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2. A expressão e o mundo

2.3. A semelhança

Apesar de termos encontrado na primitividade da perceção uma primeira instância de contacto com o mundo, e, como tal, determinante na formação de representações, não é ainda claro o que é que na perceção é atividade do sujeito ou influência do objeto. É de facto importante aprofundar este tópico, uma vez que ele nos coloca novamente frente à aporia da representação, que, levada ao extremo, conduzir- nos-á a posições limite como um idealismo da interpretação ou um materialismo despossuído de sujeitos. É portanto necessário dar um passo atrás e analisar mais profundamente a estrutura da perceção.

       175 GIL, 1984, p. 80. 176 Ibidem. 177 Ibidem. 178 Ibid., p. 79. 179 Ibid., p.78.

Como referimos anteriormente, a defesa do primado da perceção é um tema recorrente na obra de Fernando Gil, sendo marcadamente um dos temas centrais de

Mimésis e Negação180. Assim como a influência leibniziana é fulcral no estudo da expressão, ou a husserliana no estudo da evidência, a influência estóica, nomeadamente da teoria estóica da phantasia, será fundamental para compreender a posição de Fernando Gil relativamente ao primado da perceção.181

O conceito estóico de phantasia remete justamente para o conceito de representação – com efeito, para os estóicos seria esta a tradução da palavra phantasia, ao contrário de Aristóteles que a entendia como imaginação. Para os estóicos a representação é uma afeção da alma, ou seja, é aquilo que se produz no interior da alma consecutivamente aos sentidos. Por outras palavras, a afeção constitui-se como uma impressão dos objetos gravada na alma, que tem a sua origem nos sentidos. Esta impressão, por sua vez, ao mesmo tempo que se manifesta e se dá a ver a si, manifesta e dá a ver o objeto que a produziu. A relação entre a representação e o objeto que a originou é aqui bastante próxima, a phantasia – a representação –, constitui-se como uma “cópia” do phantaston – o objeto representado. Ela é índice de realidade. Como nos diz Fernando Gil, «[é] um estereótipo estóico descrever a representação como provindo de uma coisa exterior, sendo a sua conformidade com essa coisa de tal natureza que ela “não poderia provir de uma coisa inexistente”».182

É precisamente em torno deste ponto que a controvérsia entre estóicos e cirenaicos ocorrerá. O foco do debate seria o seguinte: é inegável que, de um ponto de vista subjetivo, as nossas afeções constituem critérios infalíveis. Quando sentimos o branco ou o doce, é-nos impossível negar que os sentimos. Para nós é indisputável que sentimos o que estamos a sentir. Ora, grosso modo, o que os cirenaicos demonstram é que aquilo que sentimos não pode ser índice de verdade – de conformidade entre a aparência e o objeto –, uma vez que são possíveis erros sistemáticos de interpretação. Um exemplo muito simples reside na sensação de doçura. Um alimento doce ou amargo facilmente se converte no seu oposto consoante a doçura ou amargura do alimento que se ingeriu imediatamente antes. O daltonismo ou até mesmo a loucura elevam exponencialmente este tipo de erros. A ser assim, ficaremos permanentemente incertos       

180

Cf. TUNHAS, 2008 “Verdade e Imaginação em Mimésis e Negação”, p. 47.

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«Mimésis e Negação é, de certo modo – como o são os outros livros de Fernando Gil –, um livro estóico. (…) Os Estóicos estão presentes nos momentos decisivos do livro. Na teoria da representação, a teoria estóica da phantasia (…) apresenta uma importância decisiva.» Ibid., p. 43.

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sobre a realidade das nossas afeções. Ou as aceitamos como verdadeiras, tendo em conta as suas irrevocáveis exceções, ou concluímos que são todas falsas, fruto apenas da imaginação do sujeito. O que Fernando Gil faz ressaltar desta discussão, é que apesar das afeções serem absolutamente indiscutíveis, elas não consagram a existência de um facto, isto é, elas não são verdadeiras nem falsas, elas não dizem respeito à descrição de um estado de coisas no mundo. «A infalibilidade da sensação nada prova em termos de verdade.»183

O nosso problema complexifica-se. Para além de não sabermos qual a predominância do sujeito ou do objeto relativamente à própria perceção, ficamos agora despossuídos de um mecanismo que nos possa assegurar a realidade das nossas perceções.

O primeiro aspeto a ter em conta relativamente a este impasse é que o nosso contacto com o mundo dá-se através dos sentidos, consubstanciados na perceção. Venha esta a revelar-se verdadeira ou falsa, não há outro modo de chegar ao mundo. Por outras palavras, ainda que existam erros sistemáticos de interpretação, não podemos deixar de ter em conta o «primado da perceção enquanto modelização originária do percebido»184. É certo que da indiscutibilidade da aparência não parece poder seguir-se uma equivalência entre a imagem-aparência e o objeto, mas como também já vimos, é na perceção que reside «a referência de todos os sistemas.»185 Torna-se assim necessário encontrar no próprio quadro percetivo um critério suplementar que justifique a sua adequação ao mundo.

Esta questão não passou despercebida aos estóicos. É precisamente isso que a doutrina da catalepse (katalepsis) vem demonstrar. Segundo esta doutrina, o que assegura a adequação da perceção ao mundo, e, consequentemente, a sua irrefutabilidade, é uma espécie de assentimento (synkatathesis) do sujeito, isto é, um reconhecimento da exatidão e da objetividade da phantasia.186 Como Fernando Gil refere: «o assentimento à phantasia, que incumbe ao sujeito, teria como efeito uma certeza inquebrantável e inacatável sobre a correspondência da representação ao seu       

183

Ibid., p. 65.

184

Ibid., p. 66. Como, de resto, já vimos na secção anterior.

185

Ibid., p. 49.

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Como nos diz Fernando Gil, «[a] verdade da representação cataléptica não é imanente e imediata como a da ideia evidente cartesiana; é por meio de um “assentimento” dado à representação sensível (à phantasia) que se chega a uma representação que seja sigillum sui et veri» (Ibid., p. 67). Este assentimento seria como que um reconhecimento imediato. É exatamente isso que nos demonstra Cícero, citado por Fernando Gil: «Do mesmo modo que, necessariamente, o prato de uma balança desce, quando se colocam pesos sobre ele, também a alma deve ceder àquilo que é manifesto (perspicuis)» (Ibidem).

objecto.»187 Ora, a catalepse é precisamente isto, uma “certeza inquebrantável”, irrefutável, sobre a veracidade da representação. De forma a obtê-la não basta a passividade da perceção, é necessária a atividade do sujeito, formulada num juízo sobre a adequação da representação ao representado. Dito por outras palavras, «não há um assentimento adquirido à partida».188

Neste contexto, a doutrina do assentimento coloca-nos novamente perante a

aporia da representação. Se a verdade da representação depende de um juízo do sujeito,

como evitar a sua arbitrariedade? «[C]omo limitar a margem da sua interpretação pessoal?»189 Mais. O que é que fundamenta esse juízo? O que é que pode preceder a perceção de modo a justificar um juízo de adequação sobre a mesma? Não estaremos nós perante o risco de aceitar uma doutrina idealista? Voltando a Fernando Gil, «a aporia reside em que, para se justificar a relação entre um objecto representado e a imagem na base da representação, será mister recorrer a um realismo da semelhança: na imagem, o objecto está “impresso, marcado e reproduzido”. Mas a análise das condições desse realismo (…) acaba por nos remeter para um idealismo da

interpretação».190

Assim, para os estóicos, o que viria a assegurar o realismo da representação não seria a semelhança da imagem-aparência ao objeto, mas a correspondência desta ao conceito apropriado, isto é, a sua correspondência ao conjunto de descrições de um determinado objeto. Recorrendo a Sexto Empírico, para os estóicos «os sensíveis não são verdadeiros directamente, mas apenas por recurso aos inteligíveis que lhes estão associados. Porque, segundo eles, o Verdadeiro é “o que subsiste e se opõe a algo”, e o Falso “o que não é subsistente e se opõe a algo”; e isto sendo um juízo incorporal, é um inteligível».191 Mas então, como é que se determinam os inteligíveis?

Como Fernando Gil refere, o deslocamento da aporia da semelhança para uma subordinação do sensível ao inteligível coloca-nos perante um “ciclo vicioso”. «Declara-se que a verdade da coisa depende da determinação da sua aparência pelo conceito, mas, se não se for platónico, o “conceito” não pode derivar senão da própria “coisa”. Como evitar, de novo, a invocação de uma “semelhança”?»192 Assim, seguindo a hipótese proposta por Fernando Gil, e regressando à exposição da secção anterior,        187 Ibidem. 188 Ibid., p. 68. 189 Ibidem. 190 Ibidem. 191

SEXTO, apud GIL, F., Ibid. p. 69.

192

sugerimos que a construção da representação se funda na perceção de semelhanças. Não numa semelhança entre a imagem-aparência e o objeto – uma vez que, se por um lado, tal semelhança nos coloca perante o referido problema do isomorfismo (a impossibilidade de distinguir o objeto da sua imagem), por outro, entre a imagem- aparência e o objeto não é necessária uma total correspondência, mas antes, uma adequação (como comprova a ligação entre objetos e signos ou palavras) –, mas antes numa memória de semelhanças entre as coisas. A disposição para perceber

semelhanças entre as coisas e a memória dessas semelhanças asseguram a fiabilidade

da representação de origem sensível, ou, para usar um termo caro a Fernando Gil, ambas asseguram uma verdadeira afinidade, no sentido forte, entre a representação e o representado.

Em conclusão, «para lá do dilema entre um realismo passivo da semelhança e um idealismo activo da interpretação, aquela disposição aponta para um realismo da

interpretação, susceptivel de dar uma solução de princípio aos problemas com que nos

deparámos [os que dizem respeito à aporia da representação].»193 É a partir da disposição para perceber semelhanças que se torna possível apurar a identidade de cada coisa. Dela depende a formulação do “conceito empírico”. Como Fernando Gil refere:

[O] conceito empírico significa uma tematização da percepção em feixes estáveis de aparências (…). Ao encapsular um feixe de aparências numa classe lógica – numa propriedade –, o conceito realiza uma generalização que transforma as semelhanças em identidades: dir-se-á então que representa o sensível e que é exemplificado por ele.194

A disposição para perceber semelhanças constitui a “pré-compreensão” do mundo anterior ao desenvolvimento do pensamento categorial, na qual, por sua vez, este irá assentar. A sua arcaicidade revela o enraizamento da representação na memória, e esta na perceção. Voltando a Leibniz, encontram-se aqui reunidos todos os modos da

expressão: “a perceção natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual”, dos

quais o último representa a união dos três. Na verdade, como Paulo Tunhas refere, «[o] cognoscente exprime, natural e muito leibnizianamente, o conhecido.»195

Na “pregnância da representação de origem sensível” exprime-se a solicitação do mundo pelo sujeito e do sujeito pelo mundo, que, embora simultânea, não é igual em

       193 Ibid., p. 80-81. 194 Ibid., p. 82-83. 195 TUNHAS, 2007, p. 37.

termos de intensidade.196 Existe uma atividade do sujeito que não se pode obliterar197. O

realismo da interpretação decorre exatamente dessa atividade firmada numa disposição

que é ao mesmo tempo adequação e construção. O mundo e o sujeito não estão em posição de igualdade. Se parece certo que a perceção de semelhanças «se baseia num fundo de mimetismo»198, numa mimésis «que encontra o seu fundamento na perceção»199, é também claro que deverá existir uma organização da informação em função de semelhanças e contrastes.

Assim, tomando como certa a adequação da perceção ao dado, resta saber «como é que a perceção regista e identifica semelhanças e regularidades, quais são os níveis de complexidade no tratamento da informação»200, como é que o sujeito constrói a representação. Será esse o rumo que tomaremos.