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2.5 Análise

3.2.4 Religião e responsabilidade social

Mediante a pesquisa com o Vale da Bênção, instituição evangélica fi- lantrópica que desenvolve trabalho de ressocialização ou socialização, uma vez que se trata de crianças de 0 a 18 anos que estão em processo de forma- ção epistemológica. Não se pode negar que os conceitos de missão da igreja brasileira em suas diversas ramificações passaram através de décadas por transformações que cunham em seu escopo a assistência aos necessitados. De uma perspectiva teológica, esse posicionamento perante os necessitados teve muitos adeptos, mas com a abordagem marxista intrínseca em seus dis- cursos, católicos e evangélicos se distanciaram. Este movimento ficou conhe- cido como Teologia da Libertação.

Alderi Matos (2008, p. 1) em seu estudo sobre a ação social cristã co- menta o contexto histórico da Teologia da Libertação:

A partir da década de 1960, a problemática social adquiriu grande visibilidade na América Latina. Num contexto de graves problemas sócio-econômicos em todo o continente, houve o surgimento de inúmeros movimentos de caráter socialista vol- tados para a solução desses problemas pela via política ou mesmo pela força das armas. Numa reação contra esses mo- vimentos, surgiram regimes de direita em quase todos os paí- ses latino-americanos, o que agravou ainda mais essa situa-

ção, pela polarização assim criada. Nesse contexto, os cristãos foram desafiados a se posicionarem. Entre os católicos e em menor grau entre os protestantes, surgiu à conhecida “teologia da libertação”, que teve como um de seus primeiros proponen- tes o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez. No Brasil, o nome mais conhecido foi o do teólogo Leonardo Boff e a expressão mais visível da teologia da libertação foram às comunidades e- clesiais de base.

Por causa da sua análise marxista da problemática social e da sua excessiva politização, a teologia da libertação foi rejeitada pela maior parte dos evangélicos latino-americanos. No entan- to, muitos deles sentiram que não podiam manter-se indiferen- tes às aflitivas realidades do continente. Alguns desses evan- gélicos preocupados com os problemas sócio-econômicos da América Latina reuniram-se na Fraternidade Teológica Latino- Americana, sendo os nomes mais conhecidos os de Samuel Escobar e C. René Padilla, e no Brasil o de Valdir Steuernagel. Eles têm defendido o que denominam “missão integral”, ou se- ja, um conceito de missão ao mesmo tempo bíblico e evangéli- co, mas sensível às complexas realidades espirituais, políticas, sociais e econômicas da América Latina. Criticando os modelos missionários tradicionais, eles propõem um modelo que implica em levar o evangelho integral ao ser humano integral.

O autor em seus estudos faz uma abordagem do posicionamento da i- greja mediante a nova teologia, e o posicionamento de teólogos latino- americanos que influenciaram evangélicos de todos os países a se reunirem em Lausanne, na Suíça, para reavaliar e definir a missão da igreja. Esta reuni- ão ficou conhecida como Pacto de Lausanne.

Esses teólogos latino-americanos tiveram uma destacada atu- ação no famoso e influente Congresso Internacional de Evan- gelização Mundial, realizado em Lausanne, na Suíça, em 1974. Esse congresso marcou a primeira vez em que os evangélicos de vários continentes reconheceram explicita e enfaticamente as implicações sociais do evangelho e da missão da igreja. Naquele encontro, Samuel Escobar afirmou o seguinte: “Uma espiritualidade sem discipulado nos aspectos diários da vida – sociais econômicos e políticos – é religiosidade e não cristia- nismo… De uma vez por todas, devemos rejeitar a falsa noção de que a preocupação com as implicações sociais do evange- lho e as dimensões sociais do testemunho cristão resultam de uma falsa doutrina ou de uma ausência de convicção evangéli- ca. Ao contrário, é o interesse pela integridade do Evangelho que nos motiva a acentuarmos a sua dimensão social.”

Os participantes do congresso aprovaram um documento co- nhecido como Pacto de Lausanne, que, depois de falar sobre a natureza da evangelização, declara o seguinte sobre a respon- sabilidade social cristã: “Afirmamos que Deus é tanto o Criador como o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar da sua preocupação com a justiça e a reconciliação em toda a

sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, não importa qual seja a sua raça, religião, cor, cultura, classe, sexo ou idade, tem uma dignidade intrínse- ca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não ex- plorada. Também aqui manifestamos o nosso arrependimento, tanto pela nossa negligência quanto por às vezes termos con- siderado a evangelização e a preocupação social como mutu- amente exclusivas. Embora a reconciliação com o ser humano não seja o mesmo que a reconciliação com Deus, nem a ação social seja evangelização, nem a libertação política seja salva- ção, todavia afirmamos que tanto a evangelização como o en- volvimento sócio-político são parte do nosso dever cristão.” Sobre o Pacto de Lausanne, Ariovaldo Ramos (2002, p. 25) comenta: “Mantendo os princípios bíblico-históricos da teologia protestante, estes pensa- dores colocaram na pauta da teologia dita ortodoxa, o clamor dos oprimidos, em busca de um Deus que se importasse e de um Evangelho que promovesse libertação.”

Nesse contexto entende-se que a promoção do bem-estar na institui- ção traz a libertação da possível marginalização de crianças e adolescentes apoiados em um eixo educacional cristão.

No primeiro capítulo dessa pesquisa foram levantados dados históricos dos fundadores da AEBVB, demonstrando uma relação com os pensamentos calvinistas. Uma vez que Jonathan Ferreira e Decio de Azevedo foram pastores missionários ligados à Igreja Presbiteriana do Brasil, entende-se que, de forma natural, apesar de uma dogmática pentecostal, o trabalho desenvolvido no Vale da Bênção na área social trilha o pensamento calvinista.20

João Calvino, conhecido como o Reformador de Genebra, trabalhou sistematicamente o tema social. Nesse sentido, Calvino entendia que a igreja deveria ter em seu escopo o trabalho nas áreas social, política e didática, o que chamava de tríplice ministério.

Na área social, entendia que a igreja teria como função se envolver no cuidado aos pobres, órfãos e viúvas, estendendo seu alcance a todos, sem exceção, ou seja, não somente aos frequentadores dos cultos locais, mas tam-

20 João Calvino nasceu em Noyon-França (1509-1564) foi um teólogo, humanista, reformador

protestante, com influência que continua até hoje. Seus pensamentos e seus ensinos é conhecido como Calvinismo, vale salientar que o próprio João Calvino repudiava esse titulo. Conhecido também como o Reformador de Genebra, Suíça, onde exerceu forte influência no sistema de governo. Citado por Max Weber como o criador do capitalismo em sua obra: A ética protestante e o espírito do capitalismo.

bém aos estrangeiros e refugiados, desempenhando esse trabalho através do diaconato. Quanto à política, seu pensamento era de que a igreja deveria agir em conjunto com o Estado no tocante ao bem-estar de todos os cidadãos. Na área didática deveria a igreja instruir os cidadãos de Genebra a valorizarem o trabalho, o descanso aos domingos, o amor ao próximo, a não prática de juros excessivos e não serem ociosos.

MATOS (2008, p. 1) comenta:

Calvino foi especialmente incisivo nessa área. Seu longo minis- tério em Genebra e suas viagens por diversas partes da Europa o colocaram em contato direto com muitos problemas sociais e econômicos. Durante sua vida, Genebra recebeu um enorme in- fluxo de refugiados religiosos, muitos deles totalmente desprovi- dos de recursos, que se somavam aos muitos necessitados que eram naturais da cidade. Esse reformador escreveu amplamente sobre questões sociais, tanto na sua obra magna, as Institutas, quanto nos seus comentários bíblicos. Esses temas também e- ram abordados freqüentemente nos seus sermões, que muitas vezes adquiriam um tom profético, à medida que ele denunciava as mazelas e desigualdades da sua sociedade. Calvino continu- amente fazia gestões junto aos concílios dirigentes de Genebra clamando pela eliminação de práticas danosas aos pobres como a cobrança de juros extorsivos e a especulação em torno dos preços dos alimentos (comerciantes locais retinham os estoques para forçar a elevação dos preços).

Percebe-se que a prática social no Vale da Bênção está alinhada a princípios calvinistas, em seus três ministérios, social, didático e político, no caso deste último praticados em ações em conjunto com órgãos governamen- tais, através do Conselho Tutelar e do Poder Judiciário. Insere-se também no tratado do Pacto de Lausanne trazendo libertação, conhecimento, amor, frater- nidade, valorização do ser humano. Vale ressaltar o comentário de Matos (2008, p. 1 ). Conclui-se dizendo que a evangelização, ou seja, convidar os in- divíduos, famílias e comunidades à reconciliação e nova vida em Jesus Cristo, certamente é básica e essencial. Todavia, à medida que evangeliza, a igreja também precisa expressar o interesse de Deus por todas as áreas da vida e espelhar a atitude daquele que disse: “Eu vim para que tenham vida, e a te- nham em abundância”.

Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entra- rá, e sairá, e achará pastagens. O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância. Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas.

Diante de dilemas sociais, escândalos políticos e econômicos o papel da igreja perante a sociedade traz uma responsabilidade social de relevância. Pois quando analisamos o texto acima, percebe-se que há mais de 2000 anos de história que relatam a opressão e a carência da humanidade. Mesmo que algumas classes refutem o conceito espiritual bíblico de um único Deus que criou todas as coisas, não podem negar o valor de seus relatos históricos e ensinamentos através do tempo.

Quando se cruzam dados bíblicos com o cotidiano, percebe-se que passado e presente caminham juntos para formar um futuro de justiça social e bem-estar. Nesse contexto, percebe-se que o trabalho da instituição Vale da Bênção protagoniza a porta de entrada que traz salvação aos desabrigados, valoriza a vida para que possam enfrentar o mundo (pastagens), zelando para que não sejam marginalizados, e mediante a sua percepção de mundo, pos- sam descobrir que a igreja está aberta para que possam encontrar paz e segu- rança, interagindo com a divindade, com o sagrado, o transcendente que con- duz a humanidade como o pastor cuida de suas ovelhas. Os dados coletados em entrevistas nessa pesquisa demonstram que os sujeitos tiveram não so- mente conforto material, mas uma educação alinhada com a cosmovisão cristã que abarca valores éticos, morais, valorizando o ser humano e capacitando-o a ser um cidadão consciente.

Em relato, Fabio Araujo, ex-abrigado, declara:

No ano de 2000 fui transferido com alguns amigos para uma unidade do Vale da Bênção em Sorocaba, no Espaço Nova Vi- da. Já com 17 anos, cursando o ensino médio, tive a primeira oportunidade de trabalho com carteira assinada, através da parceria Vale da Bênção e Correios, fazendo o Curso de Pre- paração para o trabalho no Senac. Após o término desse cur- so, iniciei um novo trabalho através da parceria Vale da Bênção e McDonald’s, local onde permaneci por quatro anos. Hoje es- tou com 27 anos e só tenho a agradecer a Deus, a quem tive o privilégio de conhecer através de uma grande família que é o Vale da Bênção. Estou casado com uma linda e maravilhosa esposa, por meio dessa união Deus nos deu dois filhos lindos e perfeitos. Tenho um bom emprego no qual estou há mais de

cinco anos na área do comércio. Só tenho que agradecer de todo coração, em especial a Jesus Cristo, que me protegeu du- rante todos esses anos, e também à família Vale da Bênção, da qual faço parte (AEBVB, 2010, p. 6).

Nesse contexto histórico de superação, são analisados a seguir os re- sultados dessa pesquisa.

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