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2 CIDADANIA, DIREITOS SOCIAIS E PROTEÇÃO SOCIAL

2.4 RENDA E CIDADANIA

A relação que se estabelece entre renda e cidadania é multifacetada e pode ser compreendida por algumas esferas, da concreta à mais subjetiva e por meio da questão jurídica e constitucional. Para compreender a conexão entre renda e o status de cidadania, é conveniente entender como a condição inversa afeta os indivíduos, isto é, como a pobreza

impacta os laços de integração de uma população. Há uma concepção que entende a pobreza como uma exclusão formal e material de cidadania. A ausência de cidadania formal refere-se à falta de documentação e, portanto, de existência jurídica enquanto membro da sociedade, o que, por sua vez, acaba afetando a participação na vida pública e na reivindicação de direitos. Já a exclusão da cidadania material (ou substantiva, como Bottomore [1992] coloca) diz respeito à dinâmica da subsistência, da renda, do desemprego e de precária situação econômica que incute em carências básicas e prejuízo no acesso a direitos (REGO; PINZANI, 2014).

Há de se considerar, também, as demais privações inferidas aos indivíduos em situação de pobreza que vão além das carências materiais. A pobreza afeta a socialização, a educação, a saúde e, principalmente, a plena participação política e a reivindicação de direitos: “As restrições à experiência da vida regida por direitos e prerrogativas democráticas de expressão e direito de voz na sociedade limitam significativamente sua constituição como sujeitos capacitados politicamente a formular e ampliar demandas cívicas” (REGO; PINZANI, p. 61). Sendo assim, a renda impacta a condição material dos sujeitos, mas tem um potencial maior de influenciar positivamente na integração social e política, além de fornecer meios para atingir autonomia financeira e resultar em mudanças, o dinheiro tem um elemento mobilizador.

Em meio aos termos subjetivos da relação entre renda e cidadania está o sentimento de vergonha que permeia a situação de dependência ou desemprego. Este tem origem em uma construção social e cultural que supervaloriza o trabalho e a produtividade. Há um medo social sobre a dependência econômica. Por outro lado, sujeitos em posições distintas de dependência econômica, como aqueles que recebem grandes bonificações públicas, como pensões e subsídios fiscais, ou aqueles que enriquecem através da renda financeira de um imóvel ou ação, não possuem o mesmo sentimento de humilhação. Já o pobre, por sua vez, recebe sua “caridade” ao mesmo tempo que reproduz a ideia de “coitadismo” que a sociedade tem sobre ele:

As pessoas humilhadas pela sociedade são levadas a pensar que merecem tal humilhação e que sua situação humilhante é a consequência de uma falta por parte delas. Interpretam sua inferioridade econômica e social como inferioridade intelectual ou volitiva e, portanto, aceitam sua condição e a consideram como

resultado de um fracasso pessoal, não de um arranjo socioeconômico determinado (REGO; PINZANI, 2014, p. 56).

Isto é, a vergonha envolve o fator “capacidade”. Ser capaz de manter-se financeiramente com o fruto do próprio trabalho significa ter mérito, valor importante à sustentação do sistema capitalista atual. Ao absorver a cultura meritocrática, o indivíduo pauperizado identifica-se em posição desigual, mas questiona sua habilidade, sua inteligência e seu desempenho enquanto mão de obra. Faltam-lhe substratos, informações e argumentos para questionar a estrutura maior de sua posição social. Assim, o pobre absorve, através das lentes da sociedade do mérito, sua condição inferior. Deste imaginário indigno, crescem a humilhação, a vergonha, bem como problemas de saúde, tais como depressão. Por fim, quando o indivíduo pobre se identifica como incapaz, passa a perceber a transferência monetária como um favor ou dádiva à qual lhe cabe retribuir. Na idealização do mérito, a renda não é concebida enquanto direito e, dessa forma, são reproduzidas inúmeras críticas aos programas de transferência de renda.

Conforme Renault (2008), a percepção das elites sobre a concepção da pobreza distancia-se de uma questão estrutural. O liberalismo tem papel essencial nesta retórica, pois ao tirar do bem-estar o caráter de direito, aqueles que sofrem com a miséria tornam-se mudos e invisíveis perante à sociedade e à oferta de serviços privados (REGO; PINZANI, 2014, p. 51). Dessa forma, o pobre é responsabilizado por sua condição miserável e ainda é incapaz de gerir o pouco de renda que recebe através de um discurso desconstituinte de sua racionalidade. Elementos deste discurso abordam o gasto com bebida, a quantidade de filhos, o caminho do crime e o uso de drogas, etc. Sobre isso os autores acima destacam:

Se os cidadãos não forem capazes de ver as coisas do ponto de vista dos concidadãos. E se afirmarem que certo modelo de vida e os valores correspondentes devem ser adotados por todos como os únicos possíveis, a democracia estaria indo rapidamente rumo a uma tirania ética de determinados grupos, na qual as pessoas que vivem de maneira diferente do modelo em questão são desprezadas e desrespeitadas (REGO; PINZANI, 2014, p.235).

Em sociedades desiguais e apartadas, onde diferença é a regra, os sentimentos de pertencimento, de compartilhamento e solidariedade são fragilizados. Pobres e ricos são se reconhecem enquanto partes iguais de uma mesma nação. A desigualdade, portanto, afeta o vínculo entre direito, respeito e reconhecimento (SOUKI, 2006). Como exemplo, não precisamos refletir demasiado, há inúmeras situações em que a falta de elo social reverbera em desrespeito: a escravidão moderna em fábricas espalhadas pelo mundo, o racismo e o mito da democracia racial no Brasil, etc.

Em resumo, a carência de renda distancia os sujeitos do exercício da cidadania em termos formais, materiais, subjetivos e de socialização. A exclusão formal ocorre no hiato com a existência jurídica do indivíduo perante o Estado, fruto principalmente da desinformação e isolamento que ocasionam a falta de documentação e participação na vida pública, como nas eleições e inclusão em programas sociais. A exclusão formal talvez seja a mais banalizada, mas é o berço do esquecimento da realidade da pobreza. Já a questão material da pobreza é a mais palpável e visível, que fere diretamente as condições de vida do indivíduo. A carência material impacta a nutrição, a saúde, a moradia, o acesso à educação, à informação, à tecnologia, à rede sanitária, dentre outras esferas concretas que influenciam a vida digna.

Além dos níveis de exclusão citados acima e que, por si só, já afetariam a subjetividade do pobre e seu status de cidadania, a dominação cultural da meritocracia amplia a vergonha da falta de renda e da condição de dependência econômica do sujeito pauperizado. Um ambiente meritocrático impõe questionamentos sobre a racionalidade, a inteligência e a capacidade do pobre na gestão de sua vida e suas escolhas, há um profundo e invisível processo de destituição da civilidade do pobre e, portanto, de seus direitos. Nesse sentido, a incapacidade das elites de visualizar o mundo, distinto e distante, que enfrenta diariamente as barreiras impostas pela falta de renda, reitera o apartamento social que a pobreza causa. Em decorrência, a percepção das elites e a difusão de ideias e valores relacionados à pauperização configuram uma retórica perversa que desrespeita os direitos e a cidadania do pobre.

Por fim, conectada à subjetividade, o exercício da cidadania em termos de socialização diz respeito aos desafios que a pobreza impõe à comunicação, à criação de laços de afetividade, à integração social e à protagonização da vida. Em meio à indigência, as vontades, sonhos e pensamentos dos indivíduos são relegados ao segundo ou terceiro plano, tanto por eles mesmos, como pela família, pela comunidade e na interação com o poder público. Infelizmente, a prioridade do sujeito pobre torna-se a renda, seus sonhos e projeção de futuro se resumem, muitas vezes, à sobrevivência. A falta de perspectivas e de estabilidade econômica condiciona a permanência em relacionamentos afetivos e familiares, por vezes, infelizes, abusivos ou violentos e, neste cenário, sabe-se que as mulheres são aquelas que mais sofrem diretamente, bem como seus filhos. Além disso, as dificuldades de comunicar sua condição de vida (seja pela desinformação, abuso, solidão, exclusão) e/ou de se fazer ouvir, também eleva a tendência a traumas psicológicos, à depressão e ao aprofundamento do isolamento social. Pode-se inferir que a pobreza limita o escopo da vida do ser e baliza sua condição econômica, social, psicológica, subjetiva e física. Ademais, as barreiras de

socialização dos indivíduos os impedem de se articular politicamente e reivindicar seus direitos e melhorias na sua realidade comunitária, isto é, impacta na relação do cidadão com o poder público.

Diante de um cenário de inacessibilidade a bens e serviços básicos, carência, dependência, desemprego, incapacitação, humilhação e preconceito, políticas sociais são os principais canais de promoção da autonomia e do pertencimento à comunidade. Cabe entender a respeito disso, que além dos aspectos morais e solidários para com a pauperização, há uma relação normativa do Estado na luta contra a pobreza (REGO; PINZANI, 2014).

Na Constituição Federal brasileira de 1988 são inúmeras as referências: o artigo 1º, inciso III ressalta como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, o artigo 3º fala do objetivo de erradicação da pobreza e desigualdades sociais e o artigo 170º aborda a ação do Estado em assegurar uma vida digna a toda a população, seguindo a justiça social. Ademais, a Constituição brasileira tem um caráter diretivo, isto é, tem a função de projetar transformações para a sociedade. Nesse sentido, inaugurou ampliações nas políticas em prol de direitos e maior equidade social. Tratou-se do resultado de inúmeras batalhas pela formalização e expansão de direitos e deveres de cidadania e, principalmente, da obrigação do Estado para com eles. Dessa forma, por meio da Constituição Federal ficaram estabelecidos a partir de 1988, dentre outros elementos, os canais de exercício da cidadania brasileira (REGO; PINZANI, 2014). Já na Constituição Argentina de 1994, o preâmbulo invoca a promoção da justiça, paz, bem-estar comum, liberdade e prosperidade. Ao congresso é atribuída a promoção da justiça social e emprego, bem como desenvolvimento humano através do Artigo 75. Com relação ao trabalho e seguridade, o Artigo 14 bis assegura a proteção do trabalhador através das leis e garantia o seguro social para o acesso à vida digna. Há, portanto, o compromisso de ambos os Estados, firmado e reforçado ao longo da Carta Magna, sobre a manutenção da dignidade de seu povo.

Rego e Pinzani (2014) destacam que, para ver a efetivação destes direitos escritos em carta, a mobilização coletiva é parte essencial. Os direitos têm uma dimensão subjetiva que necessita da capacidade de agir dos indivíduos. A determinação de direitos na Constituição trata-se, portanto, de uma “obra inacabada”, que demanda reivindicação, transparência e atenção. Além disso, não devemos tomar as obrigações públicas como trajetórias diretas de ampliação de direitos. Conflitos de classe e interesses distintos inevitavelmente exercem um elemento desestabilizador sob projetos transformadores de grande envergadura como uma Constituição, principalmente em meio a guinadas históricas, nas quais as dinâmicas de poder são balançadas e afloram sentimentos corporativistas e elitistas. De uma forma ou outra, os

desafios impostos por interesses conflituosos no período de uma constituinte tendem a reverberar na sua aplicação prática (BOTTOMORE, 1992; FLEURY, 1994; REGO; PINZANI, 2014).

Nesse sentido, voltamos a atenção para o impacto da renda no sentimento de pertencimento e no status de cidadania do indivíduo: ao citar uma passagem de Simmel (1939, p. 61 apud REGO; PINZANI, 2014), os autores chamam atenção para o poder simbólico do dinheiro na modificação do sujeito. Na condição de doação, nenhuma transformação subjetiva ocorre, mas enquanto direito, fruto do reconhecimento como pessoa e cidadã, este transforma “a alma” do indivíduo, sua condição mais abstrata. A transferência de renda se diferencia de outras formas de assistência, como a doação de comida e roupas, por que transfere conjuntamente maior independência, permitindo aos receptores tomar decisões que possibilitem maior autonomia, não só economicamente, mas de outras situações sociais de privação subjetiva, como já pontuado (REGO; PINZANI, 2014).

Existem inúmeras perspectivas sobre a importância e funcionamento da transferência de renda: desde uma visão liberal que valoriza a oportunidade do indivíduo em exercer escolhas, consumir e tornar-se protagonista de sua história; um olhar estadista que observa o compromisso do ente público para com a qualidade de vida da população; bem como, mas não somente, uma perspectiva humanista que compreende a desigualdade enquanto estrutural e seu impacto na dignidade da vida humana. De toda forma, os programas de transferência de renda são adotados como medida de auxílio para a condição de pobreza e miséria extrema. Visando, além da transferência monetária, fornecer um suporte para o desenvolvimento de novos canais de inclusão social por meio de programas de moradia, educação, trabalho, subsídios de tarifas de energia e transporte, etc.

Rego e Pinzani (2014) compreendem que o consumo realizado pelos participantes de do Bolsa Família (foco do estudo dos autores, mas que não impede de ser generalizado para outros programas de transferência de renda) lhes possibilita adentrar novas esferas de relacionamento social, cultural e econômico, que também têm suas contradições e desvantagens, mas que, mesmo assim, abre oportunidades de autonomia. A participação efetiva do Estado na garantia a uma vida digna para sua população contribui para a autonomia política dos indivíduos: “Ao incluir o beneficiário no corpo dos cidadãos, promove nele um sentimento de identificação com a nação, devido ao reconhecimento de sua pessoa por parte das instituições políticas do Estado” (REGO; PINZANI, 2014, p. 83). Nesse sentido, o direcionamento da transferência monetária às mulheres é ainda mais importante, tanto por que o desemprego feminino no mundo é maior, como porque os direitos de cidadania da mulher

foram tardiamente reconhecidos, isso quando ainda não permanecem associados ao casamento (PATEMAN, 2004; REGO; PINZANI, 2014).

A partir da inclusão dos indivíduos como participantes de programas de transferência de renda, o Estado passa a distinguir, como elemento de direito, as demandas sociais e econômicas destes sujeitos. O outro lado dessa dinâmica, segundo Rego e Pinzani (2014), incluiria tanto a cobrança que é feita pelos indivíduos com relação à atuação do Estado, como deste último sobre os deveres dos cidadãos. Acontece um “duplo aprendizado” de cidadania, que para os autores acima, é essencial para diferenciar a transferência monetária de um caráter clientelista, de dádiva, caridade, doação ou favor.

Finalmente, a partir de uma reflexão de Rego e Pinzani (2014) quanto ao termo “beneficiários”, a presente pesquisa buscará adotar um vocabulário alternativo. O termo “beneficiários” remete à ideia de dádiva e doação que, de forma simbólica, afeta a compreensão do significado da transferência de renda e, consequentemente, do direito sobre ela. Como alternativa, serão utilizados “bolsista” e “participantes do programa”, este último inclusive já é usado por alguns documentos do governo federal. O uso da palavra “bolsista” é frequente para demais transferências monetárias como para estudantes e pesquisadores, estes não são chamados de beneficiários. Em se tratando de remuneração e sustento, os indivíduos cobertos pelo Bolsa Família se assemelham às condições de outros bolsistas. Não havendo necessidade de diferenciação entre a formação de cidadãos pela transferência de renda para pesquisa, estudo ou sobrevivência de um núcleo familiar, é relevante pensar a harmonização da nomenclatura. De encontro a esta lógica, o presente estudo tentará minimizar o uso do termo “beneficiário” e substituí-lo, sempre que possível, por “participantes” e “bolsistas”. Cabe reforçar, por outro lado, a capilaridade e o reconhecimento do termo “beneficiários” enquanto referência aos indivíduos que recebem o Bolsa Família e o AUH, dessa forma, se conveio manter esta denominação para o título do trabalho e para as palavras-chaves que guiarão as investigações nos jornais. Contudo, no debate teórico nos é dado a liberdade de usar as demais expressões e assim o faremos desta etapa em diante.

A partir destes apontamentos, entende-se que há um aspecto interessante da transferência monetária que agrega ao status de cidadania dos bolsistas e à sua formação cívica. Além disso, a socialização e o reconhecimento proporcionado pela participação em um programa social do governo afetam a inclusão na comunidade nacional. É a partir destas ideias e percepções sobre as barreiras da pobreza no exercício e sentimento cidadão que o próximo capítulo aprofunda o funcionamento do programa Asignación Universal por Hijo (AUH) e do Bolsa Família (BF).