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4. Produção, mobilização e aquisição do conhecimento no processo de trabalho

4.1. Relações com o saber e relações de saber

Toda relação com o saber, enquanto relação de um sujeito com seu mundo, é relação com o mundo e apropriação deste. São muitas, no entanto, as maneiras de apropriar-se do mundo, como, por exemplo, aprender a história de seu país, por que um objeto cai ao ser arremessado ao ar, atar os cordões do sapato, abotoar as roupas, cumprimentar um amigo, entre muitas outras. A relação com o saber comporta também uma dimensão de identidade. Aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, à sua compreensão de vida, às relações com os outros, à imagem que tem de si e a que quer dar de si aos outros (CHARLOT, 2000).

Assim, não há saber senão para um sujeito, elaborado de acordo com relações internas e fruto de uma “confrontação interpessoal”. Portanto, em toda análise da produção do saber deve-se levar em conta a presença de um sujeito, em relação com outros sujeitos, presa da dinâmica do desejo, falante, atuante, construindo-se em uma história, articulada com a de uma família, de uma sociedade, da própria espécie humana e “engajado” em um mundo no qual ocupa uma posição e no qual se inscreve em relações sociais (CHARLOT, 2000). Uma das conseqüências desse raciocínio é o de que o saber não advém apenas do espaço escolar, caracterizado como um espaço de trabalho com o saber formalizado, mas também de outros espaços, como o profissional, familiar, social, cultural.

Tendo em vista a amplitude que envolve o ato de aprender, Charlot(2000) levanta a necessidade de reintroduzir na discussão outras dimensões do sujeito. Para o autor, qualquer tentativa de definir o saber faz surgir um sujeito que mantém com o mundo uma relação mais ampla.

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Do ponto de vista do aprender, o autor explica que existe uma outra relação, a relação

de saber ou uma relação social fundada na diferença de saber, por exemplo, entre o

engenheiro e o operário, entre o médico e seu paciente, entre o professor e seu aluno. Nesses exemplos, cada um ocupa na sociedade uma posição, que é também uma posição do ponto de vista do aprender e do saber, nesse sentido denominada relação de saber. Portanto, a relação de saber é também uma relação de poder, heterônoma.

Por outro lado, o saber é também uma relação, um produto e um resultado, da relação do sujeito com seu mundo, um resultado dessa interação, uma relação com o saber. Portanto, o saber constrói-se também em uma relação com o mundo, que é a relação do sujeito consigo mesmo, com os outros, com a linguagem, com o tempo. Esse saber está relacionado às formas de viver e vivenciar o mundo, como, por exemplo, saber atravessar uma rua, saber pedir licença ou pedir desculpas. Nesse sentido, nos exemplos citados acima, o engenheiro, o operário, o médico, o paciente, o professor, o aluno, todos, independentemente da sua posição social, mantêm uma relação com o saber.

Para Santos (2000b), a relação com o saber chama a atenção para a dimensão da subjetividade do sujeito. Está articulada a uma determinada maneira de se apresentar, a uma determinada maneira de relacionar com o mundo e com o outro, que passa pela dimensão social, mas, também, pela dimensão do singular, do pessoal, da subjetividade. Eu atribuo

valor àquilo que me interessa e quando alguma coisa me interessa e só quando ela me interessa eu me aproprio daquilo (Idem, 2000b p.68).

Charlotdá um destaque especial à questão da singularidade do indivíduo, pensando-o em sua dimensão positiva, o que também pressupõe uma opção epistemológica.

Do ponto de vista epistêmico, aprender pode ser apropriar-se de um objeto virtual (o saber), encarnado em objetos empíricos (por exemplo, os livros), abrigado em locais (a escola), possuído por pessoas que percorreram o caminho (os docentes). (...) Aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, mas cuja existência é depositada em objetos, locais, pessoas (...) Aprender é passar da não-

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posse à posse, da identificação de um saber virtual a sua apropriação real (...) Existem outras relações epistêmicas com o saber (as quais são antes relações epistêmicas com o aprender). Aprender pode ser também dominar uma atividade, ou capacitar-se a utilizar um objeto de forma pertinente (CHARLOT, 2000-68).

Assim, o indivíduo singular é construído dentro de uma história em uma relação com

o mundo, que é relação do sujeito consigo mesmo, com os outros, com a linguagem, com o tempo. Essa singularidade não é inteligível se não tomamos como referência o mundo no qual

ela se constitui (CHARLOT, 2000; SANTOS, 2000a).

Mas esta singularidade se constrói dentro de uma lógica específica, a da construção da individualidade, da personalidade, da identidade pessoal, a relação com saber, comporta uma

dimensão de identidade que não pode ser reduzida a uma interiorização das condições sociais.

Portanto, a relação com o saber do indivíduo só se torna compreensível se a interpretarmos tendo como referência as situações em que vive esse indivíduo, as relações sociais e os processos intrapsíquicos que operam na construção de um sujeito como singular (CHARLOT, 2000; SANTOS, 2000a).

Com relação à singularidade e ao processo de trabalho, Santos (2000b) coloca que, à medida que o trabalhador recupera subsídios de sua trajetória pessoal característicos de seus interesses, desejos e vontades, articulando-os com sua concepção de vida, ele está exprimindo alguma coisa que é singular, que é da ordem da subjetividade. Essa singularidade se dá na relação com o outro. Portanto, faz parte de um coletivo de subjetividades.

A importância de trazer tais discussões para esse trabalho de pesquisa reside no fato de que:

Trabalhar, é satisfazer uma exigência – produzir – mas, estreitamente ligada ao fato de criar, de aprender, de desenvolver, de dominar, de adquirir um saber. Trabalhar é preencher certas lacunas do saber e, desse modo, as suas próprias. Quer dizer, se desenvolver, se informar, se formar, se transformar, se experimentar e experimentar sua inteligência (SANTOS, 2000a p. 129).

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Assim, o trabalho não é só produção de mercadorias e de mais-valia, é também criação de si, do mundo e de diversas relações sociais.

A relação com o saber se constrói em relações sociais de saber, em especial no trabalho, marcado pela lógica das relações capitalistas. Portanto, o sujeito, o trabalhador que produz saber, manifesta uma certa relação com o saber e com o trabalho que tem a ver com sua própria história, seus interesses e projetos (CHARLOT, 2000; SANTOS, 2000b) e também com as relações de produção, caracterizadas pela exploração do seu trabalho, nas quais as relações de poder se apresentam, também, como relações interindividuais desiguais e permeadas por relações de saber. A produção, a mobilização e a aquisição do conhecimento no trabalho domiciliar, foco desta pesquisa, só podem ser analisadas tendo em vista estas dimensões, tanto do ponto de vista da relação de saber como da relação com o saber.

Outro ponto que deve ser levado em conta está relacionado ao conhecimento tácito, que abordaremos a seguir.