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Nesta seção, apresento os repertório interpretativos que fui capaz de identificar nos fragmentos analisados. Estabeleci para eles um nome, descrevi seus principais recursos discursivos e as estratégias retóricas a eles associados.

O primeiro repertório interpretativo identificado é o que chamei de “darwinismo social7” devido às ressonâncias do pensamento do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-

1903) identificáveis neste repertório. Articula todo um conjunto de construções discursivas relativas ao modo como o mundo funciona, como um lugar em que as pessoas são responsáveis pela sua condição, e estão em constante disputa com os outros pelo acesso aos recursos disponíveis. Devem se preparar como podem para garantir suas próprias condições e as de seus descendentes, pois é deste esforço individual e familiar que se derivam as possibilidades para a concorrência no mundo atual. O mercado procura pessoas proativas, protagonistas, capazes, e tende a deixar de lado aqueles que não têm capacidade de estar à altura de seus níveis de exigência. O mundo é construído como um lugar altamente competitivo, em que o mercado, seu principal mecanismo de ascensão social, seleciona as pessoas que vão progredir. Aquilo que garantirá às pessoas possibilidades de conquistar posições de status na sociedade são suas capacidades individuais. À medida que o Estado intervém, fazendo com o que os incapazes ganhem espaço em lugares que não conseguiriam atingir a partir de seus próprios recursos, está cometendo uma estupidez.

Um segundo repertório interpretativo identificado articula os recursos discursivos em torno da questão do ingresso e da permanência na universidade. Por isso, denominei-o “ingresso x permanência na universidade”. Em resposta à uma afirmação de que 30% das vagas do sistema de ensino superior público estão ociosas, no fragmento 1, foi apresentado o contraponto de que 60% das vagas do sistema de cotas se tornam ociosas. Esta resposta mobiliza argumentos contrários ao sistema de cotas raciais por ele não ser capaz de garantir as condições para a permanência do estudante na universidade. Há diferentes linhas

7 Segundo Portugal (2013, p.123), “o darwinismo social foi uma concepção da evolução social que ordenava

teoricamente e justificava os fatos danosos da estratificação social a fim de conciliá-la com o igualitarismo. Sua configuração é a de um corpo de valores conservadores, individualistas e liberalistas”.

argumentativas em favor desta perspectiva: as pessoas abandonam as vagas porque não conseguem acompanhar o nível da universidade; as pessoas sentem-se estigmatizadas por serem cotistas, não suportando a pressão social e impacto que ela pode ter sobre seu rendimento; o acirramento do racismo e seus efeitos perturbadores sobre a dinâmica das relações sociais dentro da universidade; as pessoas não possuem recursos financeiros mínimos para dar conta de permanecer na universidade e ter acesso aos recursos necessários a realização das tarefas exigidas, entre outros.

Há desdobramentos desta questão articulando recursos discursivos que constroem o sistema de cotas raciais como um sistema racista, que constroem a permanência e possibilidade de conclusão do curso pelas pessoas beneficiadas pelo sistema de cotas raciais como resultado de um rebaixamento do nível de exigência das universidades.

Um terceiro repertório interpretativo identificado foi o da “educação como investimento”. Este repertório foi empregado na organização de um posicionamento contrário ao sistema de cotas raciais envolvendo a construção da educação dos filhos em escolas particulares como um investimento da classe média que será afetado negativamente pelo sistrema de cotas raciais. O retorno deste investimento é compreendido como a garantia do acesso à uma universidade pública. O sistema de cotas raciais é uma medida que prejudica a classe média, porque torna mais difícil garantir uma vaga nas universidades públicas. Assim, as universidades são construídas como espaços altamente disputados, e as pessoas utilizam os recursos que possuem para garantir que estarão lá, ocupando as melhores posições. A preparação para vencer neste mundo custa muito dinheiro, e os investimentos feitos nesta preparação seriam profundamente afetados pelo sistema de cotas raciais, exatamente por criar uma outra forma de ingresso na universidade, menos atravessada apenas por critérios sócio- econômicos.

O repertório interpretativo que teve presença mais significativa entre os fragmentos analisados, foi aquele que constrói o sistema de cotas raciais como um sistema racista. Dei-lhe o nome de “as cotas raciais são racistas”. O sistema de cotas raciais é construído diversas vezes durante os comentários como um sistema de facilitação da entrada nas universidades públicas. A necessidade dessa facilitação, deste favorecimento, estaria amparada no reconhecimento, na aceitação e na decisão de fazer alguma coisa com a ignorância, a incapacidade e a incompetência das pessoas beneficiárias, a população negra. Uma das posições é a de que a proposição de um sistema de reserva de vagas nas universidades

públicas baseado em critérios raciais como uma estratégia de intervenção na educação pública superior pressupõe o reconhecimento e a aceitação da ignorância, da incapacidade e da incompetência da população-alvo no atingimento desta meta. Além do não reconhecimento do racismo na sociedade, transfere o racismo para o próprio sistema de cotas raciais, que é então responsabilizado pela instauração do racismo através da discriminação racial e favorecimento de uma raça em detrimento da outra.

Em alguns casos, quando articulado ao repertório interpretativo do “darwinismo social”, atribui às condições e capacidades individuais da pessoa, sua sorte no mundo. Se ela não conseguiu ascender na vida, isso é signo da sua incapacidade. Não atingiu os níveis necessários de desempenho para estar entre os melhores. Favorecer uma pessoa a chegar até uma posição que ela não teve condições de galgar sozinha é favorecer um incompetente, e dificultar a vida daqueles que estão disputando com chances de obter sucesso. A vida dos incompetentes (pessoas negras) é favorecida, e a das pessoas esforçadas e competentes (pessoas brancas) é prejudicada na dinâmica das relações sociais e na competitividade do mundo.

Este repertório interpretativo se desdobra também na construção do sistema de cotais raciais como uma estratégia que produz profissionais incompetentes. É possível identificar uma linha possível de argumentos que sustentariam esta posição: as pessoas negras chegam mal preparadas na universidade através das cotas raciais pois não receberam uma educação de qualidade, foram colocadas ali. São discriminadas ao longo de sua vida e dentro da própria universidade por serem cotistas. Isso afeta suas condições de acompanhar e dar conta do nível de exigência da universidade. Para que as pessoas não sejam reprovadas e abandonem o curso, os professores são obrigados a baixar o nível de exigência, baixando o nível de qualidade dos serviços que serão prestados à sociedade.

No fragmento 4, o racismo implicado nesta posição é atribuído ao Supremo Tribunal Federal, que seria responsável por, através desta decisão, declarar que os negros são inferiores, tem QI baixo, são incapazes, burros. Esse deslocamento do lugar de quem enuncia o dito racista é um a estratégia constantemente articulada a este repertório.

Por último, encontrei também um repertório interpretativo que constrói o sistema de cotas raciais como uma medida que negligencia a causa real do problema do acesso à universidade. Neste contexto, opõe-se o sistema de reserva de vagas à políticas de melhoria da educação pública em todos os níveis. Em função destas características, nomeei este repertório

interpretativo de “cotas raciais não: melhorias na educação”, tomando como base a oposição que sugere entre ações afirmativas raciais enquanto políticas focais e políticas universalistas de qualificação da educação pública em geral. As posições construídas a partir deste repertório interpretativo defendem que a solução para esta questão é a melhoria das condições e da qualidade da escola pública. A decisão do Supremo Tribunal Federal é equivocada pois deveria estar voltada para o desenvolvimento de mecanismos de pressão sobre o governo para a garantia de uma educação de qualidade, que poderia, então, colocar todos em condição de competir pelas vagas das universidades públicas como iguais.