• Nenhum resultado encontrado

Reincidência criminal, violação de direitos humanos e a crise do sistema carcerário: “o estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário

brasileiro

Segundo dados do International Centre for PrisonStudies(ICPS) o Brasil está em quarto lugar como um país que mais encarcera no mundo, porém mesmo assim a taxa de criminalidade e reincidência só aumentam. O que deveria servir para acabar com a criminalidade, não está tendo nenhum dos efeitos esperados, o que nos permite questionarmos a respeito da eficácia de simplesmente prender e depois de determinado período soltar o detendo nas ruas do mesmo jeito que entrou, ou como na maioria das vezes pior do que chegou (IPEA, 2015).

O índice de reincidência no Brasil é muito alto, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e em que pese não possuirmos nenhum estudo específico que trabalhe sobre a reincidência criminal, o que dificulta sua análise na prática, pois os dados estatísticos não são precisos. A imprensa e gestores públicos repercutem a informação de que a taxa de reincidência no Brasil é de 70%.

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do sistema carcerário divulgou em 2008 que a taxa de reincidência chegava a 70% ou 80%, um número assustador, que, no entanto, não pode ser confirmado pela Unidade da

36 Federação. O relatório destaca que “hoje sabemos que a prisão não previne a reincidência e que devemos caminhar para alternativas que permitam ao autor de um delito assumir responsabilidades e fazer a devida reparação do dano eventualmente causado” (BRASIL, 2008).

O IPEA cita em seu relatório de 2015 que alguns anos atrás o Ministério da Justiça falou que a reincidência era de difícil apuração. Já o DEPEN (2001), em seu relatório de 2001, citou que reincidência criminal em 1 de janeiro de 1998 era de 70% e que sua meta era reduzi-la, até 2003, para 50%.

De acordo com o IPEA (2015, p. 14):

Esse grave problema tem levado o poder público e a sociedade a refletirem sobre a atual política de execução penal, fazendo emergir o reconhecimento da necessidade de repensar essa política, que, na prática, privilegia o encarceramento maciço, a construção de novos presídios e a criação de mais vagas em detrimento de outras políticas.

A pesquisa realizada pelo IPEA em 2015, estudou 936 (novecentos e trinta e seis) presos das 5 (cinco) Unidades Federativas. Havendo a necessidade de exclusão de alguns casos que diziam respeito ao mesmo réu, dos 889 processos identificados restou 817 casos. Entre os 817 processos válidos para o cálculo da taxa de reincidência, foram constatadas 199 reincidências criminais. De tal modo, a taxa de reincidência é de 24,4%.

Tabela 3 - Número de apenados, não reincidentes e reincidentes.

UFs da amostra Processos válidos

Não reincidentes Reincidentes

AL, MG, PE, PR e RJ 817 618 199

% 100 75,6 24,41

37 A faixa etária predominante dos apenados no momento do crime foi de 18 a 24 anos, com 42,1% do total de casos – 44,6% entre os não reincidentes e 34,7% entre os reincidentes. Os dados revelam que 91,9% dos apenados eram do sexo masculino, contra 8,1% do sexo feminino. Também mostram uma maioria de pretos e pardos em relação ao não reincidentes 53,6% e em relação aos reincidentes o que expressa é uma maioria branca total de 53,7%. (IPEA, 2015)

É preciso trabalhar mais sobre a reincidência criminal, identificar a fundo qual é o real problema para idealizar uma solução possível, que atenda as expectativas das nossas leis e garantam aos presos todos os seus direitos instituídos nelas.

Porém o que se vê são apenas violações desses direitos, embora haja inúmeros dispositivos legais listando os direitos e garantias dos detentos, o sistema prisional não está conseguindo seguir a linha da legislação, se mantendo de maneira precária, tendo em vista o descaso das autoridades e também da sociedade. Deste modo as pessoas presas vivem com seus direitos violados diariamente, pois o atual sistema penitenciário não apenas os priva da liberdade, como também os direitos básicos, como saúde, alimentação, higiene, entre tantos outros.

A situação caótica das penitenciárias brasileiras é vista com indiferença pela sociedade, que a partir do senso comum defende estas situações desumanas, com argumento de quem está preso é porque merece e deste modo não tem que se queixar pois cometeram crimes e merecem estarem ali, daquela forma.

Uma das soluções apresentadas pelo Estado foi a LEP (Lei de Execuções Penais), que é perfeita em sua disposição. Pode ser chamada de ideal, com todos os direitos garantidos e possível integração do condenado com a sociedade. Assim, dispõe em seu 1º artigo: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” E ainda nos artigos. 10 e 11 dispõem sobre a assistência ao preso:

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

38 Art. 11. A assistência será:

I - material; II - à saúde; III -jurídica; IV - educacional; V - social; VI - religiosa. (BRASIL, 2019)

Porém, ela não vem acontecendo na prática como idealizada.

Em relação a assistência material Nunes (2013, p. 64) afirma que:

De um modo geral, a comida servida em nossos estabelecimentos prisionais, consumida pelos detentos, costumeiramente é repudiada pelos próprios encarcerados e pelos que visitam nossas prisões. Muitos dizem que a comida, além de fria, é de péssima qualidade nutritiva e “cheira mal”. [...] o tema da alimentação nas prisões é de grande importância, não só́ porque o interno tem direito a uma alimentação suficiente para a sua subsistência normal, podendo ressentir-se sua saúde de sua insuficiência ou baixa qualidade, mas também porque é esse um poderoso fator que pode incidir positiva ou negativamente, conforme o caso, no regime disciplinar dos estabelecimentos penitenciários. Uma boa alimentação não vai fazer feliz um homem que está na prisão, mas evita motins e, por isso, a alimentação não deve ser descuidada, mas, pelo contrário, escrupulosamente atendida. (MIRABETE, op. cit. p. 66 e 67, apud NUNES, 2013, p. 64).

Deste modo, devido à má alimentação fornecida pela administração dos presídios, o artigo 13 da LEP permite a venda de item alimentícios e de higiene pessoal em comércios dentro dos estabelecimentos prisionais. “O estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração”.

Thainá Toneti Garcia cita em seu trabalho acadêmico (2018) um exemplo da violação dos direitos dos presos em relação à alimentação, segunda ela de acordo com Gama (2015), os presos da cidade de Maceió receberam pães mofados e contaminados com fezes de rato no café da manhã. Os alimentos contaminados foram entregues aos presos, porém, não chegaram a ser consumidos, pois os servidores constataram a contaminação a tempo. Porém eles ficaram sem aquela alimentação, visto que não tinha outros pães para fazer a substituição.

39 Em relação à assistência à saúde é complicado, pois devido a superlotação dos presídios os presos são propensos a pegar doenças, infelizmente alguns estabelecimentos prisionais não possuem estrutura adequada para fornecimento de médicos e profissionais da área da saúde.

O princípio da assistência jurídica por vezes pode ser o menos violado, pois na maioria das casas de detenção os presos possuem lugares especiais e reservados para conversarem com seus advogados. Porém o que acontece muito na prática é a obtenção de informações dos presos por meio da intimidação.

O direito a assistência educacional é garantido de acordo com a instrução escolar e formação profissional do preso e do internado, de acordo com o artigo 17 da LEP: “Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução e a formação profissional do preso e do internado”. De acordo com o gráfico trazido no item 1.1.3 percebe-se que aproximadamente 51% dos presos possuem o ensino fundamental incompleto, nos mostrando que a realidade dos sistemas prisionais em relação a educação é outra.

Simplesmente a educação prisional é inexistente, embora a partir de 1999 tenha havido um estímulo à educação, no momento em que vem se assegurando ao preso o direito à remição pelo estudo. A Lei n. 12.433/2011 alterou a Lei de Execução Penal, que passou a prever a remição de “1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias” (art. 126, § 1.o, I). O certo é que nas prisões onde existem escolas não há número suficiente de professores, nem de vagas, ensejando mais uma afronta à LEP que previu a necessidade de educar o recluso. O ensino do primeiro grau nos presídios é uma utopia, e a profissionalização é simplesmente inexistente, embora a LEP tenha autorizado a celebração de convênios com entidades públicas ou particulares, para assegurar a educação nas prisões. (NUNES, 2013, p. 72).

Percebe-se, então, que a previsão legal do ensino obrigatório não é cumprida, tanto por desinteresse político, quanto por falta de condições físicas e materiais dos presídios.

Em se tratando da assistência social, o artigo 22 da LEP prevê: “Art. 22. A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepara-los para retorno à liberdade”. De acordo com Garcia (2018) é de grande importância lembrar que

40 as penas e medidas de segurança aplicadas aos indivíduos têm essa mesma finalidade: a reabilitação, tendo por objetivo que o preso seja reeducado, reabilitado e ressocializado, ainda que não ocorra na prática. A assistência visa resguardar os presos, auxiliando-os e preparando-os para o seu retorno ao convívio em sociedade.

A assistência religiosa está prevista no art. 24 da LEP, em seu §1º, exigindo a necessidade de um local apropriado para tais manifestações no estabelecimento penal, devendo, ainda, o Estado incentivar tais práticas, a fim de diminuir as tendências de criminalidade dentro dos presídios e colaborar com o futuro dos presos, ajudando-os a agir em conformidade com a lei, pelo fato de que a religião sempre influenciou no comportamento do ser humano (GARCIA, 2018).

Estes são os direitos que a LEP deveria garantir aos presos conforme sua disposição. A integridade física e moral dos presos é assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil, do ano de 1.988, a saber:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; [...] (artigo 5º da LEP)

Recentemente foi divulgado no site da Folha de São Paulo (2019) denúncia feita pelos detentos de Taubaté –SP por cartas. Uma das cartas inicia dizendo “Oi, mãe. Tudo bem? Estou enviando esse bilhete para pedir uma ajuda para a senhora, pois vamos fazer uma paralisação pacífica em prol de todos da unidade”. E é assim que diversos presos denunciam os abusos comunicando suas famílias (GOMES & PAULUZE, 2019).

De acordo com a Folha os abusos relatados pelos detentos incluem punições coletivas, por atos praticados individuais, maus tratos aos seus familiares em dias de visitas, que seus alimentos e itens de higiene recebidos são descartados, relatam a falta de atendimento médico adequado e a superlotação da unidade. Em sua defesa a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) nega a maior parte das denúncias e afirma que os detentos recebem tratamento adequado (GOMES & PAULUZE, 2019).

41 De acordo com a mãe de um dos detentos, um advogado foi mandado pelos familiares, mas não foi atendido. Ela conta que “A ‘mistura’ [carne] de lá vem verde, com inseto dentro, com unha. As celas têm 35, 37 presos, para 12 camas”. Afirma que eles estão lá porque fizeram alguma coisa, mas esse tratamento é desumano. Estas declarações violam todos os direitos anteriormente citados. Isso que se trata de apenas uma unidade prisional, podendo apenas ter uma ideia do caos que se encontram nossas casas de detenção (GOMES & PAULUZE, 2019).

Tendo em vista todos os pontos tratados até aqui, o Supremo Tribunal Federal - STF reconheceu o Estado de Coisa Inconstitucional proposta em maio do ano de 2015 pelo (PSOL) Partido Socialista e Liberdade, em relação a nossa péssima estrutura penitenciária. Nesta ação o partido exigiu que o STF reconhecesse as inúmeras violações aos direitos humanos, afirmando que a superlotação e os abusos presentes nos direitos dos presos são totalmente incompatíveis com a Constituição Federal. Destacaram as torturas, agressões, abusos sexuais, ausência de trabalhos e muitas outras falhas no sistema.

Priscila Ferreira Deffendi (2018) destaca em seu trabalho acadêmico que o partido mencionou que a União não estava repassando os valores necessários para o fundo penitenciário, para manutenção dos serviços, evidenciou que os órgãos administrativos depreciam os preceitos legais e constitucionais quando não dão devida atenção principalmente ao déficit de vagas que temos atualmente. Na presente ação pediu que o STF reconhecesse a existência do “Estado de Coisas Inconstitucional” e também:

Postulava-se o deferimento de liminar para que fosse determinado aos juízes e tribunais: a) que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão,

42 ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos — v. Informativos 796 e 797. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm> acesso em 27 Nov. 2019.

De Acordo com o informativo, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do sistema, admitindo os abusos generalizadas, reconheceu que o sistema não está cumprindo sua função de reeducar os indivíduos, e que ao contrário, está contribuindo para a criminalidade, e que as falhas estruturais agravam a situação. Porém deferiu apenas as imposições b e h, sendo a audiência de custódia para tentar solucionar uma parte da superlotação, e a liberação das verbas da FUNPEN. Sobre os pedidos “a, c, d” o Supremo entende ser desnecessário, sendo já são deveres impostos pela constituição aos magistrados, portanto ordená-los seria chover no molhado, apenas reforço.

Após o STF confirmar que estamos vivendo um Estado de Coisas Inconstitucional, se faz necessário uma avaliação de urgência do Estado em relação a implementação de novas políticas públicas, buscando a salvação de todo o sistema penitenciário brasileiro, e preservando os direitos devidos a pessoa presa, para que obtenha a reinserção do apenado dentro da comunidade que lhe possibilite uma nova vida longe do crime, deste modo despencando os índices de reincidência.

43 2. O MODELO APAC E SUAS POSSIBILIDADES NO PROCESSO DE REINSERÇÃO SOCIAL DO APENADO.

O segundo capítulo trará dados sobre as APACs, explicando o seu modelo de funcionamento, também suas possibilidades e limites quanto ao processo de reinserção social da pessoa presa. Será feita uma abordagem acerca dos Direitos Humanos, princípios da dignidade da pessoa humana e penais relativos à execução das condenações; e a necessidade do Estado de assegurar tais direitos como alternativa para promover a reinserção social do apenado, bem como discorrer sobre a necessidade de superação da lógica da “ressocialização”. Também comparar dados do encarceramento no Brasil e as diferenças entre o sistema prisional comum e o método APAC, bem como os perfis da população carcerária brasileira. Para tanto o presente estudo irá verificar experiências em andamento relativas àsAPACs e analisar se estas estão sendo eficazes na busca da melhor reinserção do reeducando na sociedade.