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3.1. Análise da situação actual

3.1.3. Zonas de preocupação

3.1.3.1. A inculturação, como caminho do Evangelho nas culturas africanas

3.1.3.2.2. A Religião Tradicional Africana

A questão da Religião Tradicional Africana é uma temática complexa. Porém, é assaz pertinente, para se compreender e se dialogar com a religiosidade da alma africana. A problemática das Religiões Tradicionais Africanas (RTA) tem sido objecto de muitas reflexões antropológicas, teológicas e sociológicas. Várias vozes de pensadores têm vindo chamar a atenção da Igreja em África para o diálogo mais aprofundado e permanente, mediante o estudo deste universo, cuja compreensão é fundamental para o anunciador do Evangelho em África.

Já o Sínodo de 1994, tratando delas, tinha encorajado a Igreja em África para o prosseguimento do diálogo com elas, uma vez que a sua influência sobre a vida dos Povos africanos é bastante ampla358. Uma compreensão deste ‘fenómeno’ pode ajudar a encontrar

e determinar os pontos de convergência e também aqueles de divergência, uma identificação que permita um diálogo fecundo e, por conseguinte, transformador e conciliador. O Sínodo de 2009, manifestando a mesma preocupação, recomendou ao

356 Cfr. BENTO XVI, «Discorso ai vescovi dell’IMBISA. La vera reconciliazione» in Il Regno/Documenti 7, vol. I (2009) 208-210.

357 ASSOCIATION DES CONFERENCES EPISCOPALES DE LA REGION DE L’AFRIQUE

CENTRALE (ACERAC), Catéchèse sur la famille, Commission Liturgique de la Xème Assemblée Plénière

de l’ACERAC (Février 2014) 7.

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Episcopado africano duas medidas urgentes: que se estudasse o fenómeno em todas as Universidades e Faculdades Pontifícias africanas e romanas; que se promovesse um diálogo respeitoso, mas profundo com as Religiões Tradicionais Africanas359.

John Middleton, antropólogo do Departamento de Antropologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos da América, no seu estudo sobre as Religiões Tradicionais em África, numa perspectiva estritamente antropológica, defende um estudo totalmente abrangente sobre elas. Defende, sobretudo, uma proposta segundo a qual o estudo das Religiões Tradicionais Africanas, qualquer que seja a área e a perspectiva de abordagem, não se pode restringir somente aos rituais e cultos. Ele tem de englobar um conjunto de aspectos fundamentais da filosofia africana.

Não obstante isso, a compreensão da dimensão funcional da filosofia africana que significa a lógica de uma integração funcional de crenças religiosas, de ritos e instituições de sistemas de pensamento e de acção pode ser caminho para a compreensão da totalidade da religiosidade do homem africano no contexto das suas circunstâncias. Dentro destes sistemas funcionais, encontramos os conceitos fundamentais da filosofia africana, como o conceito de Divindade, o conceito de Força e seus atributos, o conceito de símbolo e sua função.

Muito mais profícuo ainda é o conceito africano de ordem, pois engloba o conceito de organização social e política que, segundo Middleton, ajudam a compreender o comportamento religioso do africano360. Julgamos ser um contributo importante, a proposta de que o estudo sobre a natureza das Religiões Tradicionais Africanas deva ser feito sobre o fundamento de um conhecimento profundo da ordem organizacional das comunidades sociopolíticas africanas, pois muitas destas religiões ou estruturaram um estilo de vida ou foram moldadas com base na experiência vital e na razão histórica do povo.

Léopold Sédar Senghor, antigo presidente do Senegal, num dos debates a que foi convidado para reflectir sobre a cultura e a religião, depois de definir a cultura como «o espírito da civilização ou o conjunto de valores que informam uma civilização» e a religião

359 Cfr. Propositio 13; Jean-Louis TAURAN (Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo

Interreligioso), «O diálogo entre as religiões no continente» in OR 42 (17 de Outubro de 2009) 21: V Congregação geral, Relatio ante disceptationem (7 de Outubro de 2009).

360 Cfr. J. MIDDLETON, «Religiões Tradicionais em África: Uma perspectiva antropológica» in Povos e Culturas 6 (1998) 317-332.

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como «o conjunto de crenças e de ritos que unem o visível ao invisível, o homem a Deus»361, apresentou uma espécie de porta de entrada para o mundo do religioso africano.

Antes de tudo, busca uma compreensão racional da filosofia africana, para depois a fazer coincidir com a definição grega da filosofia. Assim, sublinha que

«tal como demonstrou Alassane Ndaw362, a filosofia africana corresponde inteiramente à

definição que lhe deram os fundadores gregos da disciplina. Ela fundamenta-se nas grandes intuições que ajudaram o homem a descobrir as “primeiras causas e o princípio dos seres”, que lhe permitiram conhecer o mundo e transformá-lo. Tal como a grega, a filosofia africana é um conhecimento ou um saber: um epistemê»363.

Esta concepção filosófica de Sénghor fá-lo chegar, mediante aquela filosofia africana caracterizada pela razão intuitiva, pela razão dialética, pelo pragmatismo racional e pelo humanismo364, a três conceitos fundamentais nas culturas africanas cuja compreensão é um caminho para o entendimento das dinâmicas da Religião em África, principalmente, das Religiões Tradicionais Africanas. Trata-se dos conceitos de Arte, Imortalidade e Força. Este último funciona como um conceito mais dinâmico na concepção religiosa africana sobre o divino365. Neste sentido, Sénghor e Middleton cruzam no pensamento e partilham uma visão comum sobre a contribuição na compreensão da natureza e do dinamismo das Religiões Tradicionais Africanas.

Para John Mbiti366 e Vincent Mulago367, dois nomes imponentes na tradição da

Teologia e da Filosofia Africanas, um caminho seguro na penetração do solo rochoso do real filosófico, teológico, antropológico e cultural das Religiões Tradicionais Africanas é um olhar sobre o africano e sobre a sua cosmovisão. Por isso, elas constituem uma zona de preocupação, porque são um grande desafio à evangelização. Por exemplo, um dos reptos que a Igreja em África enfrenta em relação a este tópico, é o sincretismo religioso, ou

361 L. S. SENGHOR, «Cultura e Religião em África» in Povos e Culturas 6, 301 (301-314). 362 Filósofo senegalês (1921-2013).

363 L. S. SENGHOR, «Cultura e Religião em África» 304.

364 Cfr. L. S. SENGHOR, «Cultura e Religião em África» 305-306.

365 Não se pretende aqui desenvolver estes três conceitos, apesar de serem dignos de reconhecimento

da sua proficuidade para uma compreensão mais aprofundada da problemática das RTA’s.

366 J. S. MBITI, African Religions and Philosophy (London: Heinemann, 1969); J. S. MBITI, Introduction to African Religion (London, Heinemann, 1975).

367 V. MULAGO, La Religion Traditionnelle du Bantu et Leur Vision du Monde (Kinshasa: Presses

Universitaires du Zaïre, 1973); V. MULAGO, «Vital Participation» in: K. A. DICKSON & P. ELLINGWORTH (eds.), Biblical Revelation and African Beliefs (London: Lutterworth, 1969) 137-158.

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como refere a Africae Munus «o problema de ‘dupla pertença’»368. Ou seja, em muitos

casos, ainda não é clara para alguns fiéis, a fronteira entre as RTA’s e a fé cristã. Não obstante isso, um desacompanhamento e não aprofundamento e suficiente exploração, por parte da Igreja em África, dos vários aspectos destas Religiões e das culturas que as integram, como os conceitos acima referidos, e tantos outros, como a noção de Deus, dos antepassados, da morte e da vida além-morte, da bruxaria, da feitiçaria, e a noção do bem e do mal, pode resvalar num difícil e penoso e quiçá infecundo labor no processo programático e efectivo da transformação da sociedade africana mediante o anúncio do Evangelho. São estes factores que urgem uma evangelização em profundidade dos próprios cristãos.