• Nenhum resultado encontrado

Em face da fraca atuação das entidades associativas em prol da defesa de direitos transindividuais, o Ministério Público assumiu o papel como principal autor nos processos coletivos. As ações civis públicas em sua maior parte são promovidas por essa entidade pública. Para Flávia Hellmeister Clito Fornaciari Dorea, essa atuação não seria a mais adequada para a defesa dos direitos transindividuais, o mais ideal seria que a própria sociedade assumisse como principal legitimada803. Antonio Gidi afirma que as associações deveriam ser as mais ativas no processo coletivo, pois são as mais diretamente interessadas. Segundo o autor baiano, na maioria dos estados do Brasil, a atuação do Parquet supera a atuação de todos os legitimados juntos804.

De certa forma, o Ministério Público tem uma posição peculiar em comparação com o cenário internacional. Antonio Gidi argumenta que: “em nenhum país do mundo a instituição galgou semelhante posição de poder na tutela dos direitos privados805”. Há em diversos casos de demandas coletivas em que os sujeitos participantes são o Estado através do Ministério Público acionando o Estado, que pode ser a União, Estados ou Municípios, e sendo julgados pelo Estado (magistratura) 806, envolvendo interesses coletivos que afetam a sociedade em geral.

O Ministério Público é parte integrante de “um esquema complexo de tutela jurisdicional dos direitos de grupo807”, no qual, ele é um dos legitimados para a propositura das demandas coletivas, ao lado de outras instituições públicas e das associações. Para Antonio Gidi, o Ministério Público não é o mais importante protagonista no processo civil coletivo e não há uma “supralegitimação”808

exercida por ele.

Apesar disso, ao assumir a defesa dos direitos supraindividuais pelo Parquet, a sociedade organizada tem permanecido com fraca participação, pois há uma instituição que faz esse papel, resultando no fato de que a maioria das ações são propostas pelo ente público. Antonio Gidi destaca que, na década de 80 do século passado, havia a ideia de que a sociedade por ter um caráter individualista em oposição ao associativismo necessitava de um

803 DOREA, Flávia Hellmeister Clito Fornaciari. Representatividade adequada nos processos coletivos. 2010.

189 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, P. 167.

804

Antonio Gidi afirma que: “O MP nunca foi tão atuante e eficiente em toda a sua história”. GIDI, Antônio.

Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro:

GZ, 2008, p. 412.

805

GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no

Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2008, p. 414.

806 Idem.

807 Ibidem, p. 418. 808

Antonio Gidi utiliza o termo “supralegitimado” para criticar a ideia de que o MP seria o ente mais relevante para o processo coletivo. GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das

representante até que estivesse apta satisfatoriamente a ser autora das ações coletivas, em especial por intermédio das ONGs. Ocorre que, com o decorrer dos anos, a partir da Lei n. 7.347/85, salvo exceções, as associações se limitaram a representar ao MP e cobrar sua atuação. Como consequência, Antonio Gidi apresenta que: “o fato de o Ministério Público assumir exclusivamente a iniciativa das demandas coletivas enseja uma má interpretação da sociedade civil, que cobra, às vezes, a atuação da instituição em casos de interesses reconhecidamente disponíveis809”.

Sobre esse ponto, pode-se afirmar que existem direitos coletivos que o Ministério Público não tutela, como a hipótese em que a atuação do ente público não seria razoável ou proporcional e em razão da função institucional que lhes foi atribuída quando se tratar de número diminuto de consumidores lesados810. Pela falta de atuação das associações, esses direitos coletivos não tuteláveis pelo Ministério Público podem restar prejudicados, afetando, deste modo, o seu acesso à Justiça.

A doutrina brasileira tece outras críticas à atuação quase exclusiva do Ministério Público nas demandas coletivas. Márcio Flávio Mafra Leal afirma que apesar de ser independente, o MP sofre limitações orçamentárias do setor público. Além disso, os seus membros estão socialmente ligados a uma faixa de consumo bem definida (classe média) que restringiria o conceito de interesse difuso e coletivo para a mesma classe, não obstante o promotor seja sensível e tenha consciência de outras realidades. O autor estende essa crítica como válida para as associações811. Antonio Gidi812 aprofunda a reflexão e afirma que por pertencer a uma classe social mais alta e formada por pessoas de cor branca, de nível educacional superior e que moram em bairros mais abastados, os promotores não seriam corpo representativo dos anseios da sociedade que o MP declara ser813.

Quanto às críticas apresentadas, não é possível aferir sem uma pesquisa empírica que relacione o perfil socioeconômico dos integrantes do MP com um possível prejuízo da

809

Idem.

810 RAGAZZI, José Luiz. Código de defesa do consumidor comentado. São Paulo: Verbatim, 2010, p. 303. 811 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Aspectos gerais: anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos –

aspectos políticos, econômicos e jurídicos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de

processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 70.

812 GIDI, Antônio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no

Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2008, p. 410.

813

Antonio Gidi afirma que: “Infelizmente, a experiência parece apontar para uma triste constatação: alguns membros do MP preferem ‘vestir a camisa’ da Instituição do que a da sociedade e estão mais interessados em preservar o seu status de ‘protetor plenipotenciário dos direitos da sociedade’ do que promover uma legislação que proporcione a sua adequada tutela, ainda que dela ele, MP, não deva ser o protagonista” GIDI, Antônio.

Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro:

atuação dos mesmos na tutela coletiva. Ademais, não há como confirmar que as associações atualmente existentes são majoritariamente da classe média ou alta e que isso restringiria o conceito de direitos difusos. É necessário um estudo futuro mais aprofundado sobre o tema.

Em continuidade, há que entender qual seria a relação do Ministério Público Estadual e as associações, em especial na comarca de Salvador. Na data de 14 de dezembro de 2016, foi feita uma visita ao Ministério Público do Estado, localizado no bairro de Nazaré em Salvador, com o objetivo de colher informações sobre: (i) possíveis ações civis públicas em litisconsórcio ativo com as associações e quantas ações civis públicas foram propostas pelo

Parquet a partir de representações das entidades privadas; e (ii) as possíveis ações civis

públicas, inquéritos civis e demais procedimentos administrativos sobre a atuação de consumidores.

No primeiro caso, buscou-se esclarecer se há atuação conjunta do Ministério com as associações ou se restringiria a denúncias de abusividades contra os direitos coletivos para os promotores. Segundo a servidora Denise Carmen Ribeiro Conceição da Secretaria das Promotorias de Justiça do Consumidor, há poucas ações propostas em litisconsórcio com associações e não era possível precisar quantos inquéritos e ações coletivas foram realizadas a partir de representações de associações, pois no cadastro do sistema interno ministerial essa informação não é registrada. Portanto, esse ponto restou prejudicado.

Quanto ao segundo caso, buscou-se esclarecer se há práticas abusivas por parte das associações de defesa do consumidor, ou seja, se há entidades que atuam em má fé em prejuízos aos cidadãos, e pessoas que aproveitam o associativismo de maneira a cumprir com os interesses exclusivamente privados dos fundadores. Segundo a servidora Denise Carmen Ribeiro Conceição, existem vinte e dois procedimentos investigativos em curso pelo Ministério Público para averiguar as práticas de empréstimos irregulares, má qualidade no atendimento ao público, oferta de seguros sem autorização da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e outras práticas abusivas.

Na mesma Secretaria das Promotorias de Justiça do Consumidor, estão registrados quatros processos foram propostos contra as associações por práticas irregulares. O processo em curso de n. 0519478-60.2016.8.05.0001, por exemplo, foi proposto em 2016, pela 5ª Promotoria das Relações de Consumo para execução de um termo de ajustamento de conduta firmado pela citada promotoria e a Associação Beneficente para os servidores públicos (ABESP). Foi acordado a não solicitação de que os consumidores se inscrevessem no quadro associativo com o objetivo exclusivo de obtenção de crédito pessoal, a aquisição de bens de

consumo ou seguro, implicando em venda casada. A promotora Joseane Suzart Lopes da Silva argumenta que a instituição continuou com a prática abusiva pela existência de vinte e um processos individuais no Juizado Cível da capital e três reclamações registradas junto ao PROCON sob o mesmo tema.

Outro exemplo é a Ação Civil Pública n. 054214892.2016.8.05.0001 proposta pela 5ª Promotoria das Relações de Consumo em face da Associação Brasileira de Apoio aos Aposentados Pensionistas e Servidores Públicos (ASBP). O processo em curso na 4ª Vara de Relações de Consumo foi proposto a partir de uma representação apresentada por um consumidor aposentado que, supostamente, recebeu cartas com promessas de benefícios previdenciários em troca de pagamento de um valor para associar-se e posteriormente o coagindo a pagar a mensalidade sem a sua anuência. Além disso, foram identificados mais de noventa processos em juizados especiais cíveis e mais de cento e sessenta reclamações no site “ReclameAqui”.

Verifica-se que são situações, às quais em que pessoas utilizam como estratégia a criação de associações com a finalidade de ludibriar os consumidores para agirem conforme seus interesses financeiros. Ao contrário de defender os seus direitos coletivos, fornecem informações errôneas para que, a partir do ingresso do consumidor como associado, aceitem a contratação de serviços não solicitados configurando-se em uma verdadeira relação de consumo entre o associado e a associação. A situação torna-se mais grave quando se trata de idosos que são pessoas a priori mais vulneráveis a esses tipos de práticas ilícitas.

Questiona-se, então, se há fiscalização das associações por parte do Ministério Público. Na instituição pública, existe o Núcleo do Terceiro Setor (NUTS). Esse departamento foi criado pelo Ato normativo n. 182/2008 e tem por finalidade desenvolver planos e estratégias de ação para a fiscalização do Terceiro Setor; coletar, organizar e manter atualizados dados e informações sobre o Terceiro Setor. Segundo esse Ato, entende-se por Terceiro Setor o conjunto de pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos como as fundações e associações que desenvolvem atividades de interesse coletivo. Compete ao promotor coordenador a promoção da integração e avaliação das atividades relacionadas à fiscalização das fundações.

O NUTS foi criado a partir da Promotoria de Justiça de Fundações regulamentado pelo Ato normativo n. 03/2005 e o Núcleo executa as atividades estabelecidas por este. Nesse sentido, o citado Ato normativo prevê uma série de deveres do MP para o acompanhamento das fundações, desde a sua constituição, seu funcionamento e extinção. Não há referência

sobre a fiscalização das associações, e, na prática, se restringe à emissão de atestado de funcionamento das mesmas. Em visita ao NUTS, no dia 15 de dezembro de 2016, os servidores do apoio administrativo informaram que a relação do setor com as associações se delimita em declaração de funcionamento das entidades associativas a partir de pedidos dos próprios associados para fins de possíveis reconhecimentos de utilidade pública das instituições. O MP não fiscaliza as associações pelo entendimento de que constitucionalmente o cidadão tem o direito de se associar livremente sem depender de autorização estadual para o seu funcionamento (artigo 5º, XIX, Constituição Federal).

As associações que tem por finalidade estatutária a proteção dos direitos do consumidor desenvolvem atividades de interesse social e muitas delas atuam em prol de direitos envolvendo idosos, crianças e deficientes. Por essa linha de raciocínio, o MP deixa de observar se elas estão agindo licitamente e com representatividade adequada, especialmente quando atuam nos processos coletivos. Os procedimentos investigatórios e processos coletivos contra as entidades que agem de má fé são propostos por alguns promotores conscientes da importância social das associações na tutela dos direitos supraindividuais.

A falta de fiscalização do poder público, em especial pelo Ministério Público, pode favorecer o aparecimento de associações que na prática são escritórios de advocacia “travestidos”, que oferecem serviços advocatícios e utilizam o associativismo como fachada para captação antiética de clientela. A existência desses tipos de práticas por advogados pode desestimular a procura de consumidores para a defesa de seus direitos transindividuais por meio das ações coletivas brasileiras.

5.4. A EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO BAIANA DE DEFESA DO CONSUMIDOR –