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CAPÍTULO I – A ÁFRICA E A COOPERAÇÃO EDUCACIONAL

2. Cooperação internacional e educacional com África

2.2. As relações com África no Sul-Global

Diversos momentos marcaram o surgimento do Sul-Global. O primeiro e mais reconhecido deles é a Conferência de Bandung, que mesmo contando com países não independentes como Gana, acentuou sua diferença frente ao colonialismo e ao neocolonialismo. A Conferência em 1986, Zimbabwe, foi o primeiro passo para a formação do Movimento dos Países não Alinhados12, que surgiu em Belgrado e definiu a posição de muitos países ao contexto bipolar da Guerra-Fria, na tentativa de construção de uma outra referência geográfica. Outro importante movimento criado foi o Grupo dos 77, com uma orientação estratégica para a economia, o comércio, os recursos naturais e com uma clara liderança do então presidente da Tanzania, Julius Nyerere. (Garcia, 2011).

A formação política dos povos do Sul estava intimamente ligada aos processos de libertação nacionais. A realização em Havana, da Conferência Tricontinental no ano 1966, significou a referência do conceito sul como “armas nas mãos” para a libertação da

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O Movimento dos Países não Alinhados surgiu na antiga Iugoslávia em 1961, e contava inicialmente com 25 países, que se opunham a obrigação de escolher aliar-se a um dos lados da bipolaridade entre União Soviética e Estados Unidos. Atualmente o Movimento possui mais de cem países dispostos a aprofundar suas soberanias nacionais e consolidar uma nova ordem econômica internacional (Garcia, 2011).

dominação do imperialismo. Além desta intenção, a Conferência Tricontinental tinha outros objetivos políticos claros, tais como a soberania dos povos, a luta contra o regime do apartheid da África do Sul, e a luta contra o desarmamento e busca pela paz mundial. Desta Conferência participou ativamente o líder guineense Amílcar Cabral (Garcia, 2011:237).

Na década de 1970, os países do Sul formalmente apresentaram a Nova Ordem Econômica Internacional, resultado de uma reflexão por parte do Grupo dos 77. Desde a Conferência de Bandung (1955) até a criação da Nova Ordem Econômica internacional (1973), o conceito de Povos do Sul foi se concretizando até a criação, na década de 1980, da Comissão Sul. Para África, a década de oitenta foi um desastre social devido à aplicação dos Planos de Ajuste Estruturais, que levou ao aumento da pobreza e a privatização dos serviços públicos (Tello, 2011:78; Falola, 2003:85; Kabunda, 2011:11; Kabunda e Santamaria, 2009:156). Neste momento o mundo já havia sido dominado pelo sistema unipolar, nas mãos dos republicanos norte-americanos que se impuseram a qualquer tentativa da criação de um sistema multipolar, com fortes ferramentas econômicas no trabalho globalizador do FMI e do Banco Mundial.

Esta conjuntura internacional apresentou algumas importantes mudanças quando a Comissão Sul, criada na Cúpula dos Países não Alinhados reuniu importantes personalidades dos países do Sul - como o brasileiro Celso Furtado - tendo sido integrada não apenas por intelectuais, mas por representantes de filosofias tradicionais africanas e asiáticas. A cúpula reconheceu que os “países do Sul não se conhecem, apesar das semelhanças dos problemas. Não sabem suas ideias, suas potencialidades e suas limitações, assim que desconhecem as possíveis vias de cooperação para um desenvolvimento comum”. (D´Stefano, 1992: 149 apud García, 2011:241)

Após nove encontros, grupos de trabalho e uma série de recomendações, a Comissão Sul deixou uma mensagem final, centrando sua atenção em que o desenvolvimento deve estar focado nos povos, ser autossuficiente e igualitário. Isso inclui estruturas e instituições democráticas apropriadas à cultura e história de cada país. A declaração da Comissão Sul ainda indica que o desenvolvimento está relacionado à participação popular, a democracia e ao respeito aos direitos humanos (Garcia, 2011:243).

Todos estes eventos históricos marcaram as relações entre países que passaram por processos de colonização e opressão e que pertencem, na grande maioria, ao hemisfério sul. E embora o conceito Sul global permaneça difuso e incite diversos questionamentos, pode ajudar a qualificar o termo Cooperação Sul-Sul para além da geografia e da geopolítica mundial.

García (2011) centraliza suas questões na tentativa de conceitualizar o Sul e de compreender qual é a relação que existe entre os países do Sul (Garcia, 2011:232). Além disso existem, segundo o autor, alguns países que tem vocação para o Sul. O Sul, para os que vivem nesta “abstração terrenal”, pode ter uma definição geográfica, em contraposição do Norte. No Norte vive uma porção apoderada do planeta, que ocupou parte dele em distintas fases históricas. O Sul nunca foi colonizador como foi o Norte. E “tem as maiores reservas de água do planeta e o conjunto global dos recursos naturais” (Garcia, 2011:233).

Além de sua definição geográfica, o Sul pode ser definido considerando suas especificidades sociais e culturais. O sentido da vida neste hemisfério, segundo Garcia, “é mais coletiva, mais convivencial, e cheio de uma diversidade cultural, idiomática e espiritual, que sobrevive mesmo com a pressão das religiões ocidentais” (Garcia, 2011: 233).

O Sul não é um conceito concluso, mas sim uma tentativa de nomear o resultado de um processo de libertação colonial e de um sistema opressor, e que tenta, no contexto da globalização, definir sua identidade cultural, política e social em pleno processo de construção. O conceito sul é uma contínua resposta ao conceito Norte (Garcia, 2011: 234).

Boaventura de Sousa Santos busca desvincular o conceito Sul de seu caráter geográfico. Para o autor, o Sul é concebido “metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo” (Santos e Meneses, 2010:19). Este campo está relacionado com a produção do saber, que por sua vez foi corrompida pela relação opressora histórica entre o Norte e o Sul, como apontam diversos autores (Mudimbe, 1988; Tello, 2011; Kabunda, 2011; Alberdi e Alcaldi, 2006).

Os saberes dos povos do Sul, dentre eles os produzidos por africanos na África, foram relegados a um patamar inferior que, sobretudo ocasionou uma “perda ontológica: saberes inferiores próprios de seres inferiores” (Santos e Meneses, 2010:17). A epistemologia dominante do Norte definiu os centros de produção de saber, em especial as universidades, como um local onde a exclusividade do conhecimento válido estava com a ciência, o que a tornou ainda mais distante de outros saberes (Santos e Meneses, 2010). Esta dimensão institucional da produção de saber deu à ciência capacidade de selecionar aquilo que era digno de atenção, e o que seria inferior e por isso ignorável.

O ignorado, na maioria das vezes, era a produção oral do saber. Ao não haver o registro escrito do conhecimento o saber, em especial o africano, foi sistematizado por estudiosos ocidentais. Hoje em dia, no entanto, existem diversos pesquisadores, grupos e

centros de produção de conhecimento nos países africanos, os quais produzem ciência por africanos e para a realidade africana. Mas, para Paulin Hountondji (2010),

“Apesar de todo o progresso, contudo, ainda estamos longe de atingir o que consideramos ser o nosso objetivo final: um processo autônomo e auto-confiante de produção de conhecimento e de capitalização que nos permita responder às nossas próprias questões e ir ao encontro das necessidades tanto intelectuais como materiais das sociedades africanas” (Hountondji, 2010:140)

As relações do Ocidente com África foram marcadas pela imposição de superioridade também no que se refere ao conhecimento e às epistemologias do Norte. As novas relações com África no século XXI devem, portanto, construir uma outra maneira de interação onde o conhecimento produzido e a visão de mundo não sejam trazidos de fora. Isso significa que a relação com o Sul não é a priori uma relação horizontal. Ela significa uma nova oportunidade, que implica na compreensão do contexto na qual se insere, e corre o risco de se perder na ingênua crença de uma relação “natural” entre sociedades do Sul Global. Visto dessa forma, o Sul é conceito que incita a diversidade. Não a diversidade multiculural que:

“pressupõe a existência de uma cultura dominante que aceita, tolera e ou reconhece a existência de outras culturas no espaço cultural onde domina, mas a interculturalidade, que pressupõe o reconhecimento recíproco e a disponibilidade para o enriquecimento mutuo entre varias cultuas que partilham um dado espaço cultural” (Santos e Meneses, 2010:16)

O Sul não é definido por estar no hemisfério sul. México e Mongólia estão no hemisfério norte, por exemplo, mas são considerados do Sul-Global. O conceito Ocidente sempre foi mais utilizado para justificar as orientações políticas dos países do que o conceito Sul. Comumente, as noções de Nnorte e Ssul são equiparadas a rico e pobre, desenvolvido e subdesenvolvido, primeiro e terceiro mundo. Mas estas generalizações podem simplificar demais as relações entre os países e entre as sociedades destes, em função de suas localizações geográficas (Chisholme e Steiner-Khamsi, 2009:3)

A desigualdade e diversidade entre os países do Norte e do Sul, e dentro destes países, sugere que existe um Sul dentro de todo Norte e um Norte dentro de todo Sul. Neste contexto, uma renovada Cooperação Sul-Sul emerge. Esta aparente nova forma de cooperação é antiga, se considerarmos as estratégias de união entre os países do Sul para aumentar o poder de negociação diante dos países do Norte Global. É nesta perspectiva que o Brasil, interessado em consolidar-se como parceiro estratégico da África do século

XXI, avança em programas técnicos e educacionais de cooperação, em uma nova fase das relações no atlântico Sul.