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CAPÍTULO III. TESSITURAS ENTRE MODA E COMPORTAMENTO FEMININO

3.1.3. Relatos através da percepção dos proprietários de lojas sobre consumo

O comércio na cidade de Vitória se concentrava na região central da Ilha. Nos arredores do Porto, inicialmente, vendiam-se artigos de secos e molhados, haviam modestas lojas de aviamentos e aos poucos foram se diversificando nas proximidades das residências de pessoas com maior poder aquisitivo.

Loja de armarinhos, artigos de cama, mesa e banho, sapatos, chapéus e materiais afins, tudo era concentrado nas mãos de famílias capixabas afortunadas como dentre outras, a família Buaiz, família Gomes e família Schmith. Os proprietários eram, em sua maioria, homens que tinham herdado os negócios dos pais e se encarregavam de gerir o financeiro de suas lojas. Contudo, em meados da década de 1950, a geração de mulheres empreendedoras começou a fazer parte da dinâmica de Vitória, com isso, novos espaços de sociabilidade foram definidos para elas. Essas características estavam presentes na fala de Catarina Almeida379, dona de loja, de 92 anos, ao relatar a experiência de entrar no mercado de trabalho,

Trabalhar para mim, foi uma opção. Meu marido trabalhava nos Correios e tínhamos uma renda boa. Porém, com o passar do tempo, o emprego que ele tinha não sustentava mais o local que estávamos,

378CERTEAU, 1996.

ele teve que sair da firma e eu tive que dar um jeito. Sempre fui esperta. Uma moça que aprende vendo e foi isso que eu fiz, juntei com uma amiga sócia e fui para a luta. Construí algo que me dá orgulho até hoje. Tive que negociar para isso, tive que mudar minhas roupas, minha fala, minhas atitudes doces. O mundo de trabalhar é um mundo da mulher também. Você só tem que ter persistência. Comecei mesmo revendendo produtos no porão da minha casa, então de lá deu o nome da loja, era bem limpinho dava para algumas coisas, mas não reclamava. Meu marido me deu forças no negócio, embora eu estivesse à frente de tudo, ele me impulsionou e me fez reagir frente as críticas da família de estar viajando para as feiras. Isso não gosto de ficar comentando muito.

No depoimento acima, de Catarina Almeida, de 96 anos, percebe-se as decisões de sair do sistema no qual a mulher não poderia trabalhar fora do lar. Essas decisões foram exemplificadas nas alterações da roupa, do tom de fala, dos atributos “dóceis” esperados à mulher. Tudo compunha para caracterizar seu novo objetivo de vida, ou seja, se tornar uma empreendedora. O consumir moda para ela, se relacionava às projeções de identidade frente ao trabalho, tal como outras mulheres empreendedoras. Catarina buscava, por meio do consumo, legitimar-se, a fim de transmitir credibilidade nas viagens em feiras e negociações, assim como observada na trajetória profissional de Leonor Carvalho380, de 80 anos,

Quando comecei toda a trajetória, o Porto de Vitória, não exercia [bem] suas atividades, as mercadorias que adentravam na cidade tinham todo um processo burocrático demorando tempo para pegar algo bobo e importado. E o que eu fazia, eu ia lá no Rio de Janeiro, trazia tudo do bom e do melhor, experimentava todas as perucas e vendia aqui no Estado. Sem burocracia nenhuma. Isso era fácil na época, hoje em dia não é mais. Iniciei vendendo peruca, porque meu marido era oficial e depois ele foi despedido, os irmãos dele faziam chacota com o desemprego e você sabe que, para o homem fica chato não ter emprego e não poder sustentar um lar. Meu pai nunca soube disso, e isso foi assim que nos casamos. Tinha que fazer alguma coisa para sustentar a família e dar de comida para as crianças. O sigilo era esse, eu trabalhava e ninguém sabia. A gente recebia uma renda e por muito tempo fiquei assim. Modestamente comecei a vender de casa em casa. Depois abri na garagem da minha casa na Praia do Canto uma extensão de loja onde colocava as mais finas perucas. Era só eu chegar que as pessoas já perguntavam “E a minha peruca?” e eu falava: está ali guardada. Na época da Praia do Canto, os estoques acabavam bem rápido. Eu andava bem arrumada, as pessoas perguntavam para mim o que eu usava, como eu usava. Era importante apresentar-se. Pois, depois elas queriam comprar o que eu indicasse. Dizia: “uso tal creme” e elas iam lá e compravam. Um detalhe é que a alta sociedade só comprava comigo e eu realmente

tinha que fazer jus a elegância, ia ao salão de beleza e fazia o cabelo, pintava as unhas de cores distintas.

Tal como a trajetória de Catarina Almeida, Leonor Carvalho, de 80 anos, precisou sair de casa para trabalhar e sustentar a família. A posição social de provedora da casa, foi cabido a ela, mas deixada como sigilo ao restante da família. Leonor tomou gosto pelo trabalho, e isso se apresentou quando a mesma utilizava da aparência como estratégia de venda. Fazer o cabelo no salão, pintar as unhas, utilizar peças de roupas elegantes, passar creme no rosto eram formas de consumo de Leonor, nas quais atribuía significado aos produtos que ela vendia, pois, as consumidoras viam credibilidade em seus produtos porque ela própria os usava. A associação do elegante e do distinto estava na aparência social que ela teria quando em contato com outras mulheres da alta sociedade, o que interessava a ela. É provável que essa mudança de percepção do consumir moda já seria um desejo anterior, que só pode aflorar após o empreendedorismo e as interações no espaço público.