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3 Em Pauta: a laicidade católica e o protagonismo da igreja na sociedade civil

4.2 Segundo Bloco – das origens da homo afetividade

O ponto central desse bloco é problematizar a origem da homo afetividade a partir da discussão do projeto de lei denominado “cura gay” e responder se ela é natural, social ou espiritual. Logo no início, o âncora Felipe Onho afirma que aindaé desconhecida a origem da homossexualidade e da heterossexualidade, pois, segundo ele, muitas teorias defendem que a orientação sexual surja na fase pré-natal, e outros argumentam que ela é estabelecida depois do nascimento por fatores ambientais ou educacionais. Em seguida é exibida a primeira narrativa pessoal sobre o assunto de Beatriz Calore:

Quando eu era criança, até os oito anos de idade eu tinha um comportamento bem feminino. E eu sofria um pouco de bullying com os meninos que moravam do lado da minha casa porque eu era um pouco diferente deles. [..] quando chegaram os quinze e dezesseis anos. Eu falo, as pessoas acham engraçado porque eu assisti a um anime que era sobre uma escola que tinha um monte de meninas lésbicas. Todas eram lésbicas só que ele era de um teor romântico. E aos poucos eu fui começando a me identificar com as meninas, como eu queria ser como as meninas?

Beatriz Calore: eles falam que todos os gays eles foram estuprados quando eram

crianças, sabe, eu não fui.

Beatriz constrói a narrativa sobre sua experiência com o que seria “masculino” e “feminino”, desde a infância, 8 anos. No entanto, sua consciência sobre a identificação com o feminino veio a partir de um desenho animado japonês que retratava uma escola de lésbicas. O que nos interessa dessa narrativa é o fato de uma experiência pessoal com a descoberta da

19 Nesse episódio o programa confunde, segundo algumas correntes teóricas, identidade de gênero com orientação sexual.

sexualidade estar sendo utilizada para apontar, de uma forma, a “origem” da sexualidade em um plano onde está inserido especialistas sobre o assunto, seja advogado militante, como o presidente da Associação da Parada, ou, religiosos e políticos, como o Marcos Feliciano. Esse procedimento confere um estatuto de legitimidade a essa forma de fala ao conferir autoridade argumentativa às experiências vividas, do mesmo modo a autoridade do especialista, oriunda, principalmente, de estudos acadêmicos.

Na cena seguinte, Felipe Onho introduz pela primeira vez o projeto de lei sobre a “cura gay”, tema central do episódio, que se articula sobre a questão das origens da homo afetividade. Interessante ressaltar que a argumentação dele caminha para afirmar que os defensores do projeto atribuem a causas psicológicas e, portanto, não naturais, para a origem da homo afetividade:

Felipe Ohno: é acreditando que a homossexualidade não é algo natural e que pode

ser sim mudado que o deputado federal da bancada evangélica João Campo (PSDB) apresentou um projeto de lei que permitiria o tratamento psicológico para a reorientação de homossexuais. O PDC 234, apelidado de cura gay, dividiu opiniões e acabou sendo retirado de tramitação por conta da pressão popular.

O episódio apresenta defensores do projeto. Assim como o deputado João Campos, autor do projeto, e o deputado Marcos Feliciano, antagonista do “ativismo gay”, Robson apresentado como pastor e ex-gay, também argumenta a favor da reorientação de homossexuais, só que diversos prismas. E o pastor produz uma longa fala sobre o assunto, utilizando-se como autoridade argumentativa da sua própria vivência:

Robson – pastor ex-gay: assim, a grande verdade é que a homossexualidade é uma

coisa muito plural. Eu acredito que uma pessoa pode ser completamente liberta da homossexualidade tecnicamente, psicologicamente e espiritualmente. [...] O grande problema da homossexualidade é que a homossexualidade é uma coisa criada, o sentimento homossexual é um sentimento apreendido. A pessoa não nasceu homossexual ela se tornou homossexual por algum motivo. [...] Talvez uma criança que foi abusada, estuprada, pode ter entrado na homossexualidade, não porque ela nasceu homossexual [...].

Felipe Ohno: e como aconteceu seu processo de transformação?

Robson – pastor ex-gay: então eu comecei a perceber que eu não estava completo

espiritualmente, sentimentalmente. Eu comecei a ver que alguma coisa estava errada. Alguma coisa estava fora do eixo. Até que deus ele alcançou a minha vida e eu percebi que a palavra de Deus era verdade e que eu tinha que seguir a verdade que era Deus. Entregando a minha vida para Jesus, fui restaurado e liberto da homossexualidade.

Na argumentação do pastor ex-gay a homo afetividade é plural, a pessoa pode ser revertida tecnicamente, psicologicamente e espiritualmente. Mesmo, para nós, que não seja possível compreender o que seria ser liberto “tecnicamente”, o que nos importa na análise que

para esse personagem a homo afetividade também possui uma dimensão espiritual, um dos temas centrais desse episódio, está relacionado na completude do sujeito.

Como trauma psicológico, o homossexual pode ter sido abusado na infância. No caso desse ordenamento social a argumentação caminhará para a origem da homo afetividade como espiritual. Veremos adiante que este argumento é desenvolvido também em outras instituições, mas é no debate espírita que ganhará relevância. Em compensação, o deputado Marcos Feliciano fala na direção da reversão da homossexualidade na chave dos comportamentos:

Marcos Feliciano: o psicólogo não pode receitar remédio. Se não pode receitar

remédio, logo não há cura. Não há cura por que? Porque a homossexualidade não é doença, é comportamento. [...] Se a pessoa é heterossexual, tem tendências homossexuais e procura o psicólogo e diz eu quero sair do armário. O psicólogo pode ajudá-lo. Mas se a pessoa é homossexual e ela tá com uma crise ou uma angústia, ela não quer ser, é um direito da pessoa não querer ser. Se ela chegar para o psicólogo do Brasil eu não quero ser, o que eu faço? O psicólogo do Brasil vai fechar a boca e dizer eu não posso te ajudar nesse caso. [...] a pessoa não nasce, se a pessoa não nasce, se ela é orientada ela pode ser reorientada, existe vários casos disso.

Na fala do pastor a centralidade do projeto de lei está na liberdade profissional do psicólogo para tratar pessoas que queiram deixar de ser homossexual, e ele reforça que, se é uma orientação, a sexualidade pode ser reorientada em outro sentido. Mais uma vez, na edição, Fernando Quaresma é posto retrucando os argumentos do deputado:

Fernando Quaresma – advogado e presidente da Parada: muitos homossexuais

iam buscar o apoio de um psicólogo para fazer o seu alt, o seu trabalho de elevação da auto-estima e evoluir quanto a todo o preconceito que ele sofria. Chega no psicólogo eles sofriam mais ainda o preconceito.

[...] A que, essa lei está amparando? Os preconceituosos, os psicólogos que estão respondendo por atos que infringiram essa norma.

Para o presidente, os tratamentos psicológicos também são fonte para intolerância e seriam esses profissionais os quais não seguem a norma de oferecer tratamento de reversão, que a lei “cura gay” vem amparar. Antes de caminhar o bloco para o seu fim, com o debate dos especialistas em espiritismo, Felipe, o âncora do programa, argumenta sobre a perspectiva trans-histórica e trans-cultural da homossexualidade. Segundo ele, há cerca de dez mil anos algumas tribos da nova guiné já exercitavam ritos com práticas homossexuais. Além disso, na Grécia antiga a homossexualidade chegava em certos casos a ter uma função pedagógica. E o filosofo grego Sócrates, por exemplo, era adepto do amor homossexual e de acordo com alguns especialistas pregava que o coito anal era a melhor forma de inspiração, ou seja, em Atenas o sexo entre homens se dava para que os jovens pudessem absorver as virtudes e os conhecimentos da filosofia dos mais velhos.

Com esses argumentos sobre as práticas sexuais é que o bloco se caminha para as análises dos especialistas espíritas. A fala do psiquiatra João Lourenço é interessante porque ele procura traçar as origens das pessoas que sofrem preconceito na esfera do espiritual:

João Lourenço - Psiquiatra: a maioria dessas pessoas que passam por esse

processo é um processo cármico. Lembrando que carma não é pagar coisas do passado é poder ter experiências que me ajudam a ter o arrependimento, o remorso, e o sincero desejo de reparação em coisas que cometi comigo ou com outros, no caso aí na esfera da sexualidade. [...] então existe o que o Richard Simonete chama de inversão. Inversão sexual que seria a pessoa reencarnado e ela não teve o tempo ou, como foi uma proposta, não ter uma adaptação, um tempo para a adaptação da sua índole emocional, psicológica, de um sexo em um corpo de um outro sexo. Quando ela encarna, nós vamos ver esses ditos homossexuais, como egosintônico, porque você vai pesquisar o ego dele, o âmago de sua alma, ele é de um sexo e o corpo apresenta outro. [...] e existe o que é egodistônico porque a pessoa aprendeu práticas homossexuais, porém ela não tem a inversão vinda como proposta espiritual. [...] tentar tratar uma alma feminina num corpo masculino ou alma masculina em um corpo feminino eu acho que isso transcende, transpassa o quesito médico, o quesito psicológico.

Mais uma vez, e como já foi dito, isso é uma constância no programa, a questão da encarnação para explicar os infortúnios dos indivíduos. O que reproduz categorias classificatórias para explicar a origem da homo afetividade. Em outras palavras, há pessoas que estão encarnadas em um sexo e quando vão reencarnar em outro, não tiveram tempo de se adaptarem a nova condição, e por isso, são LGBTTQ, isto é, essas são egosintônico. Quando as pessoas não têm essa “inversão espiritual”, mas são homo afetivas, são classificadas como egodistônico. Outra a analisar é Marin:

Mercedes Marin – psicóloga e médium: no caso do mundo espiritual não existe

diferença de gênero porque o espírito ele é. A diferença de gênero começa acontecer quando nós encarnamos, isto é, importante deixar claro. Quando nós encarnamos nós encarnamos em uma natureza dual: dia /noite, bem /mal, lua / sol, e o homem e a mulher.

Mercedes Marin – psicóloga e médium: nunca recebi na clínica um homossexual e

chegasse e falasse quero me curar da minha homossexualidade. Tenho vinte e dois anos de clínica. Já recebi sim alguns homossexuais que chegaram e falaram eu tenho dúvidas.

Mercedes Marin – psicóloga e médium: eu diria que esse projeto vem também em

encontro a necessidade de pequenos grupos preconceituosos e que querem aplacar um pouco a angustia de terem que conviver com os homossexuais.

Quando o episódio encarna um espírito para opinar sobre o assunto, ele coloca, também no plano espiritual, um sujeito da experiência que produzirá uma argumentação estruturada na narrativa de suas “vivências”, de encarnações:

Regina Braga – Sam – Médium: eu me descobri um homossexual aos seis anos de

idade, eu já percebia que eu era diferente dos outros meninos. E fui entender direito o que era a coisa quando eu tinha mais ou menos por volta de dezesseis e dezessete anos de idade e foi aí também que eu tomei como coisa natural, que me chamava a atenção eram os meninos e não as meninas. [...] a origem da minha

homossexualidade deve vir de um passado muito, mas muito remoto. Eu fui um guerreiro, um soldado grego, onde a prática do que hoje se chama de homossexualismo era uma coisa natural. E não deixa de ser natural. [...] são as pessoas que lá na, quando apareceu o cristianismo, na idade média é que mudaram esses conceitos. Quando o homem quer ver atendido seus desejos íntimos e os desejos que eu estou falando são os desejos de poder, ele é capaz de tudo. De mudar, de usar o nome de Deus para dizer Deus condena. O inferno está logo ali.

No contexto da fala acima, Sam produz uma relação ontológica com a sua sexualidade, já que a origem dela é espiritual e ele passou por diversas encarnações mantendo a mesma orientação sexual.