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2. A expressão e o mundo

2.1. Sujeito e objeto

Nesta secção o foco central do nosso estudo incindirá sobretudo sobre a representação que, como vimos, constitui apenas uma das modalidades da expressão.135 Tal como esta última, também a representação pode ser considerada como uma relação. Uma relação entre representante e representado, uma relação entre sujeito e objeto.

Se, à partida, dizer que a representação é uma relação entre um sujeito e um objeto não parece problemático, diremos que é já aí, nas noções de sujeito e objeto, que encontraremos uma primeira dificuldade. É interessante a este título analisar a posição de Giorgio Colli:

O estudo das representações, elementares ou elaboradas, começa de qualquer forma pelo objeto e não pode partir do sujeito, sempre fugidio (…). Somente falando de objetos é que podemos tratar do sujeito ou, mais sucintamente: se nós falamos de alguma coisa, nós falamos de um objeto.136

Será que o sujeito só pode ser conhecido pelo objeto? E então, como conhecer o objeto? Qual é o lugar que resta ao sujeito na representação? A tese que Colli apresenta revela-se ainda mais complexa quando afirma mais à frente que:

É possível reduzir o sujeito a puros termos de objeto. Ali onde aparece um objeto, ele deve ser conhecido por um sujeito – mas por sua vez este último poderá ser considerado ao mesmo tempo que o

       135

Cf. Anexo – Cursos lecionados por Fernando Gil na Johns Hopkins University (2002-2004), p. 21.

136

seu objeto, como objeto de um sujeito posterior. Só podemos, portanto, falar da relação sujeito-objeto provisoriamente, a fim de descrever uma situação dada de objetos.137

A afirmação da inconsistência do sujeito é tão acentuada que Colli acaba por negar a existência de ideias, espírito, vontade, instinto, ação ou poder, considerando-os apenas conceitos metafísicos que a razão humana forjou com «a pretensão de revelar qualquer coisa de substancial, de elementar, de unificador por relação ao caleidoscópio da experiência»138, mas que na verdade «não se justificam nem explicam nada.»139 É o próprio sujeito cognoscente que parece desvanecer-se nas palavras de Colli: «o conhecimento existe mas falta-lhe um portador do conhecimento. (…) [É] a cogitatio que constitui o cogito, não o cogito que constitui a cogitatio; portanto, pode existir uma

cogitatio sem cogito, mas não o inverso.»140 O mesmo argumento é usado para anular o sujeito como agente: «se não há portador de conhecimento, como poderá existir um portador da ação? (…) [S]e não há portador da ação, uma vontade não pode ser contemplada, e a própria ação, sem um portador que lhe seja próprio, é absurda. (…) O conceito de ação revela-se assim fictício.»141

É certo que não parece ser possível analisar o sujeito sem o “objetificar”. Na verdade, como Colli refere:

De cada vez que analisamos uma representação, encontramos um objeto, mesmo que seja no âmbito de uma relação, isto é, de uma perspetiva, como projeção determinada. É inútil procurar o ponto a partir do qual se abre esta visão: ao mesmo tempo que o descobrimos, ele torna-se objeto, absorvendo em si o velho objeto, e, uma vez mais, a origem da perspetiva nos escapa.142

De facto, uma variante do Princípio da Incerteza de Heisenberg parece poder aplicar-se na análise da representação. Tal como na microfísica não é possível medir um objeto sem nele interferir e o alterar – ao tentar localizar a posição do eletrão altera-se a sua velocidade e consequentemente a sua energia –, também na análise da representação não conseguimos chegar ao sujeito sem o modificar, tornando-o objeto. Mas ainda que isto aconteça desta forma, não podemos esquecer que qualquer análise pressupõe um sujeito que analise. Por conseguinte, mesmo que o sujeito seja “objetificado” isso só pode acontecer porque alguém, um novo sujeito, o “objetificou”. Ao contrário de Colli,        137 Ibid., p. 16-17. 138 Ibid., p. 21. 139 Ibidem. 140 Ibid., p. 23. 141 Ibidem. 142 Ibid., p. 22.

parece-nos ser impossível – e, de resto, implausível – erradicar o sujeito da relação de representação. O conhecimento do objeto dá-se por relação ao sujeito, e o conhecimento da relação de representação, e da própria representação, dá-se por relação àquele que a estuda, ou seja, novamente, um sujeito.

Daqui ressalta um dos aspetos mais importantes da teoria da representação: os objetos existem porque existem sujeitos. Mais rigorosamente, é certo que existe um mundo independente dos sujeitos que o habitam, mas o reconhecimento desse mundo

qua mundo, e dos seus objetos qua objetos, passa pelo sujeito que os reconhece como

tais, o sujeito cognoscente. Aliás, como Fernando Gil afirma «[n]ão há expressão sem um sujeito que a apreenda»143, a experiência da expressão é «subjetiva, indeclinável e originária.»144

Não obstante, não deixa de ser interessante analisar um pensamento tão diferente do pensamento de Fernando Gil relativamente à posição – e à importância – do sujeito, como o pensamento de Giorgio Colli, uma vez que essas diferenças acabam por realçar aspetos cruciais da obra de Fernando Gil. Note-se que a problemática do sujeito, e do sujeito epistémico, constitui um dos traços fundamentais da filosofia de Fernando Gil. Como Paulo Tunhas refere, uma das questões fundamentais do pensamento de Fernando Gil é precisamente «a do papel do sujeito no conhecimento.»145 Nos cursos lecionados na Johns Hopkins, Fernando Gil di-lo expressamente: «[o] conhecimento não pode ser dissociado do sujeito.»146 Em A Convicção147, a mesma ideia está igualmente presente:

[A] inteligibilidade do conhecimento não pode dispensar o sujeito que é o seu agente e destinatário. (…) A inteligibilidade não resulta unicamente dos critérios epistemológicos da explicação. Ela está enraizada numa actividade multiforme do espírito que, por sua vez, assenta em evidências epistémicas, simultaneamente cognitivas e vividas.148

Uma teoria da inteligibilidade firma-se no conhecimento da primeira pessoa. A crença, a intuição, as práticas cognitivas relevam do sujeito.149

É essa “atividade multiforme do espírito” que importa analisar. A atividade cognitiva do sujeito, considerada a partir da experiência e da perceção, constitui o ponto

       143

GIL, 2005a, “Os Registos da Harmonia”, p. 172.

144

Ibidem.

145

TUNHAS, 2007, p. 6.

146

Anexo – Cursos lecionados por Fernando Gil na Johns Hopkins University (2002-2004), p. 63.

147 GIL, 2003. 148 Ibid., p. 13-14. 149 Ibid., p. 23.

de partida do estudo da representação. Como nos diz Fernando Gil, a perceção deve ser entendida como «actividade cognitiva expressa.»150 Note-se que é no quadro da perceção que a representação será apreciada em Mimésis e Negação.151 Paulo Tunhas observa, de resto, que o primado da perceção é, relativamente a esta obra, um dos principais aspetos a ter em conta.152 Aliás, o único pressuposto da obra «é ser a experiência por essência cognitiva», e aqui o imbricamento da noção de experiência com a noção de perceção é indelével. A perceção é por essência cognitiva.

Retomando a ligação entre sujeito e objeto, e tomando em consideração que a perceção é por essência cognitiva, posicionamo-nos frente à mais primitiva aporia da objetividade: como ligar a recetividade da sensibilidade e a espontaneidade cognitiva do sujeito? Por outras palavras, como podemos nós pretender que a representação se refira realmente àquilo que ela supostamente descreve?

O problema não é novo. Ao longo de toda a história da filosofia ele prolonga-se em diversos movimentos e diferentes manifestações. No fundo, como Paulo Tunhas nota, estamos perante o «próprio seio da aporia da representação, isto é, num intervalo indecidível entre um “realismo passivo da semelhança” e um “idealismo activo da interpretação”, entre os quais a teoria da interpretação se encontra cindida.»153 No início de Mimésis e Negação, Fernando Gil oferece-nos uma breve exposição do âmago do problema:

Por definição, a representação testemunha uma eficácia daquilo que é representado sobre o representante. Mas ela é igualmente o produto da actividade construtiva do sujeito: mesmo a «receptividade» da sensibilidade se acha submetida a «regras» (…). Para haver objectividade requer-se uma homogeneidade entre o sujeito e o objecto, que apenas pode assentar sobre a organização da representação pelo sujeito. Mas essa mesma actividade construtiva ameaçará, por outra via a objectividade e a verdade da representação.154

Para Fernando Gil uma só maneira haverá de desfazer este impasse. É necessário procurar uma continuidade entre a perceção e a representação que assente num

       150

Anexo – Cursos lecionados por Fernando Gil na Johns Hopkins University (2002-2004), p. 21.

151

Cf. GIL, 1984, p. 15. A apreciação da representação como perceção aparece igualmente nos Cursos lecionados na Johns Hopkins (cf. Anexo – Cursos lecionados por Fernando Gil na Johns Hopkins University (2002-2004), p. 63, 71).

152

TUNHAS, 2008 “Verdade e Imaginação em Mimésis e Negação”, p. 47.

153

TUNHAS, 2007, p. 41.

154

“ajustamento de princípio” dos dispositivos cognitivos aos seus objetos. Será esse o nosso próximo passo.