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Reorganização da vida para conviver com a doença e com o tratamento

3. ANÁLISE DOS RESULTADOS

3.2. A construção das categorias da experiência da aids e a explicitação de representações

3.2.5. Reorganização da vida para conviver com a doença e com o tratamento

Frente a uma relativa aceitação da nova condição de infectado e do tratamento para o HIV, ocorrem mudanças mais gerais nas maneiras de levar a vida. O comportamento nas relações familiares e nas amizades é alvo de importantes transformações, já que muitos homens relatam terem vivido sem dispensar o devido tempo para as relações afetivas. Após a descoberta da infecção, passou a existir uma maior abertura às outras pessoas.

Antes eu era mais esquisito, assim, sabe, eu era mais assim... Eu era sistemático, sabe? Quando estava assim, eu não chegava pra conversar. Agora não, eu faço amizade com todo mundo. Agora eu sou outro. (Walmor)

Eu diminuí o ritmo de trabalho, porque eu achei que, se eu continuasse do jeito que tava, levando a minha vida do jeito que tava, não ia adiantar nada. Algumas coisas na minha parte de lazer eu mudei. Ah, eu agora procuro escutar mais música de boa qualidade, teatros, cinemas... Eu nunca gostei muito de barzinho, de bebida, de beber, então isso pra mim não fez muita diferença. Mas tem diferença uma boa peça de teatro, uma boa comédia, música clássica que eu passei a dar um valor melhor que nunca. É um outro astral, é um outro tipo de coisa. (Pedrosa)

Eu acho que hoje, do diagnóstico pra cá, eu vivo muito melhor. Eu penso que tenho uma outra visão de mundo e uma relação melhor com as pessoas que me cercam, com a clientela no meu trabalho... Acho que vivo muito mais feliz. Eu passei a observar que eu trato melhor o outro hoje. Talvez eu escute melhor o outro. Eu acho que isso deve acontecer com todo mundo que tem uma patologia potencialmente grave, uma coisa assim. Então, é isso aí, com certeza, melhorou. (Pereira)

Ah, mudou muito! Primeiro mudou porque, tipo assim, eu perdi (muito tempo). Acho que eu tenho mais vontade agora de me divertir, de aproveitar com os meus filhos. Quero estar sempre perto deles, conversar com eles. Isso que mudou, porque antes eu não ficava muito ligado neles, ficava mais trabalhando. Agora fico mais perto deles, converso mais com eles, fiquei mais amigo deles. Porque eu não sei o dia de amanhã, né? Aí eu tô mais perto deles pra eles nunca esquecerem de mim, né? (Bernardo) Foi um grande reforço (para mudar) eu saber que sou portador do HIV. Me tornou mais humano, bem mais humano. Hoje eu encaro as pessoas de uma maneira bem diferente. Graças a Deus, isso foi uma coisa boa, me tornou mais fácil de ligar pras pessoas. Eu era muito preocupado comigo mesmo. E aí, então, hoje eu passei a enxergar neles (os filhos) algumas coisas que eu antes não via e acho que eles passaram a enxergar em mim também algumas coisas que antes não eram vistas. (Pedrosa)

Continuo sonhando, continuo rindo, continuo chorando, mas estou rindo mais do que chorando. Os sonhos mudaram um pouquinho, porque, às vezes, o sonho era meu, eu sinto que agora é mais para a família. (Bartolomeu)

A mudança em relação à própria saúde também é relatada pelos entrevistados. Há alteração em várias condutas cotidianas, e isso é visto como melhoria na qualidade de vida. O empenho para essas mudanças é explicado, por alguns, como uma nova chance de vida.

Mudou tudo, né, mudou... Sei lá, eu acho que depois que você (sabe que tem aids), tem mais vontade de viver, sei lá. Você dá mais valor quando você perde (a saúde), né? Esse negócio de saúde alterou muito. (Cleverson)

Assim, eu quero viver, né? Tenho um cuidado maior na alimentação, cuidado de carregar os remédios... Eu tenho que ser um pouco mais, assim, como é que fala... organizado. Coisa que eu não era muito. (Milton)

Mudou, porque eu passei a tomar mais cuidado com a saúde, né? Ter mais amor à vida também. Quando você descobre que você está com uma doença, você preocupa mais com a sua vida. (Waldomiro)

Há, ainda, relatos que afirmam mudanças devido ao acontecimento da doença e do tratamento que não necessariamente são consideradas positivas, mas que foram apontadas como mudanças que implicam mais sofrimento.

Eu acho que o acontecimento da aids na vida da gente faz a gente se centrar bastante, ficar introspectivo, com pouca disposição para as pessoas. É um elemento que me centralizou, me deixou mais voltado pra mim mesmo. Às vezes, assim, eu fico alienado ao ambiente. Introspectivo. Não pensando exatamente sobre a doença, o sofrimento, mas parece que é um pano de fundo pra esse fenômeno introspectivo. (Saulo)

Abala muito a pessoa, mexe muito com a pessoa, né? Mexe demais com a pessoa, principalmente com a auto-estima da pessoa, né? Tem que ter muita força de vontade, muita fé em Deus pra ficar em pé, porque martiriza muito a cabeça da gente. (Jonilson)

Uma exceção ao discurso dominante de mudanças devido ao acontecimento da aids em suas vidas está presente no relato de um entrevistado, que afirma não perceber diferenças entre sua vida antes e após o diagnóstico do HIV, a não ser pelo fato de se ter introduzido os medicamentos diariamente. Esse relato pode indicar a vivência de um momento de negação da doença:

Eu vivo... justamente, eu vivo uma vida normal, né? Como se não tivesse nada. Não durmo pensando no que eu tenho, não levanto pensando no que eu tenho, eu só sei que eu tenho que tomar remédio para acabar com isto, não sinto nada, deito e durmo tranqüilo. (Josivaldo)

Os entrevistados falam mais de mudanças consideradas positivas, todas relacionadas ao investimento maior na vida, com representações ancoradas na idéia da aids como sinônimo de morte. Também no relato do entrevistado, para o qual não houve mudança, está a representação da luta pela vida: ‘eu só sei que eu tenho que tomar remédio para acabar com isto’.

As representações têm o núcleo central de que ‘a aids muda o modo de a gente encarar a vida’, já que se está confrontando mais de perto com morte.

a) Ser infectado muda sua disponibilidade para os outros: ‘a gente fica mais aberto’,

‘Era sistemático. Agora, eu faço amizade com todo mundo. Agora eu sou outro’;

b) ‘Faz aproveitar mais a vida, porque a gente não sabe o dia de amanhã, não é?: ‘Primeiro, foi aprender a mudar o ritmo de trabalho, depois foi aproveitar mais as coisas

do lazer, descobrir e redescobrir as coisas da cultura’, ‘estou mais ligado nos filhos e em aproveitar mais com eles’;

c) ‘Todo mundo que tem uma patologia potencialmente grave deve ser assim, procura melhorar a vida’: ‘vivo mais feliz, relaciono-me melhor com a clientela, trato melhor o

outro, escuto mais’, ‘a gente fica mais organizado para continuar vivo, para fazer bem o tratamento, porque eu quero viver’;

d) ‘A gente fica mais humano, menos egocêntrico, mais ligado nos outros’: ‘eu me liguei mais nos filhos’, ‘continuo sonhando, mas os sonhos passaram a incluir mais a família’;

e) ‘Você dá mais valor quando você perde’: ‘Sei lá, eu acho que depois que você (sabe que tem aids), tem mais vontade de viver. Você dá mais valor quando você perde (a

saúde), né?’, ‘Quando você descobre que você está com uma doença, você preocupa mais com a sua vida’;

f) ‘A gente muda porque tem mais sofrimento’: ‘Às vezes, assim, eu fico alienado ao ambiente. Introspectivo. A doença e o sofrimento são o pano de fundo pra esse fenômeno introspectivo’, ‘Abala muito a pessoa, mexe muito com a pessoa, martiriza muito a cabeça da gente’.

A interpretação das representações encontradas na análise será apresentada no próximo capítulo.