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CAPÍTULO III. TESSITURAS ENTRE MODA E COMPORTAMENTO FEMININO

3.1.2. Relatos através da percepção das consumidoras sobre consumo

Não lembro quando não quis comprar. O gostoso de fazer compras é justamente isso, você vê gente, conversa, escolhe coisa para casa [...] antes a mulher tinha mais responsabilidade, se assim posso dizer, cuidado com as coisas de casa. Tinha que ter um bonito aparelho de jantar, um lustre na sala, sofá confortável para receber visitas. Além de estar impecável para depois as senhoras lá fora não ficarem falando. Uma comida bem quentinha caseira, também deve ser feita na compra antecipada de produtos frescos do mercado. Tá vendo,

371Francisca Souza, costureira, 78 anos, entrevista concedida dia 15 de junho de 2017. 372Francisca Souza, costureira, 78 anos, entrevista concedida dia 15 de junho de 2017. 373Francisca Souza, costureira, 78 anos, entrevista concedida dia 15 de junho de 2017.

como é bom comprar? Ah, é por isso que na etiqueta social, as visitas tinham que ser marcadas antes para essa preparação, não é como hoje que vocês chegam e compram tudo pronto da rua. Foi assim que aprendi.374

Como observado no trecho de Matilde Correia, consumidora de 80 anos, em meados da década de 1950, o gosto de fazer compras já estava no dia a dia da mulher capixaba, seja na indumentária, nos alimentos e nas consultas médicas. O abastecimento de compra dava a ela o poderio e controle da casa e, ainda, reforçava o papel social destinado às mulheres, de prezar pela casa e pelos filhos. O consumo que oferecia às mulheres liberdade, ao mesmo tempo pairava sobre a regulação da condição feminina como consumidora para o lar, para os maridos, para os filhos e nunca para si mesmas, questões essas impostas por elas próprias. Segundo Betina Britto375, a rotina diária era dessa forma,

De primeiro, saia para comprar dessa forma: às vezes meu marido que me pedia algo, ou quando necessitava de algo para eu cozinhar. A casa sempre foi tarefa minha, tudo impecável para receber a família de longe, as visitas. Era importante estar asseada, sem exageros é claro. Uma unha vermelha nem pensar. Ainda mais quando via no cinema que aquela loira [Marylin] não apresentava os mesmos valores.

Em análise ao discurso acima, de Betina Britto, 78 anos, percebe-se as associações do sentido de fazer compras e a função social exercida no contato com a rua. De maneira geral, o consumir moda concentrava-se em artigos que promoviam alguma relevância na imagem delas na sociedade. Contudo, com a inserção de ocupações das mulheres no setor terciário, o consumo atingiu uma outra significação, porém, não excluía as associações anteriores, tal como percebido na fala de Matilde Correia376, de 80 anos,

Eu acordava cedo e meu marido também, consegui um emprego como telefonista perto ali do prédio dos Correios. Descendo a ladeira e as escadarias próximas passava pela Rua das Flores e já estava lá. Se atrasasse um pouco no passo, não conseguiria manter o trabalho. Andava correndo nas ruas assim como os homens no dia a dia. Por isso não adiantava mais usar vestidos que faziam muitas formas no meu corpo. A facilidade de andar com sapatos fechados e confortáveis era o ideal, além disso, a roupa tinha que acompanhar as atividades de casa. Não adiantava se emperiquitar para o trabalho e sujar tudo na cozinha, ainda mais que não ficaria bem ir cheia de brilho [...]

374Matilde Correia, consumidora, 80 anos, entrevista concedida dia 10 de junho de 2017. 375Betina Britto, consumidora, 78 anos, entrevista concedida dia 12 de junho de 2017. 376Matilde Correia, consumidora, 80 anos, entrevista concedida dia 10 de junho de 2017.

Andava correndo porque antes de sair de casa, tinha que preparar o café de todos, arrumar cozinha e assim começar meu dia.

Pela descrição das atividades de Matilde Correia, de 80 anos, observamos a preocupação em compor a indumentária adequando-a à correria do dia a dia como o uso de roupas largas com poucos adornos e com movimento fluido para que pudesse subir e descer com facilidade. Ainda, que adentrasse no espaço público, o trabalho fora do lar era algo secundário, haja vista que a escolha da indumentária também estava relacionada ao dever matinal, posto que as atividades, como fazer o café da manhã tinham que ser cumpridas antes de iniciar a jornada de trabalho. Neste caso, a função do consumo era promover praticidade das atividades e reforçar um apelo cultural.

Houve a legitimação da roupa nos logradouros da cidade. O formato do cabelo, a cor da unha, a expressão da indumentária em si eram formas da identidade e credibilidade feminina dentro do ambiente público. Nesse viés, o sentido de consumo estava como estratégia de enfatizar a personalidade, como nos jogos de poder existentes nas relações de trabalho, como o convívio das mulheres nas praças ou quando desacompanhadas nas ruas. Madalena Marques377, consumidora de 77 anos, detalha como eram definidos os espaços de convívio das mulheres capixabas e corrobora a assertiva,

Mulher não anda sozinha. Mulher não compra sozinha. Certamente nunca fiz isso, mas depois, engraçado, passei a fazer. Ora, conversa fiada. Usava às vezes, as coisas que comprava para orientar as pessoas que eu sim tinha valor, e o que eu falava estava certo, não eram futilidades [...] a personalidade desprevenida do homem era o ideal para quando eu fosse negociar algum preço. Ué, os tempos estavam difíceis economicamente, não dava mais para comprar de olhos fechados, como fazia antigamente com meus pais. O que tinha era contabilizado, gasto [hoje em dia] e gastava o que podia. E comprava porque era necessário. Mas, sabe de uma coisa, eu amava comprar e escolher. Antes, quando era garota, tudo me era escolhido, digo até antes um pouco de casar e recém-casada. Chegava em casa e estava lá um vestido, com o tecido que ele [o marido] escolhia, às vezes nem eu mesma ia na modista, pois ela já tinha as especificações, era só chegar lá, entregar o tecido e pronto, no comércio todo mundo se conhecia. Era assim aqui em Vitória. Gostava de escolher e a mim não era dado a chance de escolha. Agora acabou isso, saio sim, com cautela, mas compro o que gosto. Lá na loja ninguém me conhece mesmo para dizer se estou gastando demais ou

não. Mamãe já dizia, olha essa menina tem um temperamento forte, alertou a ele [o seu marido] não foi?

Como exposto no depoimento acima, de Madalena Marques, de 77 anos, as normas femininas estavam sendo burladas e questionadas na medida que a consumidora não aceitava ficar em casa, e era por meio do consumo a tática utilizada para escapar dos obstáculos impostos pelos papéis sociais. Evidenciava-se o ciclo do consumo social como defendido por Michel de Certeau378 na fabricação constante de significados. Ainda que seja possível delinear, pelo discurso das mulheres consumidoras da classe média alta capixaba, uma alteração de pensamentos, o estopim das mudanças estava na instalação de um novo formato de loja, como a de departamentos. A emancipação da escolha da compra sugeria a ela, uma liberdade até antes limitada às escolhas das questões do que fazer no jantar e de como decorar a casa.