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2. A expressão e o mundo

2.2. Representação de origem sensível e representação de origem intelectual

Em primeiro lugar, convém notar que Fernando Gil encontra na sobrevivência da espécie humana uma “atestação viva” da adequação da representação aos seus objetos. Deste ponto de vista, a representação parece fundar-se em necessidades adaptativas que, por sua vez, justificam a “seleção natural” do nosso aparelho cognitivo, dado que este se revela apto a descrever a realidade.155 De resto, como Fernando Gil nota, «[a] hipótese de uma discordância de raiz entre as aparências sensíveis e o ser das coisas deve excluir-se liminarmente, pois, nesse caso, a espécie teria sido penalizada e da maneira mais forte.»156 No entanto, e é o próprio autor quem o observa157, se, por um lado, esta solução parece irrefutável, por outro, ela é também indemonstrável. Convém portanto analisar a própria estrutura interna da relação de representação.

«[R]epresentar significa ser o outro de um outro que a representação, num mesmo movimento, convoca e revoca.»158 Por outras palavras, representar é ser o outro de qualquer coisa, é ser um “duplo representativo” que ao mesmo tempo que reenvia para algo que lhe é externo, reinvoca-o, reconstruindo-o. Nisto consistem dois dos aspetos fundamentais da representação: o aspeto designativo e o aspeto significativo. Contudo, se estes dois aspetos são necessários à fundação de um qualquer sistema representativo, não são porém suficientes à fundação de um sistema representativo que permita ao sujeito representar a realidade que o rodeia É necessário distinguir, como, de resto, Fernando Gil o faz, entre “capacidade de representação” e “legitimidade para       

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Um argumento idêntico é proposto por Popper na obra The Self and Its Brain: An Argument for Interaccionism (POPPER, K. e ECCLES, J. 1977). Muito resumidamente, Popper demonstra que a seleção natural é geralmente resultado de um processo relativamente violento de luta pela vida, implicando a eliminação dos menos aptos. No caso do homem, com o aparecimento da mente e dos produtos da mente humana, o “mundo 3” segundo Popper – onde figuram, por exemplo, as teorias, os conceitos ou as obras de arte –, todo este processo muda: torna-se possível que as nossas teorias lutem por nós e que morram em nosso lugar. Deste modo, «[d]o ponto de vista da seleção natural, a principal função da mente e do mundo 3 é que eles tornam possível a aplicação do método de tentativa e eliminação do erro sem a eliminação violenta de nós próprios.» Ibid., p. 210. Nesta perspetiva, a mente, assim como os seus produtos, são de uma importância vital para a sobrevivência. Em certa medida eles justificam e são justificados pela própria existência da espécie.

156 GIL, 1984, p. 37-38. 157 Cf. Ibid., p. 38. 158 Ibid., p. 39.

representar”. Vejamos. Qualquer signo, desde a palavra ao símbolo, tem a capacidade de representar alguma coisa.159 Para tal, basta apenas determinar o que corresponde a quê e como cada elemento que representa algo deve articular-se com os restantes elementos de modo a produzir um sentido. Como Fernando Gil demonstra, a existência de um léxico – um conjunto de signos –, de uma sintaxe – um conjunto de regras que determine o modo de articulação dos signos entre si –, e de uma semântica – um conjunto de “regras de atribuição” que determine o que, no interior do sistema, designa o quê, no seu exterior –, é tudo quanto basta para se ter um sistema representativo.160 Dentro desta lógica, não serão as propriedades internas do sistema representativo – a semelhança entre a representação e o representado – o que irá definir a representação, mas antes, a definição de um sistema de correspondências entre o sistema representativo e o domínio representado. Não há qualquer necessidade de semelhança ou mesmo de analogia. Uma coisa pode representar outra desde que se convencione qual o sistema de correspondências entre representado e representante. Em tais casos, aquilo que num sistema representa alguma coisa, num outro sistema poderá representar algo diferente, basta apenas que aquilo que se convenciona num deles seja diferente do que se convenciona no outro.161 É importante notar que este caráter “decisório” ou “convencional” dos sistemas representativos lhes confere um certo grau de arbitrariedade. A escolha de um léxico, de uma sintaxe e de uma semântica poderia sempre ter sido outra. Se ao sistema representativo subjaz uma decisão, esta decisão poderia sempre ter sido diferente.

Daqui ressalta que a “capacidade de representar” pode ser atribuída a qualquer sistema representativo. Já a “legitimidade para representar” [a realidade, note-se] envolve uma maior complexidade. Um sistema representativo dotado de uma verdadeira “legitimidade para representar” não pode ser arbitrário. Se assim não fosse, nunca estaríamos certos da conformidade das nossas representações com a realidade. Neste sentido, seguindo a tese que Fernando Gil propõe, só o “quadro perceptual da       

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A análise dos sistemas representativos será feita a partir da exposição de Fernando Gil sobre a posição de Nelson Goodman a este título, segundo a obra Languages of Art: An Approach to a Theory of Symbols (Inidianapolis and New York: Bobbs-Merrill, 1968). Posição de que, de resto, Fernando Gil se demarca. GIL, 1984, p. 46-51.

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Cf. GIL, 1984, p. 45-47.

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A este título seria interessante invocar o texto de Frege, Sobre o Sentido e Referência: «[o] sentido de um nome próprio é apreendido por todos que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que o nome próprio pertence; isto, porém, só de maneira parcial elucida a referência do nome (…). Para um conhecimento total da referência, exigir-se-ia que fossemos capazes de dizer, de imediato, para cada sentido dado se pertence ou não a essa referência. Isto, porém, nunca conseguiremos fazer.» FREGE, 2009, Sobre o Sentido e Referência, p. 131-132.

representação” poderá constituir o aspeto “legitimador” de um sistema representativo. Fernando Gil insiste no caráter constringente da perceção: «o quadro perceptual da representação não é um quadro cuja “interpretação” seja convencional. O seu carácter figural – o pôr em imagens, literalmente (espacialmente), do mundo – é absolutamente constringente.»162 Como diz Paulo Tunhas, «[o] facto de a representação se encontrar determinada pela percepção implica que o seu carácter arbitrário se manifeste apenas a um nível secundário e não primeiro.»163

A perceção legitima a representação. A primitividade da perceção impõe-se sobre a representação. Antes de qualquer interpretação do mundo através da linguagem ou do pensamento, é a perceção que, em primeira instância delineará, a representação. A este título, não deixa de ser importante sublinhar que, apesar de Fernando Gil nomear a linguagem e o quadro percetual como os «dois sistemas de representação principes»164, na verdade, a um nível mais arcaico, somente o quadro percetual poderá ser nomeado como o sistema de representação prínceps. Permitimo-nos insistir neste ponto. Na verdade, a representação é primeiramente e primariamente165 delimitada pela perceção. A influência da linguagem só se revela num segundo plano. Voltando a Fernando Gil, «[e]mbora [o quadro percetual] se não desdobre, decerto, numa veracidade intrínseca (…), é por referência a ele que se determinam a verdade e o erro: não é um sistema representativo entre outros, mas a referência de todos os sistemas.»166 O quadro percetual «é autónomo relativamente à linguagem.»167 Ainda que para compreender uma determinada perceção seja necessário traduzi-la em proposições, «isso faz-se a um segundo nível.»168 «A uma luz simultaneamente genética e transcendental, é a sensibilidade que estabelece a interface do homem e do mundo, ela é a origem e o solo de toda a informação.»169

É a sensibilidade, ou melhor, a representação de origem sensível, que nos dá a ver o mundo. A sua primitividade é absolutamente marcada.170 Na verdade, a representação de origem sensível – fundada na perceção – exprime uma tendência       

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Ibid., p. 49.

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TUNHAS, P. (2007) Op. Cit., p. 39.

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GIL, F. (1984) Op. Cit., p. 48.

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A perceção não só é a principal base da representação, ela é igualmente o seu fundamento mais arcaico. 166 Ibid., p. 49. 167 Ibid., p. 48. 168 Ibidem. 169 Ibidem. 170

«[U]m mundo absurdo para o entendimento continuaria ainda submetido à forma perceptual da representação.» Ibidem.

natural do pensamento para a verdade, «de tal modo que, só mediante atribuições semânticas aberrantes, se poderia imaginar um mundo que se manifestasse de maneira totalmente diferente daquela por que nos aparece.»171 Tudo isto justifica o relevo que Fernando Gil atribui à «pregnância da representação de origem sensível. Nela se exprime decisivamente a interacção do sujeito e do objecto, a acção do mundo sobre o homem e a interpretação do mundo pelo homem.»172

Analisemos, por fim, a imbricação da representação de origem sensível com a representação de origem intelectual. Como Fernando Gil afirma, «[d]a análise da representação de origem sensível ressaltará que o “sensível” é já “intelectual”.»173 Um retorno à análise dos sistemas representativos permitir-nos-á compreender melhor o alcance desta afirmação.

Como referimos acima, o aspeto designativo e o aspeto significativo são dois dos aspetos fundamentais a ter em conta em qualquer sistema representativo. Ora, isto aplica-se igualmente à representação de origem sensível. A imbricação dos dois tipos de representação, de origem sensível e de origem intelectual, assentará, antes de tudo, na natureza designativa da própria representação, que, por sua vez, será sempre acompanhada, analiticamente, pela significação. Por outras palavras, a representação, qualquer que seja a sua origem, aponta e refere-se sempre a um representado. Ao mesmo tempo que designa algo, que refere, a representação atribui-lhe um conteúdo significativo. Este conteúdo visa identificar o representado. Designação e identificação dão-se simultaneamente. De certa forma, retomando Frege, dir-se-á que a referência não se pode dar isoladamente do sentido. É Frege quem o diz: «[é], pois, plausível pensar que exista, unido a um sinal (…), além daquilo por ele designado, que pode ser chamado de referência (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar o sentido (Sinn) do sinal, onde está contido o modo de apresentação do objeto. (…) A conexão regular entre um sinal, o seu sentido, e a sua referência é de tal modo, que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada.»174 Nestes termos, a designação acompanha-se sempre e já de um conteúdo informativo acerca daquilo a que se refere.

       171 Ibidem. 172 Ibid., p. 45. 173 Ibid., p. 60. 174

Como refere Fernando Gil, «[a] representação de origem sensível é uma percepção interpretada»175. O conteúdo significativo que lhe subjaz é formado a partir de uma “memória de semelhanças” assente na experiência, ou, mais rigorosamente, na perceção de elementos comuns extraídos de “classes de aparências semelhantes”. «É assim que um conteúdo informativo é dito referir-se a um percebido, dar-se conjuntamente com ele»176, e vir a formar o seu conceito. «[E] isso indica que – salvo dúvida hiperbólica – a percepção de semelhanças deve constituir uma disposição intrinsecamente fiável»177, ainda que possam existir erros nas atribuições particulares.

Tudo isto justifica que Fernando Gil afirme que «perceber é já representar»178. Concluindo, podemos afirmar com o autor que «[e]m resumo, o ser vivo é receptivo a uma pregnância do sensível que, para produzir efeitos de significação, não tem de passar pela inteligência discursiva.»179

Deste modo, incumbe-nos agora analisar a importância da disposição para perceber semelhanças, não só para elucidar a relação do sujeito com a realidade, como também para defender uma continuidade entre a perceção – nomeadamente, a perceção de semelhanças – e a formação de conceitos propriamente dita, de uma continuidade entre o sensível e o inteligível.