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Repercussões do encarceramento no agente penitenciário

O agente penitenciário tem um ambiente de trabalho nada convencional, atividades normais realizadas por pessoas em sua rotina de trabalho são algo que não pertencem a rotina

do cárcere, os agentes ao começar o turno de trabalho ficam encarcerados, trancafiados e submetidos à restrição de liberdade:

O agente ao ingressar em um presídio, mesmo que por turnos determinados, fica isolado de seu convívio social. O contato com familiares é restrito durante os turnos de trabalho e mesmo telefonemas só podem ser feitos de caráter emergencial e por pouco tempo. Outra faceta dessa privação de liberdade refere-se ao horário de serviço: a hora para ingresso é, e deve ser, rigorosamente cumprida. Contudo, quando acontece algum incidente e o agente tem que permanecer com a escolta de um preso, nem sempre a hora de saída dos turnos é respeitada. (LOURENÇO, 2010, p. 18).

Uma das primeiras considerações a se fazer sobre eles é que não tem orgulho do que fazem e escondem sua condição o quanto podem. Em muitos casos, opera-se o que Goffman (apud MORAES, 2013) chama de separação entre identidade real e identidade virtual. Parte dessa postura poderia ser justificada, segundo Goffman, por uma percepção de que, para a sociedade, eles seriam semelhantes aos detentos e, no limite, piores que estes. Além disso, os agentes não se sentem contemplados ou defendidos pelos discursos e políticas de direitos humanos: para eles, estes continuam sendo “coisa pra bandido” (MORAIS, 2013, p. 134).

Isto porque, a prisão é vista pela sociedade como um espaço de segregação e isolamento daqueles que, supostamente, cometeram ofensas aos valores vigentes. A prisão torna-se, assim, uma instituição habitada por pessoas moralmente reprováveis, de acordo com Moraes (2013), podendo contaminar a todos que ali convivem, sendo que o risco aumenta proporcionalmente ao tempo de permanência em seu interior. Nessas instituições, segundo a afirmação de um agente penitenciário, narrada por Moraes (2013, p. 133),

[...] o mal está no ar. [...] A gente entra aqui até bem e sai como se tivesse um elefante em cima. Isto porque a maldade aqui é muito grande. Não é por causa deste ou daquele preso, deste ou daquele agente. É que nem uma nuvem que fica em cima de todo mundo, que desce na gente, que abafa a gente.

Essa imagem de neblina que desce à prisão em virtude do “peso da maldade” e, à maneira de vapores sufocantes, contagia e abafa mesmo quando se está longe dali é muito singular. Os agentes penitenciários assim designam o mal-estar com sintomas psíquicos (ansiedade, angústia) e físicos (palpitação, tonteira, sudorese etc.) de abafamento (MORAES, 2013).

O ambiente do cárcere, por sua vez, guarda situações que dependem de constante autocontrole, os profissionais que lá estão inseridos são reféns da criminalidade, correndo risco de vida permanente, e além de precisarem garantir a sua segurança, ainda tem a responsabilidade de zelar pela vida de outras pessoas que ali se encontram, tensão essa, que deve ser desempenha mediante muita disciplina e situações imprevisíveis, e ainda sobre a responsabilidade ambígua de “cuidar, tratar, regenerar e reeducar em oposição a punir, castigar, controlar e disciplinar outros seres humanos” (LOURENÇO, 2010, p. 42). Isto leva, segundo Lourenço (2010), a uma relação de exaustão física e psicológica a qual o Agente Penitenciário é submetido diariamente na prisão, provocando mudanças de comportamento, fazendo este se sentir preso, tal alteração manifestada ao comportamento do Agente que passa a ser semelhante ao do apenado, sendo este transtorno reconhecido como a síndrome do emparedamento.

O contato constante com os apenados e o consequente confinamento do Agente Penitenciário, com a soma das tensões psicológicas de manutenção do controle mental e da massa carcerária provoca dentre tantos efeitos a chamada síndrome da prisionização, sendo os agentes muito mais afetados por isso do que os próprios apenados, conforme menciona Moraes (2005, p. 221): “É muito mais fácil mil e quinhentos [presos] se colocar para 30 [número de Agentes Penitenciários em serviço] do que ao contrário. É por isso que o agente começa a falar como preso e vira uma extensão do preso.”

Para darem conta de aguentarem estas pressões e cumprirem suas tarefas, os agentes penitenciários precisam muito rapidamente entender a dinâmica da prisão. Sobretudo aprender, para fins de manutenção da ordem, “a pensar como o preso, trabalhando preso com o preso”, conforme disse um agente penitenciário a Moraes (2013, p. 135). Esta é, de acordo com o autor, uma espécie de “assimilação de comportamento, dentro e fora”, segundo a fala de um agente penitenciário, o que, todavia, é percebido como “bom e ruim”, uma vez que faz parte de seu trabalho e garante sua segurança, “porque tem que tá ali cuidando, olhando, prestando atenção.” (MORAES, 2013, p. 135).

Efeito imediato dessa situação é o estresse contínuo produzido por um tipo de familiarização, que é vivida pelos agentes penitenciários no interior das unidades, que lhes indica a necessidade de se manterem em permanente alerta, desconfiados de literalmente tudo.

“Somos pagos pra desconfiar”, conforme afirmou um agente, informando ainda que tal desconfiança se estendia inclusive aos seus próprios colegas (MORAES, 2013, 136).

Em depoimento a Varella (1999, p. 56), disse um agente: “Com esse salário baixo, alguns se contaminam com o crime e viram pilantras. Só que nunca se sabe quem são. Tem que desconfiar de todos, lamentavelmente”. E isso, afirma um agente penitenciário citado pelo autor, “só vem a sobrecarregar essa nossa carga. Você já tem um monte de problemas e tem que tomar cuidado com o que faz, com o que fala. É uma coisa difícil, mas administrável”. Afinal, segue o depoimento, “Você tem que saber administrar isso aí, porque, se você não for confiar em ninguém, você tá pego; se você for confiar em todo mundo, você tá pego do mesmo jeito. Então, tem que ter um bom senso, tem que chegar a um meio-termo nessa história toda.”

Entre confiança e desconfiança, a relação entre agente e apenado na realidade é muito íntima, pois o agente na atribuição das suas tarefas tem um contato permanente e muito direto, e no meio deste contato existe a confusão ocasionada por esse relacionamento onde o agente se desencontra na sua real função, pois o Agente está incumbido de zelar pela integridade física e moral do apenado, deve respeitar a intimidade do preso e a mesmo tempo revisar todos os seus objetos particulares e trancafiá-lo em uma cela, tal situação rotineira a que os agentes são submetidos lhes provoca além da tensão do risco de vida, o transtorno de não realização pessoal. Segundo Moraes (2005, p. 221-222), sobre este atrito de atribuição e controle psicológico:

[...] a necessidade de vigiar e manter a ordem em uma instituição total com as características das prisões coloca os agentes penitenciários sempre em uma posição ambígua posicionando os indivíduos deste grupo entre dois mundos: o da lei/ordem e o do crime/desordem. Um efeito imediato desta disposição seria um estresse contínuo produzido por um diferente e, por vezes, estranho tipo de familiarização.

Guidani (2002, p. 229), no seu estudo dentro do presídio central de Porto Alegre, efetuou um questionário aplicado aos apenados, sobre a visão que eles tinham em relação aos Agentes Penitenciários e aos Militares, estes, por sua vez, em maioria preferem a militarização do controle dos presídios, pois, segundo eles, os militares, apesar de condutas mais violentas conseguem conter melhor a ordem através de “pulso forte [...] fizeram da cadeia um quartel [...]” (p. 40). Já os Agentes Penitenciários por trabalharem com uma

política não militarizada sofrem consequências psicológicas que afetam o seu trabalho na prisão, conforme relato de um apenado,

[...] são o retrato do despreparo, olha e tem mais! Na minha opinião todos devem ser tratados com psiquiatra, porque todos apresentam problemas mentais e fora os que são bêbados [...] são despreparados moralmente e sem organização para um amanhã melhor. (GUIDANI, 2002, p. 229).

Conforme menciona Moraes (2005), o ambiente austero do cárcere não é uma opção de livre vontade para se trabalhar, os Agentes lá ingressam por dificuldades maiores, e por apresentarem uma situação de vulnerabilidade social, pois se for para planejar carreira, os indivíduos não teriam como meta de vida, trabalhar dentro do ambiente do cárcere. Assim a alternativa de trabalho como Agente Penitenciário é uma sanção imposta pelo próprio indivíduo, na utopia de melhorar de vida, diante das condições de vulnerabilidade que se encontra, sendo este um dos principais motivos de ingresso na atividade profissional, o salário e a estabilidade financeira em busca de realização como pessoa e garantia de sobrevivência. Geralmente estes acabam trabalhando como Agentes Penitenciários sem conhecer a realidade do que é o cárcere, não imaginam as consequências que esta vivência em meio a precariedade e tensão podem acarretar em suas vidas e consequentemente na vida das pessoas que os cercam:

Eu passei de situação de simples cidadão a um agente penitenciário, mas eu acho engraçado é que na época eu não tinha conhecimento do que era a posição ou a importância que tinha. Dai quando eu tomei conhecimento disso eu...por intermédio de um amigo [...] eu falei bom... ta razoável trabalha um dia folga dois, tinha estabilidade também, aquela coisa toda, mas eu não tinha ideia da encrenca que eu estava me metendo (itálicos do autor). Dai prestei concurso, passei... e to aqui até hoje. (MORAES, 2005, p 211-212.)

A constante vigilância, a necessidade de se apreender rapidamente a cultura carcerária e a tensão inerente ao próprio ambiente laboral criam essa tensão no Agente Penitenciário, que dificilmente não irão interferir em outros aspectos de sua vida pessoal, familiar, além de sua saúde física e mental. Segundo depoimentos colhidos por Moraes (2013, p. 142), “A gente acaba levando muita coisa pra família [...]. E isto aumenta o estresse”, informando o seguinte relato de um Agente,

O senhor sabe que [...] eu peguei o meu filho falando que nem vagabundo, é. Daí eu fiquei apavorado e fui pra cima dele: ‘Me conta onde foi que você aprendeu a falar desse jeito!’. Pensei que ele estivesse andando com vagabundo. Ele ficou quieto, depois me disse que não andava em má companhia. Eu fui até investigar e acho que ele me falou a verdade. Daí, eu fiquei pensando: acho que ele aprendeu a falar assim comigo mesmo.

Outro depoimento vai na mesma direção, “A cultura do preso acaba com a gente. A gente começa a falar como preso, daí a pouco, a família também. Família de agente penitenciário conhece todas as palavras, fala igual a preso” (MORAES, 2013, p. 142). E tudo isto vai tornando a convivência familiar muito difícil, “Ao chegar em casa, no ambiente de família, deixar, sair do trabalho não é fácil. A gente acaba levando muita coisa pra família: é gíria, é jeito, é tudo. E isto aumenta o estresse” (MORAES, 2013, 142). Conforme outro agente,

Sabe, eu me surpreendi, pô, gritando com a minha filha, sendo áspero com a minha mulher ou ralhando por causa de bobagem, entendeu? Porque você sai ‘carregado’ da cadeia, o estresse é muito grande! Sai, sabe, saturado! Aí, ‘qualquer pé de galinha dá canja’. Às vezes, a mulher vinha me trazer um problema qualquer, eu falava: ‘Pô, acabei de sair da cadeia! Pô, um monte de pepino pra descascar!’ Começava a me incomodar com aquilo. Ela tava fazendo certo, pedindo opinião prá mim, pedindo prá resolver o problema que era minha obrigação resolver. (MORAES, 2013, p. 142).

Sobre esta relação entre trabalho e família, no caso dos agentes, tudo indica que o fluxo principal é o do trabalho para a família, ou seja, situação de stress e violações vividas dentro do cárcere são levadas para casa, funcionando como importante desestabilizador do equilíbrio familiar. Segundo Moraes (2013), foram recorrentes os depoimentos de agentes penitenciários que relacionaram trabalho e desequilíbrio familiar, isto quando não indicaram o trabalho na prisão como elemento determinante da separação do casal ou mesmo da dissolução da família.

Deste modo, se torna claro que, o Agente Penitenciário, além de sua imagem popular de Carrasco e perpetuador de violações de Direitos Humanos dos apenados, devem ser vistos como vítimas das mazelas do sistema carcerário. Estando dentro deste ambiente terrível, também os seus direitos de dignidade humana são violados, afetando deste modo, todos os aspectos da sua vida e da sua família.

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