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2 A marcação das fronteiras entre o público e o privado

2.3 As Religiões Públicas e as justificações

Argumentamos até o presente momento que articulação religiões e televisão produz uma questão teórica de fôlego presentes em duas principais abordagens sobre o assunto, a abordagem do mercado e a fenomênica. Essa articulação está intimamente ligada à questão teórica de como se negocia os limites do secular e o lugar da religião no mundo social. Por isso, o nosso foco é refletir a partir dos usos da televisão como dos atores religiosos negociam ou disputam esses limites. Assim, entendemos que os atores religiosos são também parte do processo de construção dos critérios que delimitam o secular e o religioso. É preciso considerar que há diversas maneiras das Religiões Públicas conquistarem a possibilidade de estarem presentes nas arenas públicas. Por isso, precisamos etnografar esses processos, pois entendemos que a cada situação empírica elabora uma gramática – regras - e uma semântica - sentidos. Assim, é impossível definir de antemão qual o elemento simbólico é mais apto à produção de consensos compartilhados a respeito de como as coisas são ou devem ser definidas na vida social.

Então, nesse ponto, precisamos nos perguntar, se os atores formulam discursivamente a sociedade a partir de distintas lógicas em arenas públicas para disputar os sentidos do secular e do religioso, como compreender o que esses atores estão fazendo? Se o meio empregado é a televisão, como recortar as diversas instituições de mídias e grades variadas de programação?

Dentre a diversidade presente nas grades de programação dos canais de televisão, há programas televisivos que procuram mimetizar arenas públicas. Eles possuem como características pautar e ter como tema as polêmicas candentes da sociedade brasileira. Em trabalho anterior (Antonio, Leonardo: 2012), refletimos sobre esses programas que possuem um modelo específico, a forma debate. Eles são objetos privilegiados para analisar como atores religiosos produzem a “sociedade” e suas fronteiras, pois são um arquétipo dos momentos críticos ou “situações” (Boltanski & Thevenot, 1991), nesses momentos de crítica, os atores sociais são impelidos a proferirem “justificações” sobre seus argumentos.

Neles existem uma espécie de “estrutura” com as posições discursivas, ou seja, lugares consagrados de fala nesse contexto televisivo. Percebemos que em todos esses programas estão presentes as seguintes posições: (a) o “âncora”, o responsável pela narrativa das reportagens e pelas mediações das diversas falas, apresentando os personagens do debate e concedendo a palavra; (b) A figura do especialista, um ator que supostamente possui um

conhecimento especializado sobre o assunto debatido. Médicos, nutricionistas, juristas, cientistas políticos são algumas das especialidades que aparecem nos programas E por fim, (c) a posição do sujeito da experiência. É a posição na qual o ator narra sua própria experiência ou de alguém próximo a ele, como familiares e amigos para argumentar no debate. Apesar de serem estruturalmente parecidos os diversos programas televisivos desse formato produzem discurso muito diferentes sobre a realidade social a partir dos “debates”.

Naquele trabalho, também, pudemos perceber que esses programas são uma totalidade. Isto é, apesar de se apresentarem como uma produção de dissenso, no âmbito de suas produções a divergência é apenas aparente e as variabilidade de opiniões acabam formando um conjunto discursivo coerente. (cf. ANTONIO: 2012)

Desde modo, podemos comparar programas televisivos produzidos por agências religiosas com o mesmo formato. O que difere entre si esses programas são seus conteúdos. Isto é, as lógicas argumentativas para expor os seus pontos de vistas. Mas agora precisamos analisar o que produzem discursivamente os atores autores sociais nos contextos televisivos quando entram em arenas públicas.

Ao entrar nelas os atores formulam noções de como o mundo social funciona, estabelecendo hierarquias, divisões. Estas formulações realizadas nos contextos desses programas televisivos nós denominaremos de ordenamento social9. (Cf Boltanski & Thevenot, 1991)

Há determinadas “situações” (Boltanski & Thevenot, 1991), em que os atores sociais são repelidos a explicitar suas justificações morais. Defendemos que os programas de debate são essas “situações” por excelência. Elas, as “situações”, são pautadas por contextos em que há uma incerteza compartilhada, ou seja, um não acordo de como a realidade é estabelecida. Nesse contexto, os atores operam qualificações de entidades, pessoas e objetos. Isto é, os atores sociais produzem discursivamente definições de como é a realidade social. Definem, por exemplo, a dimensão do religioso e a noção de secular. Essas “situações”, esses

9 O termo original do francês é cité do Boltanski (1991). Há uma certa polêmica sobre a tradução desse conceito. Por exemplo, Corrêa, 2002 opta pela tradução do termo Cité por Cidadela, já que, segundo ele, o termo em português designa lugar de onde se pode estabelecer uma defesa. “E também qualquer centro ou reduto que congrega os partidários mais fervorosos de uma causa, de uma doutrina etc.” ou, ainda, como “situação fortemente defensiva, de predomínio e isolamento, sob contínuo ataque”. No entanto, acreditamos que Cidade ou Cidadela podem pode levar o leitor a confusão semântica e, no nosso entender, o conceito não tem somente relação com espaço físico. Os autores do conceito, Boltanski e Thévenot, publicaram um texto de apresentação da sua teoria para os leitores de língua inglesa (The Sociology of Critical Capacity). Nele, a palavra Cité foi traduzida por World e não por City, o que indica que o desejo dos autores é que se privilegie o sentido em detrimento da tradução literal. O mesmo se pode dizer da tradução alemã, cuja opção foi Polis e não Stadt, o equivalente direto da palavra Cidade. Nesta pesquisa, optamos por traduzir por ordenamento social por acharmos que faz mais juízo ao conceito que significa uma arquitetura de justificações, como uma constituição no sentido de ordenamento da sociedade.

momentos privilegiados, poderemos ter acesso ás construções de ordenamentos sociais, pois é um requerimento dos contextos de crítica produzida em embates, querelas, debates, etc.

Nesses momentos eminentemente críticos, ao formular justificações, os atores constroem discursivamente sociedade, produzindo verdadeiros modelos teóricos. A ação se faz sobre o pano de fundo compartilhado, de um mundo vivido em comum. Boltanski & Thevenot (1991) insistem sobre o momento consensual do debate, para disputar e discutir é necessário ao menos estar de acordo em situação sobre os critérios normativos de julgamento que permitam estabelecer a realidade, no caso de contestá-la. No nosso entender, esse programa televisivo do modelo debate produzem esse momento consensual e explicita uma forma específica de ordenamento social. Eles são, portanto, epistemologias do mundo social, pois podem possuir critérios ou lógica de ordenação social distintos.

Nessa perspectiva, eles são mediações simbólicas e axiológicas que permitem construir um ordenamento social como um conjunto bem ordenado de interações vividas entre pessoas em seu ambiente imediato. São como vocabulários típicos e convencionais de motivos normativos socialmente aceitáveis que os atores invocam nos contextos de justificação. Assim, esses modelos societários são vocabulários convencionais e repertórios transituacionais de justificação que os atores utilizam e introduzem em concordância nas situações de disputa.

Eles são “formas de associação” que estruturam as interações em situações de uns contra os outros. Deste modo, exprimem diferentes princípios históricos de justificação, para serem recebidas como “legítimas” – no sentido de socialmente aceito.

Assim, elas são constituições políticas, ou seja, diferentes convenções gerais orientadas para o bem comum, permitindo definir a grandeza relativa das pessoas. Para cada uma delas, apresentaremos três programas produzidos por igrejas, correspondem a diferentes princípios de equivalência ou justiça, enquanto convenções normativas. É nesse sentido que elas são gramaticas do laço político, pois definem repertórios transituacionais que possui regras de diferenciação de pessoas e lugares. A partir dessas formas de associação que estruturam as interações, os atores produzem discursivamente hierarquias e esferas sobre o mundo social. Inclusive refletem sobre os papeis da religião na sociedade.

No nosso entender, as Religiões Públicas, assim como a literatura especializada, também formulam noções de Estado, sociedade, justiça, etc.. Elas produzem de modo discursivo e público modelos teóricos de sociedade para disputar os contornos da sociedade.

Como enxergamos esses programas como uma totalidade, como método de análise trabalharemos eles como um texto que será melhor delineado no próximo capítulo