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CAPÍTULO III. TESSITURAS ENTRE MODA E COMPORTAMENTO FEMININO

3.1.1. Relatos através da percepção das costureiras sobre consumo

Desde a formação da cidade de Vitória, assim como em todo o país, o ofício de costureira foi se mostrando importante para realizar o serviço do “vestir-se” pela sociedade capixaba. No século XX, as costureiras eram primordialmente mulheres migrantes das regiões interioranas do Estado, que vinham à cidade em busca de melhores condições de trabalho e de vida. O mercado de costura era procurado e almejado na cidade de Vitória. Na fala da Ana Nunes363 de 77 anos, observamos o quão difícil era fazer um curso de corte e costura,

Quando vim pra cá [fazendo menção a cidade de Vitória], fazer roupas e viver disso não era uma tarefa fácil e, certamente, teria que aprender mais com técnica para utilizar tecidos variados. Encontrar alguém que desse um curso ou aulas de costura era difícil e caro. Pouca gente dava, lembro-me desse período [final da década de 1950] de uma famosa a tal da Vervloet, conhece a família dela? Muito rica [fazendo menção à família], era uma senhora de idade, que ensinava tudo. Tudo o que eu aprendi de costura foi com ela. Logo após o meu casamento vim pra cá, a vida era difícil e tinha que atender as mulheres da alta classe.

Nota-se, na lembrança de Ana Nunes, a busca por aprendizado na escolha do melhor tecido para confecção e na melhor técnica, sempre para atender os padrões exigidos às mulheres capixabas. A habilidade de costureira e modista aliado ao “bom gosto” em particular, eram requisitos para indicação de clientes.

De certo modo, historicamente, o ofício da costura foi construído no relacionamento entre os que produziam e os que consumiam a arte final, tal como o trabalho dos artistas e artesãos. O conhecimento e as informações necessárias para a produção de determinado artefato eram essenciais para o desenvolvimento do trabalho manual.364 O ofício de costura, assim como a prática artesanal, exigia refinamento entre a mão e o cérebro, sendo necessária uma qualidade intelectual para reprodução da arte de vestir.365 Por esta razão, nas sociedades medievais, como acreditavam ser o homem mais provido intelectualmente, o modelo de costura a ser seguido era de

363Ana Nunes, costureira, 77 anos, entrevista concedida dia 04 de junho de 2017. 364WILSON, 1985.

365Richard Sennet, no seu estudo discorre sobre as mudanças do ofício de costura na Idade Média e

predominância masculina. No desenvolver das manufaturas e do sistema industrial do final do século XVIII, na Europa Ocidental, as nuances da atividade se alteraram por causa do crescimento da demanda e da procura. Houve, assim, a necessidade de mais pessoas aprenderem o ofício da costura. Esse fato teve repercussão entre as mulheres do Brasil colônia que aqui se estabeleciam, e na medida em que havia necessidade de mais pessoas obterem conhecimento do ofício se tornou dever feminino o aprendizado da costura para dentro do lar.

Foto 8: Nilma Daros, no dia do casório.366

Fonte: Acervo pessoal.

Repara-se que, para as costureiras no cenário capixaba, a prática da costura era essencial ao saber feminino. Entretanto, para conseguir clientes era necessário estar à par das tendências, aprender técnicas fio a fio, além do esforço a mais exigido pelas complexidades das peças na época. Tal como dialogado por Ana Nunes367, costureira de 77 anos, e Maria Mendes368, dona de loja de 92 anos, sobre a importância do conhecimento de costura,

Sempre tive o dom de costurar. A pessoa nasce com isso, a mulher também. Algo indiscutível. Minha mãe me dava bonecas e eu fazia as roupas e costuras dos modelos para elas. Minha mãe e meu pai me

366No relato, conta que o pai não tinha condições financeiras para comprar um bonito vestido, por isso,

a escolha do tecido e da costureira foi específica, o vestido foi costurado por Lúcia Voarnet que trabalhava há 17 anos no mercado, utilizou renda e seda pura. Ao fazer o gesto de satisfação, Nilma explicou sobre a beleza que era um vestido de seda e renda do busto aos pés, usado no seu casamento.

367Ana Nunes, costureira, 77 anos, entrevista concedida dia 04 de junho de 2017. 368Maria Mendes, dona de loja, 92 anos, entrevista concedida dia 20 de junho de 2017.

incentivavam dizendo que eu era uma Artista de fazer roupas e, sou. Uma curiosidade engraçada é que tinha roupas de mesmo tecido, short, saia, vestido e tudo. Eu só fiquei famosa mesmo na cidade, depois que fiz um curso em São Paulo e, depois disso, tive oportunidade de participar de um desfile.

Lembro como se fosse hoje, cada mulher que se preze deveria aprender as “boas costuras”. Isso tem até no meu manual Modos e

Modas, fui para o Rio de Janeiro, tinha condições [financeiras], e antes

de montar meu negócio fiz o curso de Belas Artes, aprendi as técnicas na teoria do que seria a roupa, para que aqui em Vitória fosse possível fazer as roupas e tecidos à altura do Rio de Janeiro. Vem cá, você veio saber mais da minha vida do que eu da tua, não é menina.

Também faziam parte do mercado da costura, as filhas de costureiras que moravam em Vitória, as quais aprenderam e seguiram o ofício de costurar das mães. O ofício da costura era passado de geração em geração e a prática de modista era fidelizada pelas mulheres que tinham o hábito de frequentar a mesma costureira por anos, o que ocasionava uma relação de amizade mútua.

A priori, as costureiras da elite capixaba tinham condições econômicas possíveis para financiar seus estudos de corte e costura369. As costureiras mais antigas do perímetro localizavam-se no bairro central da cidade e recebiam suas clientes nas salas de suas casas, ajeitadas justamente para atender as mulheres que vinham acompanhadas com suas filhas ou vizinhas, para a tiragem de medidas. A descrição abaixo, de Francisca Souza370, costureira de 80 anos, sugere as relações de intimidade entre a modista e as clientes da alta sociedade.

Nas salas das costureiras da alta sociedade de Vitória, podíamos ver o mesmo desenho, um cabideiro extenso, uma mesa redonda de vime com algumas peças de alfinetes, ela atendia juntamente com um caderno de anotações das medidas das clientes. Cada qual personalizada, fazia questão de lembrar de todas. A hora era marcada. Se começasse às 8h em ponto, tinha que se aprontar na frente do portão da casa 7h50, caso contrário perderia seu horário e ainda ficaria “manchada” se quisesse marcar novamente. Os horários eram agendados com muita antecedência, a concorrência era demais para as festas da cidade. Vejo mesmo como a minha mãe trabalhava e olha que ela não era uma das mais famosas, mas era muito boa. Normalmente Dona Nair, Dona Ana, perto da Praça Costa Pereira, tinham filas e mais filas de atendimento ao público, o forte eram os vestidos de casamento. Nas roupas corriqueiras era de práxis comprar

369Segundo as entrevistadas, quando muito na rádio ou em algumas revistas, as mulheres capixabas

buscavam o auxílio necessário à confecção de determinada peça.

os tecidos na Libanesa ou na Loja Argentina, tudo recomendado pela sua modista, dizia cor, tamanho, material e levava a ela. Penso, também, que depois que as lojas chegaram com roupas prontas mais bonitinhas, elas pararam um pouco de fazer o sucesso dos anos de ouro. Eu, por exemplo, tinha uma agenda preta que até hoje guardo delas, endereço, apelido de identificação, você quer ver?371

De certo modo, em análise ao depoimento acima, compreende-se que o ofício da costura imprimia significações tanto para as costureiras quanto para as clientes. O sentido de consumo era de liberdade proporcionada pelo estar no espaço público trabalhando, o sentido também era de manter as aparências dos papeis sociais impostos a elas, e de se adornar para se legitimar na vida urbana. No processo de produção da moda, as costureiras passaram a ter o seu próprio local de trabalho, e assim como os salões de beleza, elas atribuíram as representações do costurar, na década de 1950, o que mais tarde as compras de roupas em sua maioria passaram a ser feitas em lojas, porém, o oficio de modista se manteve mesmo depois da inauguração das lojas de departamentos. Observa-se, no discurso de Francisca Souza372, de 78 anos, essas preposições sobre os valores sociais da atividade da costureira na vida social de Vitória.

Para ser modista tinha que também ser confidente. As mais antigas sabiam de todos os sentimentos da senhora que vinha, muitas vezes ali era um refúgio de casa, da imposição ao trabalho ou mesmo do estresse de trabalhar fora de casa. Elas vinham de longe só para isso. E eu com o passar do tempo, compreendi. Depois quando chegaram as lojas, esse ombro consolador da conversa foi para os salões, dava então o silêncio do se sentir bela, mesmo tendo tanta coisa pra falar.373