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Existe uma disputa no país entre publicitários, anunciantes e pais. Em diferentes entrevistas38, publicitários defendem a publicidade como algo educativo para as crianças e que privá-las disso seria deixá-las isoladas da realidade. Já os pais trabalham o dia inteiro e não tem como mediarem a quantidade de anúncios aos quais as crianças são expostas diariamente, desde os banners até vídeos de YouTubers que fazem parte do entretenimento delas. Instituições que defendem o fim da publicidade infantil justificam que a comunicação mercadológica deve ser dirigida aos pais, pois são eles detêm o poder aquisitivo, ou seja, são os compradores. Contudo, para as empresas é mais vantajoso anunciar para a criança, que poderá ser mais facilmente persuadida do que para os pais. Assim, caberia ao Estado resolver esse impasse39 como ocorre em outros países.

Na tentativa de fazer a mediação entre essas instâncias, o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) foi criado em 1980 como forma de evitar que a publicidade fosse regulada pelo governo militar da época, o que colocaria em risco a liberdade de expressão comercial. O Código de Autorregulamentação foi escrito antes, em 1978. O artigo 8º do Código determina o que seria a publicidade e o que o Conselho deve supervisionar:

O principal objetivo deste Código é a regulamentação das normas éticas aplicáveis à publicidade e propaganda, assim entendidas como atividades destinadas a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos ou ideias (CONAR, 1980).

38 Ver mais nos documentários: "Criança - alma do negócio" (2008) e "Muito além do peso" (2012), ambos da produtora Maria Farinha Filmes juntamente com o Instituto Alana.

39 Países como Alemanha, Argentina, Uruguai, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Colombia, Espanha, Grécia, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, México, Portugal já possuem legislações presentes em suas respectivas políticas públicas que regulamentam a publicidade dirigida à infância. Elas envolvem restrições de horários para os comerciais televisivos e delimitam a necessidade de apresentar claramente que se trata de uma comunicação mercadológica. Na Noruega e na Suécia, a publicidade de produtos e serviços para crianças de até 12 anos de idade é proibida. Outros países apresentam a autorregulamentação como apoio às leis governamentais: Austrália, Irlanda e Itália. Demais países que possuem somente agências governamentais reguladoras da publicidade: Dinamarca, Espanha, Estados Unidos. Ver mais em: <http://criancaeconsumo.org.br/advocacy/legislacao-internacional/>. Acesso em: 25 abr. 2017.

Entre as associações que formularam o Código estão Associação Brasileira das Agências de Propaganda, Associação Brasileira de Anunciantes, Associação Nacional de Jornais, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e de Televisão, Associação Nacional de Editores de Revistas, Central de Outdoor (SANT’ANNA, 2002, p. 328). Além dessas associações, temos representantes da sociedade, a maioria jornalistas. Sua proposta é defender os direitos dos publicitários, dos anunciantes juntamente com os do consumidor.

O Conselho é um órgão da sociedade civil, sem fins lucrativos, assumindo propósito de fiscalização das peças publicitárias. Entre as atribuições do CONAR está: receber denúncias apresentadas por anunciantes, autoridades, associados, profissionais de propaganda e consumidores em geral, para proceder o julgamento da peça em questão quando for o caso. O resultado deste processo é uma recomendação, feita por meio do seu Conselho de Ética, e que pode ser: alteração do anúncio, suspensão de sua veiculação ou, ainda, uma reprovação pública do mesmo. São recomendações meramente indicativas (MONTEIRO, 2015, p. 222).

Portanto, efetivamente o CONAR não tem respaldo governamental para regulamentar a publicidade. O Código apresenta indicações sobre como a atividade publicitária deve ser feita. Em relação às crianças e aos jovens, o artigo 37 da Seção 11 do Código de Autorregulamentação Publicitária determina que a publicidade não pode estimular comportamentos socialmente condenáveis ou impor o consumo. Define cuidados especiais a serem tomados pelos publicitários em relação a certos tópicos como segurança e boas maneiras.

O Anexo H do mesmo Código diz que os publicitários não devem utilizar distorções psicológicas nem o estímulo imperativo à compra, tomando o devido cuidado de não apresentar assim uma figura de autoridade como pais, médicos, professores na mensagem. Porém, nem sempre isso é cumprido como foi o caso do comercial do McLanche Feliz Rio40, no qual, o comercial passava antes do filme Rio nos cinemas para crianças de todas as idades, apresentando personagens do enredo voando junto às crianças. O Instituto Alana41 fez uma denúncia formal ao Conselho. O relator do caso, representando o CONAR, fez sátiras desrespeitosas para o Instituto Alana que tinha feito

40 Ver mais em MONTEIRO, Maria Clara. A legitimidade do CONAR e a participação da esfera pública na discussão da publicidade para criança. Culturas midiáticas, v. 8, n. 14, 2015, p. 216-228.

41 “É uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1994, que defende os direitos da criança e dos adolescentes em questões relacionadas principalmente às relações de consumo” (MONTEIRO, 2015). É uma das principais instituições que luta pelo fim da publicidade dirigida à criança.

a denúncia do comercial, chamando de “bruxa Alana, que odeia criancinhas [...] e prefere deixá-las bem magrinhas” (RODRIGUES, 2011 apud MONTEIRO, 2015)42. Esse caso é um indício de como a autorregulamentação não está preparada para atender as expectativas do público em defesa da criança perante à publicidade.

Já na instância governamental, temos os artigos 36 e 37 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CPDC) que versam sobre a publicidade, como deve ser comunicada e o que é considerado abusivo.

Art. 36. a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifque como tal. Parágrafo único. o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científcos que dão sustentação à mensagem. Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite a violência, explore o medo ou a superstição, se

aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança,

desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (BRASIL, 2012, p. 22-23, grifo nosso).

Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aprovou a Resolução43 16344 que estabelece que qualquer comunicação mercadológica direcionada à criança é abusiva, independentemente da mídia utilizada, ou seja, a partir da nossa interpretação, os vídeos de YouTubers que promovem produtos para o público infantil deveriam ser considerados como publicidade abusiva.

§ 1º Por 'comunicação mercadológica' entende-se toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado. § 2º A comunicação mercadológica abrange, dentre outras ferramentas, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e

42 Ver o parecer do conselheiro do CONAR disponível em: <http://www.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/docs/acoes/Mc%20Lanche%20Feliz%20Rio/Docume nto1.pdf>.

43 “Ato emanado de órgão colegiado para estabelecer normas ou para fazer cumprir suas deliberações” (USP, 1997, p. 42). É diferente de Lei, que se configura como “Ato normativo que é regra de direito ditada ela autoridade estatal e tornada de obediência obrigatória para manter, numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento” (USP, 1997, p. 22).

44Ver a resolução completa em: < http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1 &pagina=4&data=04/04/2014>. Acesso em: 24 abr. 2016.

páginas na internet, embalagens, promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição dos produtos nos pontos de vendas. Art. 2º Considera-se abusiva, em razão da política nacional de atendimento da criança e do adolescente, a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos: I - linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; II - trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; III - representação de criança; IV - pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; V - personagens ou apresentadores infantis; VI - desenho animado ou de animação; VII - bonecos ou similares; VIII - promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e IX - promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil (BRASIL, 2014, p. 4)

Outro passo adiante para a regulação da publicidade foi o decreto 8.552/2015 aprovado pelo governo federal em 2015 que proíbe a publicidade de alimentos infantis que seriam prejudiciais à amamentação, como papinhas, leites artificiais e até mamadeiras.

Porém, devemos lembrar o Projeto de Lei 5.921/01 que proíbe a publicidade dirigida à criança está em trâmite na Câmara dos Deputados desde 2001, esperando para ser encaminhado ao Senado, pois ele barra nos interesses comerciais que impedem a sua aprovação.

Acontecimento fruto da resolução 163, em 2016, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) considerou ilegal o direcionamento da publicidade para as crianças no julgamento da campanha “É Hora de Shrek”45, de 2007, da empresa Pandurata, detentora da marca Bauducco (CRIANÇA E CONSUMO, 2016). Porém, as empresas continuam fazendo anúncios para as crianças, inclusive através dos espaços publicitários que YouTube oferece e pelos YouTubers.

Em meados de junho de 2016, o Instituto Alana fez uma denúncia no Ministério Público Federal do Rio de Janeiro contra 1546 empresas de setores como brinquedos e vestuários que mandam produtos para os YouTubers mirins brasileiros mostrarem nos

45 A campanha consistia em juntar cinco embalagens de produtos da linha “Gulosos Bauducco” e pagar R$ 5,00 para ganhar um relógio com a temática do filme do Shrek (CRIANÇA E CONSUMO, 2016). 46 As empresas são: Bic Graphic Brasil Ltda, Biotropic Cosmética Licensing, C&A Modas Ltda., Cartoon Network, Foroni Indústria Gráfica Ltda., Edutenimento Entretenimentos do Brasil Ltda. (Kidzania), Long Jump – Representação de Brinquedos e Serviços Ltda., Mattel do Brasil Ltda., Arcos Dourados de Alimentos Ltda. (McDonald’s), Pampili Produtos Para Meninas Ltda., Lojas Puket Ltda., Ri Happy Brinquedos S.A., Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, Sestini Mercantil Ltda. e Tilibra Produtos de Papelaria Ltda. Ver mais em: < http://criancaeconsumo.org.br/acoes/YouTubers-mirins/>. Acesso em: 01 mai. 2017.

seus vídeos de recebidos/resenhas47. Eles acabam sendo uma vitrine para as empresas dada a grande visibilidade que possuem, o que desrespeita a resolução 163 do CONANDA. Porém, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro e sua Procuradora da República, Ana Padilha Luciano de Oliveira, optaram pelo arquivamento do caso pelo fato das empresas não se localizarem no estado do RJ e pela ausência de lesão à União, às suas autarquias e empresas públicas (CRIANÇA E CONSUMO, 2017a). A Procuradora decidiu que caberia ao Promotor de Justiça Infância e Juventude do estado de São Paulo, onde ficam a maioria das empresas, fazer a apuração dos dados. Ou seja, com a demora da investigação, as práticas abusivas de publicidade continuam sendo publicadas no YouTube.

Mais um exemplo da lentidão processual do país, porém com um final favorável, em 2017, o Superior Tribunal da Justiça manteve a multa dada à empresa Sadia pelo Procon por ter feito uma campanha publicitária chamada “Mascotes”, veiculada durante os jogos Pan Americanos do Rio em 2007. Nela, eram promovidos bichos de pelúcia, com o frango símbolo da Sadia, que poderiam ser comprados por R$ 3,00 mais os selos encontrados nos produtos da marca. A Sadia havia recorrido contra o Procon que havia condenado a marca a pagar quase R$ 500.000 pela campanha. Porém, o STJ reiterou que a publicidade não deve ser voltada para as crianças, condenando também a venda casada desses produtos com os bichinhos de pelúcia.

Outro avanço para a discussão da publicidade infantil foi a aprovação, em agosto de 2017, na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 2640/2015 que prevê a proibição de qualquer comunicação comercial, ou seja, publicidade de produtos e serviços em escolas públicas e particulares de educação básica (CRIANÇA E CONSUMO, 2017c). É mais um resultado da resolução 163 que segue para votação no Senado.

Mesmo com essas decisões jurídicas, a vulnerabilidade das crianças em entender a publicidade não é colocada em prática pelo Conar e nem pelos anunciantes que continuam a descumprir a resolução 163.

A publicidade usa o exagero legítimo chamado "puffery" e usa a retórica como um dispositivo para persuadir os consumidores potenciais. Se as crianças são a audiência, então é claro que é um caso a priori que a imaturidade das crianças em diferentes estágios de desenvolvimento deve ser considerada ao legislar ou regulamentar a publicidade para crianças (YOUNG, 2008, p. 409, tradução nossa).

47 Ver mais em: < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36495888?ocid=socialflow_facebook>. Acesso em: 01 mai. 2017.

Portanto, é necessário ir além da resolução e da autorregulamentação e promover a participação das crianças também na discussão sobre a publicidade infantil, seja em pesquisas, projetos acadêmicos, em ONGs ou em sessões na Câmara dos Deputados e no Senado, principalmente se levarmos em consideração os diferentes tipos de comerciais que podemos encontrar na Internet, em especial, os feitos pelos YouTubers. São novas formas de comunicação mercadológica misturada com o entretenimento que diluem as barreiras do que é publicidade ou não.