imorais por parcela da sociedade, nem tentar impor essa ideologia, sob pena de ser considerado inconstitucional.

O artigo 5º, inciso X, da CF assegura o direito à intimidade, à vida privada e à honra, basilares do tema ora estudado, uma vez que não se pode falar em liberdade sexual sem respeitar cada uma dessas garantias inerentes a cada pessoa. Conforme Nucci (2010, p. 27), a atividade sexual, para muitas pessoas,

não é somente um prazer, mas uma necessidade fisiológica. Ou seja, deve-se proteger a respeitabilidade das pessoas em relação à matéria sexual, garantindo a liberdade não só de escolha, mas também de opção sexual, sem que ocorra a exploração de qualquer forma, mas, especialmente, quando envolver violência não consentida.

Nesse sentido Estefam (2009, p. 20) destaca, ainda, o princípio da tolerância, o qual defende que todos devem aceitar as convicções pessoais de algumas pessoas, de forma a não transformar o Direito Penal em um Direito Penal de exceção.

Estefam (2009, p. 22) diz que grande parte da doutrina entende que algumas das infrações previstas no Capítulo V do Código Penal são incompatíveis com a Constituição Federal, notadamente os artigos 227 a 230, nos quais somente se verificaria a tutela de valores morais, ligados a uma sociedade patriarcal e machista.

Importante observar que em relação ao novo delito de estupro de vulnerável houve um injustificável aumento do rigor repressivo. Destaque-se que as penas cominadas para esse delito estão nos mesmos patamares das penas cominadas para o delito de homicídio simples (a pena mínima do delito previsto no artigo 217-A é de oito anos, enquanto que a pena mínima para o delito previsto no artigo 121 é de seis anos). Além disso, pela atual redação do artigo 217-A, não há qualquer exigência de violência para a caracterização do delito. É possível pensar, então, que qualquer ato que possua conotação sexual praticado voluntariamente por pessoas menores de 14 (quatorze) anos ou que não estejam em condições de oferecer resistência, sujeitará seus parceiros, maiores de 18 (dezoito) anos, a penas altíssimas e a todas as conseqüências previstas na Lei 8.072/90.

Diante disso, nota-se uma ânsia punitiva incorporada pela sociedade e traduzida pelo legislador, que viola o principio da proporcionalidade (o mal da pena é maior do que o mal do crime) e impõe pautas morais baseadas em concepções religiosas de aprisionamento da sexualidade e da afetividade de pessoas definidas abstratamente como vulneráveis, sem deixar margem para que intérprete avalie essa vulnerabilidade no caso concreto.

Os instrumentos legais previstos devem ser aptos a proteger os bens jurídicos eleitos como objeto de tutela, de forma que se exige das normas penais que estejam sempre em plena sintonia com as características da sociedade e do Estado Democrático de Direito, devendo atuar dentro dos limites impostos, além de garantir a todos a proteção da dignidade, seja ela qual for.

CONCLUSÃO

O presente estudo abordou as inovações que foram introduzidas pela Lei 12.105/2009. Para tanto, estudou-se a evolução legislativa da proteção à liberdade sexual desde o Código Criminal do Império, onde os crimes previstos no Título VI tutelavam a moralidade pública, referiam-se aos “bons costumes”, e eram tratados ao lado de crimes como calúnia e injúria; passando pelo Código Penal de 1940, que descrevia, principalmente, a mulher como vítima dos crimes sexuais, sendo que se exigia que fosse “honesta”, reforçando uma moral sexual baseada no aprisionamento da sexualidade feminina.

Demonstrou-se, também, que a legislação penal colocava a mulher numa condição de inferioridade, uma vez que em todos os Códigos Penais brasileiros a mulher sempre foi tida como intelectualmente inferior ao homem, já que se tratava de uma sociedade patriarcal, na qual mulher tinha papel de submissão, reproduzindo-se a ideia de que as mulheres eram facilmente enganadas pelo ardil masculino.

Com as inovações da Lei 11.106/2005, o legislador começou a compreender que a norma penal deveria acompanhar os costumes atuais e a evolução da sociedade. A partir de então, a mulher passa a assumir uma posição de igualdade em relação ao homem. Inúmeras mudanças foram trazidas com essa

lei, porém, as principais delas foram o abandono do termo “mulher honesta” e da superestimação da virgindade, bem como a supressão da extinção da punibilidade em caso de casamento entre a vítima e o autor do delito de estupro.

As alterações promovidas pela Lei 11.106/05, bem como as inovações da Lei 12.015/09 foram impulsionadas pelos movimentos críticos (repressivistas e feministas) que ajudaram a promover a reforma da legislação penal, de forma que, através do movimento feminista, a mulher conseguiu o reconhecimento de seus direitos e garantias, deixando de lado rótulos e preconceitos.

Com as alterações promovidas pela Lei 12.015/09, a denominação do Título VI da parte especial do Código Penal, agora designado de “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”, encontra-se de acordo com o bem jurídico tutelado, O presente título é mais adequado que o título anterior (“Dos Crimes contra os Costumes”), já que os delitos previstos não atentavam contra a moralidade pública, mas sim contra a dignidade e a liberdade sexual das vítimas. O legislador poderia, contudo, ter avançado mais inserindo os crimes sexuais nos delitos contra a pessoa, já que, como se viu, os delitos contra a liberdade sexual não possuem relações com a moral ou com os valores, mas sim com a liberdade pessoal de cada indivíduo.

A principal alteração refere-se aos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, agora fundidos em um único tipo penal, o artigo 213, denominado simplesmente de “estupro”. Também foi incorporada ao Código Penal a figura do estupro de vulnerável, no novo artigo 217-A, que vem trazendo muita polêmica entre os doutrinadores. As críticas principais se concentram na questão da presunção absoluta de vulnerabilidade, uma vez que não importa se o ato foi realizado consensualmente ou não. A partir daí surge um novo questionamento a respeito dos menores de 14 (quatorze) anos de idade, já que entendeu o legislador que estes não possuem capacidade em discernir a prática de atos

sexuais, mas, em contrapartida, o Estatuto da Criança e do Adolescente define como adolescente o maior de 12 (doze) anos de idade.

Outra alteração resultante da reforma penal diz respeito à ação penal, que, de regra, passou a ser pública condicionada à representação, salvo nos casos em que a vítima for menor de 18 (dezoito) anos de idade ou pessoa vulnerável, para os quais a ação penal será pública incondicionada.

Diante do que foi discorrido no trabalho, percebe-se que o legislador deixou a desejar, já que está sempre atrás do que está assentado na sociedade e que, muitas vezes, se tem até por cotidiano na vida das pessoas. Além disso, questiona Nucci se todos os tipos penais constantes no Título VI são, de fato, necessários, como, por exemplo, o delito de manter casa de prostituição, já que a prostituição em si não é mais considerada como crime.

Essa reforma se mostrava necessária não só para adequar o texto penal à atual sociedade, mas também para adaptar o Título VI da parte especial do Código Penal aos princípios constitucionais. Destaca-se, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da CF, demonstrando que a expressão “dignidade sexual” foi oportuna e se encontra em sintonia com a nossa Carta Magna.

Analisando-se a reforma pelo prisma dos princípios penais constitucionais, conclui-se que o legislador, ao alterar o Título VI da parte especial do Código Penal, deixou de observar o princípio da proporcionalidade, uma vez que as penas cominadas para o novo delito de estupro de vulnerável estão nos mesmos patamares das penas cominadas para o delito de homicídio simples, de forma que houve um injustificável aumento do rigor repressivo, já que para o delito de estupro de vulnerável não há exigência de violência para sua caracterização.

Demais disso, o artigo 5º, inciso X, da CF assegura o direito à intimidade, à vida privada e à honra, de forma que não deve o Estado buscar pautar o comportamento das pessoas, mas sim agir dentro dos limites e punir somente aquelas condutas realmente prejudiciais a terceiros e bens jurídicos objeto de tutela. Ou seja, deve a norma jurídica estar sempre em sintonia com a sociedade e com o Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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