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Relações intra e intergeracionais

No documento Infância: imagens e memórias de adultos (páginas 113-117)

Conforme apresentado no capítulo teórico a geração é uma importante categoria proposta pela sociologia da infância para as pesquisas a respeito da infância e das crianças. Neste subitem serão tratados os dados que remetem a diferentes características geracionais, enquanto categoria social, sejam elas relações intra ou intergeracionais.

Relações intrageracionais: grupos de pares

As memórias coletadas apresentam algumas regularidades sobre as relações intrageracionais, em especial nos grupos de pares. Alguns fatores determinantes para sua formação, composição etária e de gênero ao mesmo tempo aproximam as narrativas e as diferenciam.

Um dos fatores para a formação dos grupos de pares é a vizinhança, o que fica explícito no relato de Suzana “nós éramos acho que em doze crianças, entre meus

irmãos e os irmãos de mais dois outros vizinhos”, assim como no de Alice “Sempre com os vizinhos, ou os irmãos, mas é mais as vizinhas [...] Era mais ou menos umas cinco meninas, aí tinha meu irmão, que era menino e mais dois meninos que eram

irmãos das vizinhas”, ou de Débora “A gente é amiga até hoje. A gente tem nossos

filhos tudo da mesma idade, então a gente está sempre junto. [São] do lado da casa da

minha mãe. [...] Era a Mari do lado, a Luciana do outro lado e a Sandra na frente”. A vizinhança também foi fator determinante na formação dos grupos de pares de Renata, que brincava com suas irmãs, primos, tios e outros vizinhos, bem como Felipe e Érica, cujos grupos eram formados pelas crianças da rua onde moravam. Fernanda relata

que seus amigos eram seus vizinhos em São Paulo e aqueles que moravam em seu prédio e nas redondezas em Santos.

Outro fator de composição dos grupos de pares é a amizade proveniente da escola, conforme relatam Vanessa “Tinha um grupo, não era o grupo mais famoso na

escola, porque tem o grupo mais famoso, mas a gente tinha um grupinho sim. Era divertido, tinha confusão, uma inveja da outra, essas coisas de sempre, mas era legal o

grupo. Era somente em quatro meninas, e tinha um rapaz que ficava com a gente” e Gabriel “Meus amigos eram tudo longe, tudo em volta [...]. Era mais o pessoal da

escola, que eles moravam em volta, mas na rua de casa mesmo eu não conheço muita

gente. Era mais uma coisa mais longe”. Para Vanessa e Gabriel, o grupo era basicamente de colegas da escola, mas mesmo para aqueles que tinham um grupo de pares composto por crianças da rua, na escola igualmente tinham um grupo de amigos mais constante, como relatam Alice, Felipe e Débora. Os dois primeiros muitas vezes encontravam com eles fora deste ambiente, Débora, por sua vez afirma que não.

Uma segunda regularidade dos grupos é sua composição etária que pode apresentar faixa etária mais ampla ou mais próxima, fazendo com que se diferenciem. Gabriel e Vanessa relatam a proximidade com seus amigos de classe, um grupo com idades parecidas. Sobre seus amigos, Renata comenta que “eram da minha idade. Eram um ou dois anos mais velhos ou mais novos, ou da mesma idade”, da mesma forma o fazem Débora, Alice e Érica.

No depoimento de Érica, apesar de ter um grupo com faixa etária mais próxima existiam “algumas crianças menores, eu fazia mais parte da turma das menores,

inclusive às vezes alguém falava: ‘ah, ela é café com leite’, eu ficava brava porque café com leite é quando você não pode participar muito da brincadeira porque você é muito pequeno ainda, mas era dois, três anos mais velhas que eu as crianças”.

Suzana e Felipe destacam a grande amplitude de idades em seus grupos. De acordo com Suzana “nós tínhamos uma faixa etária bastante ampla. Eu era a segunda

mais nova, o mais velho tinha pelo menos dez anos a mais, mas nós sempre brincávamos, meninos e meninas, era brincadeira tanto de meninos quanto de meninas. [...] A gente fazia essas competições [de pipa] entre nós não importando a idade, então pra gente era uma competição, não importava a idade, nem se era sexo feminino ou masculino”.

Felipe comenta que as crianças com quem brincava eram “de várias idades. Se

eu tinha uns sete, nove anos, alguns já tinham doze, treze anos. Eram mais velhos mesmo. Olhe lá se não tinha um com quinze [anos] lá. [...] Aliás, quem decidia invadir, brincar, as brincadeiras eram esses mais velhos. Quando os mais velhos não estavam,

às vezes eu comecei a liderar, quando eu fiquei o mais velho”.

Em alguns destes depoimentos a idade é fator de diferenciação, no caso Felipe os mais velhos é que decidiam pelo grupo e no caso de Érica, em um movimento inverso, os mais novos eram tratados como menos competentes em algumas brincadeiras, em ambos os casos revelando particularidades de seus grupos de pares.

Em algumas das entrevistas destacam-se as diferenciações entre os pares a partir do gênero, na fala de Felipe “as meninas a gente sempre brincava pouco. [...] Era difícil, mas a gente brincava também de queimada com as meninas” ou Alice “porque

tinha uma época que a gente não se misturava com os meninos. Então eram só as

meninas”. Da mesma forma Érica e Débora contam que em algumas brincadeiras (principalmente as de boneca e casinha) o grupo se separava brincando somente as meninas nestas ocasiões.

Outro dado a respeito das diferenciações a partir do gênero é encontrado nas falas de Débora “eu gostava de soltar pipa com os meus irmãos, eu era mais moleque do que eles. Fiz carrinho de rolimã. [...] Tudo o que moleque faz” ou de Alice “eu era

moleca, eu era um moleque, literalmente, então não tinha essas coisas de estar me

produzindo, imagina! Eu era a sujeira em pessoa”. Renata, por sua vez, afirma “eu

gostava de brincar na rua, com meninos, de bola, não gostava de boneca. Porque meninas, mulheres agora, lembra mais de casinha, essas coisas, e eu não era de brincar muito. Eu brincava mais na rua”.

Estas diferenciações podem indicar que estão intimamente ligadas à construção de uma determinada imagem de gênero, principalmente na diferenciação entre meninos e meninas e suas respectivas brincadeiras.

O conjunto dos dados indica que foi conferido maior peso às relações intrageracionais, rememoradas a partir das brincadeiras, das relações de amizade, das atividades frequentes que faziam e dos espaços a que tinham acesso.

Relações intergeracionais

Alguns trechos das memórias de infância trazem informações bastante individuais, principalmente se consideradas dentro do contexto familiar, entretanto, tais singularidades podem indicar particularidades das relações intergeracionais que são comuns à categoria infância. Um exemplo está presente na fala de Felipe “às vezes

lembro um pouco do meu pai também, sempre bravo [...] e as surras, às vezes, que tomava devido às brincadeiras com os irmãos. Tenho mais dois irmãos, eu sou o mais novo, tenho uma irmã mais velha e um irmão mais velho ainda; esse apanhava muito.

Então já ficava com medo”. Apesar de ser uma situação singular que não surge em

outros relatos, as surras são uma demonstração do poder “natural” de adultos sobre

crianças, o que indica que as crianças fazerem parte de um grupo minoritário em relação à idade adulta.

A perspectiva da infância enquanto grupo minoritário está também presente em outros aspectos das vidas rememoradas nas relações adultos-crianças, como quando Fernanda fala de sua mãe “minha mãe foi muito castradora [...]. Ela é ditadora, ela

manda, ela não pede”.

Pode-se incluir nas relações intergeracionais os relatos referentes às mudanças de cidade de Fernanda e Gabriel que em ambos os casos tal mudança é decorrente do trabalho do pai, pois a infância está sujeita aos mesmos eventos (sociais, econômicos, etc) que a idade adulta (QVORTRUP, 1993) e uma mudança na vida dos pais acarreta em mudanças nas vidas das crianças.

Com relação à autoridade adulta o relato de Felipe sobre as brincadeiras que faziam nas casas das duas senhoras, quando mesmo elas não sendo munidas do controle e poder parental, o papel das crianças era o de obedecer. De acordo com Rose (1989

apud JENKS, 2005, p. 60) “a infância é o setor da existência pessoal mais intensificamente governado”9, e a principal razão disso é posição desigual nas relações de poder, ou seja, a infância enquanto um grupo minoritário (JENKS, 2005). Apesar de episódios específicos e bastante individuais, são nestas narrativas desveladas relações

9 “childhood is the most intensively governed sector of personal existence”. ROSE, N. Governing the

intergeracionais permeadas por relações de poder e diferenciação entre as categorias infância e idade adulta, a respeito desta diferença aponta Qvortrup (1994, p. 3):

Há por trás da difundida argumentação que crianças são e devem ser tratadas diferentemente dos adultos uma ideia que pode ser confirmada, que crianças e adultos são ontologicamente diferentes? [...] Questionar o princípio das diferenças ontológicas entre adultos e crianças é um desafio ao alicerce ideológico do direito “natural” dos adultos exercerem poder sobre as crianças.10

Isto é, os relatos aqui apresentados são exemplos da naturalização tanto das diferenças entre adultos e crianças como do poder destes sobre os primeiros, e, fazem parte da construção social da infância e das relações estabelecidas por seus atores com os atores das outras categorias geracionais11.

No documento Infância: imagens e memórias de adultos (páginas 113-117)