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6 Reinterpretando o Direito sob a ótica da coerência e integridade

O caso da ocupação Alto da Paz não pode ser analisado juridicamente tendo por base a legalidade burguesa porque esta se caracterizará pela proteção à propriedade – algo conveniente ao tratar dos direitos das classes bastardas. O que ocorre nesse tipo de caso não

é algo que possa ser enquadrado no legalismo que se conhece, há uma necessidade histórica do cumprimento das promessas da modernidade pelo Estado Democrático de Direito. As classes subalternizadas ao reivindicarem tais promessas não podem ser tratadas como criminosas, mas devem ser compreendidas como a exteorização da categoria auctoritas – agora, não mais quanto qualidade de uma classe dominante soberana –, esta como o exercício de soberania do povo prevista no art. 1, § único da Constituição. Obviamente se pode argumentar que tal poder é regulado de modo específico pelo art. 14, todavia não se pode fazer uma leitura simplista do texto constitucional, há uma necessidade de averiguar de modo sistemático, para que se possa salvaguardar a coerência e a integridade das normas constitucionais:

A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte dos juízes. Isso somente pode ser alcançado por um holismo interpretativo, constituído a partir do círculo hermenêutico. Já a integridade significar rechaçar a tentação das arbitrariedades, que, no mais das vezes, é variante da discricionariedade. (STRECK, 2012, p. 368)

Essa paralaxe no modus operandi da dogmática jurídica faz-se necessário, visto as novas necessidade históricas que são postas por uma Constituição que possui normatividade imediata e é invasora da legalidade, assim como fundadora do espaço público (STRECK, 2012, 2014a, 2014b). O art. 14, nesse contexto, não pode ser analisado de forma restrita, nem isoladamente, pois se corre o risco de perder a perspectiva da totalidade. Casos como o que foi retratado devem ser

analisados de tal maneira que a objetivação jurídica deste deva representar em última ratio a integração/conformação das possibilidades de sentido da norma, como explicita de maneira percuciente Streck (2012, p. 369, grifo original):

Destarte, a busca da resposta correta (ou hermeneuticamente adequada à Constituição) implica perscrutar os limites desse nível de generalização, que representa uma espécie de ‘grau de objetivação abrangente’, isto é, uma ‘entificação mínima necessária da interpretação jurídica’. Trata-se, assim, de uma ‘fuga do indiferenciado’, ‘uma suficiência ôntica no limite da dupla estrutura da linguagem’ (o apofântico e o hermenêutico), linguagem na qual entificamos enunciados sob os quais queremos transmitir os elementos mínimos para se submeter à generalidade do princípio extraído da norma (norma ou julgamento). Não esqueçamos que todo processo compreensivo tem o objetivo primordial – como bem assinala Stein – de ‘levar os fenômenos à representação ou à sua expressão na linguagem, chegando, assim, ao que chamamos de objetivação’. Uma decisão judicia; precedente leva um determinado fenômeno à representação, do mesmo modo como enunciamos sentidos que interpretam fatos. Há sempre nisso um elemento estruturante. A dogmática jurídica hodierna não trabalha dentro desta lógica de objetivação. As decisões judiciais tendem a discricionariedade e a arbitrariedade dos julgadores. O que se pretende construir possui centralidade no caso concreto, mas a partir de um grau de generalização que se torna passível aplicar a hermenêutica utilizada para esta situação em todos os outros casos similares. Isso por que não se construiu abstratamente nenhuma das categorias utilizadas para a análise, estas são fruto de uma pré-compreensão e da tradição (GADAMER, 2011; STRECK, 2012).

O intuito não é constituir um processo hermenêutico livre de sentido, mas desvelar criticamente o que foi obnubilado pela ideologia liberal e trazer a lume, pela objetivação da linguagem, o que realmente acontece quando há uma ocupação de terras de modo que essa não se apresente de forma apofântica, mas sim como uma resposta hermeneuticamente construída e que possa se conservar para outras decisões.

Nesse sentido, se compreende a ocupação Alto da Paz como a exteriorização do exercício do poder do povo, representando assim na tradição jurídica a categoria auctoritas – adequada a tempos democráticos –, sendo esta suspensão do legalismo burguês – potestas – ante um caso de reivindicação de direitos fundamentais elementar ao desenvolvimento de qualquer país que não age de forma restritiva diante da intensificação da vida democrática.

A objetivação deste entendimento a uma decisão jurídica que trate de um caso similar será o reconhecimento social da legitimidade da reivindicação dos direitos fundamentais dos povos marginalizados, em outras palavras o officium.

Desse modo, para além da compreensão do Direito na sua

coerência e integridade, pode-se afirmar que há um salto ontológico

da dogmática jurídica centrada num positivismo arbitrário e discricionário que apenas legítima e reproduz as relações de poder para uma dogmática compromissada com os desvelamentos das relações sociais de poder, tendo a humanidade e a natureza no centro

de suas reflexões, assimilando a tradição e a pré-compreensão quanto elementos estruturantes de qualquer decisão, superando a discussão texto-norma (sujeito-objeto) de modo a apresentar para a sociedade as potencialidades das transformações necessárias para uma sociedade justa, socialmente responsável, ecologicamente equilibrada e que a cada decisão descontrua a lógica de reprodução da vida social que o capital impõe (MÉSZÁROS, 2011), construindo um Estado-nacional materialmente democrático.

Nesses moldes, a segurança jurídica não será apenas um argumento sofístico, solapada ao alvedrio de quem esteja exercendo a dominação social, que atenda ao legalismo burguês; ela se constituíra quanto um instituto sólido duradouro que conservará os elementos fundantes de uma outra sociabilidade.