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CAPÍTULO 5: Os processos constituintes da emancipação e a relação com o

5.2. A relação entre a efetividade das políticas públicas e o ativismo judicial

Em sua participação nas audiências públicas, em 04 de março de 2010, em torno do julgamento da ADPF n. 186 junto ao STF, Kabengele Munanga inicia suas ponderações afirmando o seguinte:

Bem, eu ingressei no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo em 1975. Fui o primeiro negro a concluir o Doutorado em Antropologia Social nessa Universidade em 1977. Por mera coincidência, esse primeiro negro era oriundo do continente africano, e não do próprio Brasil. Três anos depois, ingressei na carreira docente na mesma instituição, no atual Departamento de Antropologia, onde fui o primeiro e o único negro professor desde a sua fundação. Daqui a três anos, estarei compulsoriamente me aposentando, sem ainda vislumbrar a possibilidade do segundo docente negro nesse departamento (BRASIL, 2012, p.107).

Tratando-se de um discurso em um ambiente onde se discutia a constitucionalidade das políticas de cotas nas universidades públicas, o professor Munanga vai ainda mais longe afirmando que:

o que se busca pela política de cotas para negros e indígenas não é para ter direito às migalhas, mas sim para ter acesso ao topo em todos os setores de responsabilidade e de comando na vida nacional onde esses dois segmentos não são devidamente representados como manda uma verdadeira democracia (BRASIL, 2012, p. 108).

Em termos práticos, vislumbra-se nesse universo a ideia de um ambiente democrático e pleno de direitos para todos, no entanto, como demonstrado na 66 O contexto político em que se inseriram essas mudanças, portanto, foram as transformações paradigmáticas que os países latinos viveram no plano da organização dos movimentos sociais e da ascensão ao poder de partidos representantes de segmentos historicamente excluídos e oprimidos, como os indígenas, os agricultores e a classe trabalhadora (BRANDÃO, 2015, p. 75).

realidade de um espaço acadêmico da maior universidade do país, demonstra-se totalmente contrário e hostil aos dados oficiais que colocam o negro totalmente fora do campo das representações sociais em ambientes dos mais altos cargos, seja acadêmico ou administrativo, da esfera pública e privada.

O julgamento das ADPF n. 186 (BRASIL, 2012) (cotas em universidades), ADC 41 (reserva de 20% das vagas em concursos públicos), ADI 3330 e ADI 3214 (programa universidade para todos), pelo STF, configurou um marco dentro do aparato constitucional brasileiro nos últimos vinte anos, visto que a Corte Constitucional viu-se na obrigação de responder questões antes restritas ao campo legislativo ou mesmo dentro das próprias universidades e outros órgãos do Estado.

De posse de vários argumentos, o STF de forma unânime decidiu a favor da manutenção das políticas de ação afirmativa questionadas nas ações, sempre constando em suas posições finais a defesa da diversidade e dos direitos fundamentais.

Na Colômbia, da mesma forma que no Brasil, a ação direta do movimento negro associado às políticas antirracistas promovidas pelos governos também se tornou elemento de questionamento junto à CCC. Diversas respostas foram sendo dadas à sociedade, e alguns posicionamentos diretos da Corte Constitucional buscaram organizar e efetivar o que determinava a constituição.

Diferentemente do Brasil, a Colômbia não tem uma lei específica que regulamenta as políticas de ação afirmativa para a população negra, a exemplo da lei 12990/2014 (de reserva de vagas em concurso) e a lei 12711/2012(conhecida como lei de cotas, que destina 50% das vagas para alunos da rede pública em universidades e institutos federais). De forma paralela e mais ampla no contexto dos direitos fundamentais da população negra, a Lei n. 70 (COLÔMBIA, 1993) foi primordial para a construção do debate em termos de políticas públicas na manutenção dos direitos territoriais e culturais, não em um padrão de justiça reparativa67 (SANTOS, M., 2016), padrão esse característico das políticas públicas aplicadas no Brasil.

No contexto colombiano, embora não haja uma divisão clara do que concentra essas políticas de ação afirmativa, a forma estatal institucional de aplicação dessas políticas baseia-se na associação, conforme Marcio Santos (2016), de duas

67 “Segundo Lao-Montes, a justiça reparativa é um híbrido de demandas de redistribuição e reconhecimento, inspirada na teoria social de autores como Nancy Fraser e Axel Honneth” (SANTOS, M., 2016, p. 144).

dimensões de uma mesma demanda de política pública, ou seja, as ações afirmativas são sempre acompanhadas de políticas de afro-reparação. Isto mostra-se no exemplo do documento CONPES 3310, de 200468, que diz “O Estado promoverá as condições para que a igualdade seja real e efetiva e adotará medidas a favor dos grupos discriminados ou marginalizados”.

Em linhas gerais, da mesma forma que no Brasil, a participação do movimento negro colombiano em ações pós constituições foi primordial para a efetividade de determinadas políticas públicas. Bruno Santos (2014) estabelece que as demandas, para serem mais efetivas, devem partir de estratégias que envolvem o direito à diferença, cultura, território e autonomia, ou seja, a relação entre a efetividade da política pública que submerge a população afro-colombiana destaca-se, a priori, na ideia da tradição, hábitos e formas de vida, isto é, esses elementos estariam no centro do cuidado do Estado para com essa população, em muitos casos aproximando-se dos mesmos direitos dos povos indígenas.

De todo modo, à medida que o Estado se organiza e se orienta também por tratados e resoluções dos quais são signatários, a Corte Constitucional tranquiliza- se em reafirmar em termos de aplicação o que rege a Constituição de 1991. Tal fato se comprova pela enorme quantidade de ações coletivas que chegaram à CCC a fim de buscar conquistar a garantia dos DESCs.

Esse protagonismo judicial da garantia dos direitos fundamentais pelas Cortes Constitucionais, tanto no Brasil como na Colômbia, associa-se diretamente à ideia de centralidade da justiça e da judicialização da política.

Em linhas gerais, o conceito de judicialização da política, conforme Eisenberg (2003), está ligado ao aumento da participação do judiciário (ativismo judicial) em decisões entendidas como prerrogativas do legislativo, mas que, dentro de um sistema democrático que exige respostas rápidas a determinadas demandas sociais, acabam por ser judicializadas. Desse modo, nosso objetivo neste trabalho não é fazer uma grande apresentação do conceito de judicialização da política, apenas mostrar a relação entre o protagonismo judicial com a implementação de determinadas políticas públicas.

68 Esse documento, embora importante segundo Rodrigues (2014), foi alvo de grande questionamento pois não se tratava completamente de uma política pública, e sim de medidas localizadas para um segmento da população, não tinha uma função de lei.

Yepes (2008), ao estudar a judicialização da política na Colômbia, aponta que nas últimas décadas diversos temas de grande notoriedade foram objetos de decisões judiciais, muitos desses relativos à corrupção política, políticas públicas, proteção de grupos minoritários e da autonomia individual e questões econômicas. Segundo o autor, o fator ação de tutela (acesso ao aparato judicial) e a compreensão de que o poder judiciário expressaria melhor em termos de respostas dos problemas da realidade social, quando comparado com outros poderes (legislativo e executivo), corrobora para o fortalecimento de uma justiça que buscaria manter os elementos essenciais para consolidação da democracia e de garantia dos direitos.

Como já discutido aqui neste trabalho, até mesmo nas análises dos casos junto à Corte Constitucional, o fato de a Colômbia ter uma legislação democrática abrangente em termos de direitos e aceitação da diversidade, da mesma forma que a Lei n. 70 e de todas as mudanças institucionais que o país passou ao longo desses últimos trinta anos da Constituição de 91, não foi suficiente para vermos uma efetividade das políticas públicas de ação afirmativa para todos, mesmo respeitando as diferenças regionais. Assim, isso vai na direção de uma ampliação da judicialização, pois as necessidades são diárias e constantes e a mobilidade do legislativo e executivo são moldadas por interesses particulares. segundo Yepes (2008, p. 66):

uma judicialização da política, em especial aquela ligada à luta pelos direitos, pode também funcionar, por paradoxal que pareça, como um mecanismo de mobilização social e política, na medida em que permite dar poder a certos grupos sociais e facilitar-lhes sua ação social e política, como conseguiram fazer os devedores hipotecários graças a certas decisões judiciais.

No Brasil, a discussão sobre a efetividade das políticas públicas relativas às decisões judiciais estão inseridas no contexto do constitucionalismo democrático que se consolida a partir dos anos 90. Esse debate sobre o protagonismo do poder judiciário frente aos outros poderes será objeto de diversos estudos no campo da judicialização da política, e um dos apontamentos que caracterizam esse movimento é a incorporação à nova Constituição de uma linguagem dos direitos ao debate político e ao ordenamento jurídico brasileiro (CITTADINO, 2013).

Essa linguagem dos direitos funcionaria como parte do processo de interpretação constitucional, em um ambiente de uma cidadania ativa, alicerçada

sobre as bases do Estado de Direito e da democracia. Ou seja: “os cidadãos veem a si próprios não apenas como os destinatários, mas também como os autores do seu direito, eles se reconhecem como membros” (CITTADINO, 2013, p. 38).

Sendo autores desse direito, os sujeitos em um ambiente de liberdade buscam construir a chamada “comunidade de intérpretes”, de Peter Haberle (1997), que designa o direito dos cidadãos em construir uma interpretação do texto constitucional, ou seja, uma ampliação à participação deles no processo jurídico.

Cittadino (2013, p. 39) explica:

o que importa ressaltar, portanto, é que se o vínculo entre ativismo judicial e cidadania ativa não pode considerar o direito como um entrave ao processo democrático, isto não significa que o processo de ‘judicialização da política’ não tenha espaço em uma sociedade que valoriza a associação entre direito legítimo e democracia. Em outras palavras, o processo de ‘judicialização da política’ pode ser desvinculado das concepções valorativas de uma comunidade ética para referir-se ao processo por meio do qual uma comunidade de intérpretes, pela via de um amplo processo hermenêutico, procura dar densidade e corporificação aos princípios abstratamente configurados na Constituição.

É nesse ambiente, segundo Cittadino (2013), que optamos por configurar o nosso modelo de judicialização da política, afastando os resquícios do autoritarismo e fortalecendo o Estado de Direito. Nesse ponto emerge a relação para se ter os efeitos necessários à transformação exigida pela Constituição Brasileira, uma cidadania ativa e a atuação dos tribunais constitucionais.

5.3. Os direitos emancipatórios no STF: os casos ADPF n. 186 (BRASIL, 2012) e