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As situações aqui estudadas são desdobramentos das representações de escola mediante as vivências educativas dos

participantes. Nesse sentido “O sujeito se expressa através do prisma do meio social que o engloba, sendo [o prisma] necessário, para compreender as motivações e os pontos de vista expressos na interação verbal”. (BAKHTIN 2004, p. 113).

Atentamo-nos para os recortes que descrevem imagens de escola. Ressaltamos que as representações dos sujeitos são moventes, ora trazem lembranças de situações que abrigam experiências doloridas ou satisfatórias com seus processos de escolarização – inerente ao humano de carne e osso, nos termos de Moita-Lopes (2006). Portanto nossos recortes trazem esse entrecruzamento de vozes. Esses se constroem a partir da seguinte pergunta: Pesquisadora: Como foram suas experiências na escola? Quais as contribuições de leitura da escola que tu teve né?

Recortes:

Etelvina: ... como sou de família pobre a minha única saída era ir p escola e naquele tempo a escola funcionava bem:: porque é assim... a criança de uma família desestruturada que não tem o tempo para se dedicar só a estudar... que tem que trabalhar desde cedo como no meu caso só tem uma chance de ser alguém é:: na escola tu me entende?

Ronildo: ah bastante contribuiu sim com certeza... porque logo se eu não tivesse frequentado a escola com certeza eu não teria feito aqueles passeios com ela ((professora que o incentivou nas primeiras leituras)) pra ler os painéis é dificilmente uma pessoa de fora da escola te fala assim ... óh lê um cartaz lê alguma coisa lê isso não acontece... isso acontece geralmente é na escola mesmo... é a escola que incentiva a pessoa a ler não tem jeito

Francisco: contribuiu... é:: assim porque no momento que eu estava na sala de aula eu/ eu escrevia mas na mesma hora eu não dava conta de lê né ai a professora ajudava apagava ensinava como é que lia com o é que escrevia ai nesse processo assim que a escola ajudou

A educadora Etelvina, ao retomar as lembranças de escola, assume o discurso de que ir para escola é a possibilidade de prosperar, ascender financeiramente, ou obter mobilidade social, às vezes, nos dizeres da participante, “de ser alguém”: “no meu caso só tem uma chance de ser alguém é:: na escola tu entende?”. No entanto lembramos Freire (1981a) que nem sempre escolarizar-se será sinônimo de sucesso escolar. Anunciar que há equivalência entre escolarização e ascensão social, é no mínimo uma postura ingênua, conceito discutido por Freire (1981a). Ou compreender práticas de letramento apartadas do

tecido social, dos seus conflitos, da sua cadeia de relações de poder. (STREET, 1984).

Na fala de Ronildo, percebe-se que a professora C marcou seu processo de escolarização, devido às atividades de leitura que lhe apresentou: “lê os painéis lê um cartaz lê alguma coisa lê isso... dificilmente uma pessoa de fora da escola te fala assim... é na escola mesmo é a escola que incentiva a pessoa a ler não tem jeito”, e com a afirmação de que, “é a escola que incentiva a pessoa a ler não tem jeito”, evidencia-se a figura da professora como significativa na aprendizagem da leitura, e a escola como espaço legitimado para incentivo do ato de ler. E a partir do exposto, amparado nas discussões de Soares (1989) que destaca a relevância da escola para grupos desfavorecidos economicamente, tais grupos acreditam fielmente que a escola é redentora e suas práticas, especialmente as de linguagem, necessitam ser aprendidas, portanto a escola cumpre papel satisfatório, assumir suas práticas é uma ação valorizada.

No excerto do professor Francisco há um destaque para a intervenção da professora, no sentido da promoção do ato de ler e escrever corretamente, não como postularia Freire (2008), mas baseada no modelo de letramento autônimo de Street (1984), como a aquisição individual de uma habilidade, conforme o fragmento: “eu escrevia mas

na mesma hora eu não dava conta de lê né ai a professora ajudava

apagava ensinava como é que lia com o é que escrevia ai nesse processo assim que a escola ajudou”. Tem-se na escola, a representação de lugar em que se constrói o conhecimento legitimado, e que a ação de refazer a atividade, orientada apenas como repetição, é uma forma comum de ensinar na instituição escolar.

O educador de língua materna, ao retratar suas imagens de escola, constrói a aproximação e identificação com os saberes produzidos e legitimados na maior agência escolar, autorizada e reconhecida socialmente por ensinar a ler e escrever os que ali conseguem adentrar e permanecer. (KLEIMAN 1995). As representações de letramento escolar, externadas pelos participantes “são tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se devem tomar posição”. SILVA (2000). A posição aqui escolhida é da imagem de escola que contribuiu para sua formação leitora.

A temática desta subseção remete diretamente a uma de nossas perguntas de pesquisa, e a partir dos excertos verificamos os sentidos sobre o ato de ler para nossos participantes. Tal questionamento foi levantado nas entrevistas de 2013, e construído a partir da seguinte interrogação: o que é ler para você...? e:: você acha que a gente precisa aprender a ler?... ou não precisa?

Recortes:

Etelvina: sim... porque no caso ...eu estava com as meninas esperando o ônibus no dia que eu fui visitar o V. mais a N. tinha um senhor que tava há muito tempo lá::... passou o ônibus ele disse “eu perdi o ônibus” nós conseguimos pegar/ entramos no ônibus e ele veio correndo... aí o homem disse assim “ele não sabe ler não” então é::: um um uma situação tri::ste uma pessoa que hoje não sabe ler

Ronildo: é:: ler pra mim é um olhar para além da escrita...olhar além do que está escrito...é fazer comparações com:: outras leituras...é:: aprender a ler pra mim é:: olhar... os livros olhar os livros[...] pegar os livros e ver como se fosse a realidade da gente... fazer comparações com o escrito e o real...

Ronildo: precisa...logo hoje... no mundo todo onde você vai você precisa saber ler... pra todo lugar que você vai precisa ler... se você vai num restaurante você precisa ler... se vai sair de uma cidade pra outra tem que ter a leitura... porque nas entradas e na saídas da cidade tem as placas... então assim pra onde você olha tem leitura... então eu acho que é uma necessidade... toda pessoa tem que aprender a ler

Francisco: aprender a ler:: é:: uma forma de:: também adquiri conhecimento... assim se tu não ler tu não adquire conhecimento... não/não tu adquire conhecimento...mas aquele conhecimento que não deveria ser...por exemplo...se tu não ler tu não escreve... tu escreve mas não escreve corretamente... e se tu ler tu tem facilidade para escrever...se tu ler tu tem facilidade para interpretar...pra tu dialogar...pra tu conversar com as pessoas... se tu ler tu tem conhecimentos de várias coisas... se tu não ler...tu não tem conhecimento

As representações do ato de ler para o educador do campo evidenciam diversas conotações. Algumas se ancoram em compreensões que estão imbricadas nas suas trajetórias de leitura, bem como suas identidades leitoras, conforme posto por Vóvio e De Grande (2010).

Compreender a complexidade inerente à leitura, à formação de leitores e ao seu ensino numa sociedade em que o acesso a esses bens culturais se encontra desigualmente distribuído, implica envolver-se em relações de poder e de luta hegemônica”. (VÓVIO E DE GRANDE, 2010, p.53).

O fragmento de Etelvina traz o sentido de ler para responder as demandas sociais, agir no mundo: “passou o ônibus ele disse “eu perdi o ônibus... nós conseguimos pegar/ entramos no ônibus e ele veio correndo... aí o homem disse assim “ele não sabe ler não” então é::: um um uma situação tri::ste uma pessoa que hoje não sabe ler”, a simples ação de pegar um ônibus demanda ler, ou ao menos saber ler nessa situação específica, a fim de reconhecer o transporte que vai lhe levar para um determinado destino. Ler aqui pressupõe ler para a vida. (FREIRE, 2008). Estar no mundo exige determinadas posturas leitoras, a fim de não ficar excluído da cidade letrada. (RAMA,1984).

O discurso do professor Ronildo revela concepções distintas sobre a leitura. De um lado ecoa o discurso da leitura para intencionalidades imediatas, ler para significar as ações organizadas socialmente: “no mundo todo onde você vai você precisa saber ler... pra todo lugar que você vai precisa ler... se você vai num restaurante você precisa ler... se vai sair de uma cidade pra outra tem que ter a leitura... porque nas entradas e na saídas da cidade tem as placas... então assim pra onde você olha tem leitura...”, ler para funcionar na cidade letrada, como mencionado em Rama (1984). E, por outro lado, um modo canônico de associar a leitura à leitura de livros como representação da realidade, como posto ainda pelo participante: “ler pra mim é:: olhar... os livros olhar os livros[...] pegar os livros e ver como se fosse a realidade da gente”.

O discurso de Francisco acentua o ato de ler com uma visão clássica de leitura para acessar a obra da humanidade, o saber enciclopédico, a decodificação: “aprender a ler:: é:: uma forma de:: também adquiri conhecimento... assim se tu não ler tu não adquire conhecimento... não/não tu adquire conhecimento”. Representação ancorada em uma prática de modelo de letramento autônomo (STREET 1984; KLEIMAN, 1995). O que implica deduzir que aquele que não ler, logo não possui conhecimento, nas palavras do participante: “se tu não ler...tu não tem conhecimento”. Percebe-se que Francisco reitera um saber assentado na esfera escolar, como o lugar depositário dos saberes, de ciência e da cultura. Evidencia uma correspondência entre ler e escrever orientada pelas práticas de letramento escolar, asseverando que: “se tu não ler tu não escreve... tu escreve mas não escreve corretamente... e se tu ler tu tem facilidade para escrever... se tu ler tu tem conhecimentos de várias coisas”. Nessa concepção, aquele que não

lê está fadado a não ser legitimado enquanto leitor e muito menos enquanto produtor de conhecimento.

Resta-nos considerar que as percepções de leitura, e concepção de linguagem, externadas pelo educador, mesmo que inconscientemente, orientam-se de acordo com as práticas de letramento das classes hegemônicas, ou seja, letramentos dominantes. (BARTON & HAMILTON, 1998).