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1 DAS RUAS AOS JORNAIS: ATOR E GÊNERO DISCURSIVO

1.4 Gênero e estilo do gênero

1.4.2 Reportagem

A reportagem é um dos gêneros mais utilizados na esfera jornalística. Ela se encontra em diversos veículos de informação (jornais impressos, revistas, televisão, internet, rádio) em diferentes linguagens (verbal, visual, sonora, dentre outras), tanto na modalidade escrita, quanto na oral da língua. O repórter é o sujeito que coleta as informações, registra e, em geral, assina os textos jornalísticos desse gênero discursivo.

Na esfera jornalística, a reportagem tem a função de informar, mas, diferentemente da notícia – outro gênero jornalístico que compartilha do mesmo papel informativo –, ela se posiciona, opinando mais diretamente sobre aquilo que informa. A reportagem possui, então, uma função social na formação de opinião dentro das comunidades linguísticas letradas. Além disso, a reportagem, não a notícia, institui o interlocutor no enunciado, que é o cidadão convidado a testemunhar alguma coisa sobre o evento relatado.

Conforme Bakhtin (2016, p. 57), “os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos, uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter”. Por isso, não há um único tipo de reportagem, nem um modelo universal de reportagem – como não existe para o editorial, para o artigo de opinião, para a postagem em rede social digital, ou para qualquer outro gênero do discurso. Na esfera jornalística, há uma gama diversificada de tipos de reportagem: expositiva, informativa, descritiva, narrativa, opinativa, documentada, dentre tantas outras.

Optamos por reportagens que retomassem a factualidade das manifestações de rua ocorridas. Não escolhemos textos que somente informaram o que aconteceu em determinado dia da manifestação de rua, mas privilegiamos os textos jornalísticos que traçaram um

panorama dos fatos ocorridos durante os protestos de rua, trazendo informações anteriores à edição e se posicionando em relação a elas. Esse recorte teórico-metodológico aplicado objetiva analisar o ator coletivo manifestante de rua e, para tanto, é mais apropriado um texto opinativo do que informativo (MARQUES DE MELO, 2012). A reportagem não é opinativa, mas um gênero da ordem do relatar, e dela emerge um pouco mais a opinião, se comparada à notícia.

De acordo com Marques de Melo (2012) e outros autores da epistemologia do jornalismo (cf. SODRÉ, 1966; TRAQUINA, 1993), a reportagem pode se aproximar de outros gêneros jornalísticos, como a notícia e o artigo de opinião, mas ela não se confunde com eles, por diversos motivos. Da notícia, a reportagem se diferencia porque, como já apontamos, ela não somente expõe um determinado assunto, mas também se posiciona densamente sobre o que veicula.50

Do artigo de opinião, a reportagem se distingue, pois ela não expõe esse posicionamento de maneira direta, como o faz o artigo de opinião que, geralmente, utiliza, inclusive, o recurso da debreagem enunciativa. A reportagem faz uso de diversas estratégias para se posicionar e justificar essa posição: mescla discurso indireto e direto com aspas; utiliza entrevistas e citações de autoridades, políticos, especialistas; investiga e formula documentos, mapas, estatísticas, informações de diversas fontes, institucionais ou populares, dentre outros recursos.

Observa-se que o recorte temático da reportagem é voltado para o ato de informar, mas que o realiza apresentando juízos de valor sobre o que está sendo discutido. Na estrutura composicional, geralmente são textos mais longos do que as notícias, menos explicitamente opinativos do que os artigos de opinião, compartilhando com este a característica de serem assinados pelos repórteres, fato que não ocorre nos gêneros notícia e editorial.

A reportagem se distingue de outros gêneros jornalísticos por ser um texto, geralmente, sincrético. Greimas e Courtés (2008, p. 467) definem sincretismo como “o procedimento (ou seu resultado) que consiste em estabelecer, por superposição, uma relação entre dois (ou vários) termos ou categorias heterogêneas, cobrindo-os com o auxílio de uma grandeza semiótica (ou linguística) que os reúne”. Os semioticistas entendem que, em um sentido mais amplo, “[...] serão consideradas como sincréticas as semióticas que – como a ópera ou o cinema – acionam várias linguagens de manifestação” (GREIMAS; COURTÉS,

50 Utilizamos o advérbio densamente porque, conforme defendemos junto com o Círculo de Bakhtin e a

Semiótica, nenhum texto é neutro ou imparcial, todo enunciado se posiciona frente aos demais, seja como resposta (BAKHTIN, 2016), seja como intencionalidade (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 272-273).

2008, p. 467). As reportagens costumam trazer diversos recursos verbais e visuais para a discussão da informação: gráficos, mapas, fotografias, infográficos, dentre outros. Há, portanto, a fusão de distintas linguagens para a produção do sentido nesse gênero.

No Dicionário de semiótica II, organizado por Greimas e Courtés (1986), encontramos uma complementação teórica de Floch (1986). Nesse verbete, o semioticista discute a falta de consenso sobre quais seriam os critérios para se determinar as tipologias das diferentes linguagens que participam da definição do que é um texto sincrético. A orientação de Floch (1986) é a de seguir a proposta de Hjelmslev (2009), que pretende especificar os planos da linguagem com o maior grau de cientificidade possível. “As semióticas sincréticas constituem o plano de expressão deles [isto é, dos textos sincréticos] – e mais precisamente a substância do plano de expressão deles [ou seja, dos textos sincréticos] – com elementos relevantes de várias semióticas heterogêneas” (FLOCH, 1986, p. 218)51. Partindo dessa compreensão, propõe-se que haja “a necessidade – e a possibilidade – de abordar esses objetos [semióticas sincréticas] como conjuntos de significados e procedimentos, em um primeiro momento, a partir da análise do plano de conteúdo deles [dos textos sincréticos]” (FLOCH, 1986, p. 218).52

De modo geral, Floch (1986) propõe uma abordagem analítica para se entender e descrever as semióticas sincréticas. Para o estudioso francês, é preciso antes o reconhecimento de grandes disjunções categóricas que “permitirá obter uma primeira segmentação do texto em sequências discursivas (descrições, diálogos, narrativas) ou em sequências definidas tematicamente (combate, caminhada) que permitirão a atualização das estruturas narrativas subjacentes” (FLOCH, 1986, p. 218).53

Seguimos a proposta de Floch (1986) para o estudo dos textos sincréticos que compõem o gênero reportagem. Realizamos, dentre as diversas possibilidades de construção da estrutura actorial, uma seleção a fim de analisar a constituição do ator do enunciado manifestante no interior das reportagens. Partimos de segmentos verbo-visuais que constroem uma espécie de cronologia dos atos das Jornadas de Junho de 2013 e dos Protestos de Março de 2015 dentro de cada texto. Escolhemos esse segmento por ele retratar a maneira como o

51 No original: “[...] les sémiotiques syncrétiques constituent leur plan d’expression – et plus précisément la

substance de leur plan de l’expression – avec des éléments relevant de plusieurs sémiotiques hétérogènes”

(FLOCH, 1986, p. 218).

52 No original: “On affirme ainsi la nécéssité -et la possibilité- d'aborder ces objets comme des touts de

signification et de procéder, dans un premier temps, à l'analyse de leur plan de contenu” (FLOCH, 1986, p.

218).

53 No original: “[...] permettra d'obtenir une première segmetation du texte en séquences discursives

(descriptions, dialogues, récits) ou en séquences dénommées thématiqement (combat, promenade) qui permettront par la suite la mise à jour des structures narratives sous-jacents” (FLOCH, 1986, p. 218).

enunciador organizou o espaço-tempo das manifestações e como definiu os elementos acolhidos e percebidos pelo ponto de vista sensível do sujeito cognitivo-perceptivo de cada texto (cf. FONTANILLE, 1999).

Para o estudo do segmento visual, empregamos as categorias cromática (cor), eidética (forma) e topológica (disposição espacial), propostas também por Floch (1985; 2009), integrando essas categorias à instância discursiva da enunciação dos textos sincréticos (cf. FOSSALI; DONDERO, 2011). Essas categorias também foram empregadas por Greimas e estão sugeridas no artigo Semiótica figurativa e semiótica plástica (GREIMAS, 1984). Salientamos que a elaboração dessas categorias teve origem nos estudos de Floch, quando este ainda era orientando do mestre lituano. Portanto, a paternidade dessas categorias deve ser compartilhada entre Greimas e Floch.

Já para o exame da linguagem verbal, apoiamo-nos nos pressupostos da semiótica discursiva e tensiva. Retomamos, em especial, o estudo de Fontanille (1999) sobre a construção discursiva do ponto de vista na enunciação dos textos. Esses recursos teórico- metodológicos são reunidos para verificar os procedimentos de formação e de organização geral dos discursos nos textos sincréticos das reportagens.

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