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Nesta categoria emergiram representações sobre a sexualidade das pessoas com transtornos mentais em dois eixos. De um lado, como sendo sua vivência “um direito de todos” e de outro, considerando que esta “não é igual a de todos” e, apresentadas FIG. 3 abaixo:

FIGURA 3 - Representações sobre sexualidade das pessoas com transtorno mental, sob a ótica dos profissionais dos serviços públicos de saúde mental de Minas Gerais.

Algumas contradições foram evidenciadas na análise das discussões nos grupos, sendo marcantes as disjunções presentes nas falas, quando se tratou da sexualidade. Em todos os grupos focais foi unânime o reconhecimento de que a sexualidade não se resume apenas ao “ato sexual” e que todas as pessoas, independente da patologia que desenvolvem, têm direito a uma vida sexual saudável e a expressarem sua sexualidade. No entanto, na medida em que as discussões avançaram, os relatos e posicionamentos foram incoerentes com a fala inicial, revelando a adoção de posturas contrárias às ações que pudessem garantir o direito à sexualidade e à saúde sexual de pessoas com transtornos mentais.

Verificou-se, também, a existência do silenciamento em torno da temática da sexualidade e de suas diferentes formas de expressão, pelo fato de esta ser vista como algo considerado proibido ou clandestino, que deva se dar somente “entre quatro paredes” e de forma confidencial. As representações que emergiram da análise parecem residir na associação da sexualidade a aspectos considerados imorais, como na fala a seguir:

“O que a gente percebe é que os pacientes com transtorno mental, muitos quando estão em surto, apresentam aumento do quadro, da questão sexual. Enfim, não ligam se têm companheiro ou não, a promiscuidade é grande, a gente vê alguns casos que não respeitam essa questão.”

Nas narrativas, os profissionais expõem situações cotidianas das unidades com descrições de como se comportam os usuários entre si com relatos variados acerca da manifestação da sexualidade de cada um. Como pode ser visto nas falas a seguir, os profissionais parecem agir defendendo-se daquilo com o qual não conseguem lidar e, ao invés de enfrentar, optam, muitas vezes, por negligenciar a demanda da pessoa por ele assistida. Tal situação é bastante conflituosa, pois, por vezes, os participantes defendem a liberdade de expressão da sexualidade pelos

pacientes assistidos, mas em outros momentos, descrevem situações de completa aversão a qualquer tipo de expressão desta sexualidade, adotando posturas moralistas, como nas falas a seguir:

“E tem uma sedução, você percebe, dependendo do momento do serviço. Se eles estão com menos roupa, tem aquele... É da vida, é humano. Obviamente que a gente percebe mais em alguns casos. A questão do uso, do abuso em função do uso, da necessidade da troca do corpo, que é o que eles têm”.

“E essas manifestações da sexualidade, elas surgem de diversas formas. Desde paciente tendo relação com outro paciente dentro do CAPS; desde um paciente fazendo um balão com o preservativo, um horror”.

Outros estudos (Miranda, 1996; Miranda; Furegato, 2002; Miranda; Furegato e Azevedo, 2008) à disposição na literatura corroboram esses achados, apontando a presença de um discurso essencialmente moralista. As representações sobre o sexo, o ato sexual e o prazer foram de ‘vergonha’, ‘coisa proibida’, e são muito antigas e persistentes na cultura sexual atual, não somente pela população em geral, mas também entre os profissionais de saúde (BRITO; OLIVEIRA, 2009).

O ocultamento do profissional em torno da temática foi identificado em estudos realizados com outros grupos e apontado por estes autores como um aspecto dificultador não só para o alcance de maior prazer na vivência sexual, mas também para prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (ANTUNES et al., 2002; CAMARGO e BOTELHO, 2007; GOZZO et al., 2000).

Desta forma, a maneira como os profissionais lidam com as diferentes formas de expressão da sexualidade dos pacientes por eles assistidos contribui para o distanciamento, silenciamento e a perpetuação de estigmas e preconceitos sobre a vivência da sexualidade pelas pessoas, sobretudo daquelas com transtornos mentais:

“E ele (um paciente) transou. Quando eu entrei lá, ele transou, acabou com a paciente que tem um retardo, toda quietinha... Cronometrou, 10 minutos. Ele falou que fez em 10 minutos, cronometrou o ‘negócio’ e ainda contou pra nós! Na hora que o profissional chegou lá foi preciso dar a pílula do dia seguinte, virou aquela correria, foi levar pra fazer o teste de HCG, virou aquela confusão toda”.

“Muitas vezes é um paciente que é ou era heterossexual e começa a ter alguns desvios naquele momento, que não seria o seu normal. Por exemplo, uma mulher começou a querer ter relacionamento com outra mulher, isso acontece às vezes, ela perde a noção do que deveria ser. Então, às vezes, o rapaz canta uma menininha casada, isso torna um transtorno.”

A representação nuclear é que as diferentes formas de expressão da sexualidade pelas pessoas com transtorno mental são absurdas, imorais, e devem ser repreendidas. Desta forma, esse ponto de vista central dos profissionais carrega consigo outra representação, a de que os modos de gestão da vida sexual são provenientes da “própria loucura”, devendo, de modo geral, serem reprimidos e sobre os quais se prefere o silêncio e o distanciamento. A distância só diminui nos momentos de urgência, de denúncia de atos praticados e a abordagem se limita a prevenir a gravidez, o que aponta a representação de que PTM não devem ter filhos porque são “incapazes”.

“É muito complicado esta questão do sexo para eles, porque pode gerar uma gravidez, e eles não dão conta de cuidar nem deles mesmos, quanto mais colocar uma criança no mundo.”

Outro aspecto encontrado, no que diz respeito às diferentes maneiras de manifestação da sexualidade das pessoas com transtorno mental, é o de que parecem ser consideradas “normais” apenas relações heterossexuais, tendo sido a homossexualidade percebida como inconcebível:

“Tem muito caso de homossexualismo, homem com homem e mulher com mulher, um horror, se a gente não fica de olho.”

“Teve um dia que uma paciente entrou no banheiro – porque é difícil controlar – ela entrou no banheiro e a outra estava masturbando-a. Já aconteceu um caso com ela. Essa semana, também, teve homem com homem. Um beijou na boca do outro. Eu não tinha visto também. Aí, um senhor lá, essa semana, pegou a mão do homem mais novo, colocando... Não pôs pra fora, não, mas só colocou por cima da roupa mesmo. Ai a técnica de enfermagem que estava na convivência ficou horrorizada”.

Além do homossexualismo, também a automasturbação mostrou-se representada como ato vergonhoso e impróprio, configurando-a como prática que deve a todo custo ser evitada e proibida.

“Esse negócio de masturbação a gente teve que dar um jeito de, por exemplo, definir alguns limites, ajudar, falar: ‘olha, é dentro do quarto, é no banheiro, debaixo do chuveiro!’ Mas aí começou a gastar muita energia, e como ele não parava e a conta de luz foi ficando cara, a gente tirou a porta do banheiro mesmo, para um funcionário ficar vigiando. Só assim pra ele parar de masturbar!”

“Tem aqueles que têm um comportamento bizarro quanto a isso (o ato sexual), com animais, outros objetos, que causam às vezes algum transtorno, machucam ou adquirem alguma doença, mas graças a Deus nessa questão os casos mais bizarros são menores”.

O estudo de Barbosa (2011) revelou a existência de práticas sexuais com penetração dentro dos serviços de saúde mental e evidenciou que, muitas vezes, a prática da masturbação é adotada pelas pessoas com transtorno mental em decorrência, também, da impossibilidade de haver relação sexual com outra pessoa pela dificuldade que apresentam para ter parceiros e na manutenção de relações afetivas ou conjugais por tempos prolongados. Para Bozon (1995) e Monteiro (1999), a masturbação é uma prática que se constitui em fonte de prazer, uma vez que é possível de ser realizada independente de se ter parceiros e trazer baixo risco de infecção por doenças transmitidas sexualmente e sem proteção adequada.

Durante a análise das falas dos participantes, ganha destaque a postura de projeção que adotam ao descreverem os fatos e situações que ocorrem em seus

locais de trabalho. Sobre esse aspecto, estudos realizados por Meade; Sikkema (2007) e Petit; Rassial e Delaroche (2011) apontam que a projeção é um mecanismo de defesa, e utilizada também pelos profissionais sujeitos deste estudo. É notório, na análise dos grupos focais, que os sujeitos sempre atribuem ao outro (família, usuário, colega de trabalho, coordenador do serviço) a atitude, a ação indesejada. Poucos assumem falar de si mesmo ou que está falando de si mesmo, do que realmente faz ou deixa de fazer.

Ampliando essa discussão, pode-se dizer que é o deslocamento de um impulso interno para o exterior, ou de um indivíduo para outro: ‘aquilo que não é dizível por mim e de mim, eu coloco no outro’. Esses conteúdos projetados são, de modo geral, desconhecidos da pessoa que projeta, justamente porque tiveram de ser expulsos, para evitar o desprazer de encará-los. O profissional atribui ao outro um desejo próprio, ou atribui a alguém, algo que justifique a própria ação (BARROS, 1999; McKINNON; COURNOS; HERMAN, 2002; MEADE, 2006).

Assim, o profissional mantém-se afastado por não reconhecer os modos de expressão da sexualidade dessas pessoas como natural. Representa-a como diferente, negando-a e censurando-a por considerá-la anormal e, por isto mesmo, devendo ser controlada.

“Você tem que ficar de cima porque a sexualidade deles é aflorada demais, nunca vi coisa igual”.

“A questão da sexualidade na saúde mental é que é um grupo de pessoas um pouco diferente dos outros pacientes. Eles não são como nós”.

Estudos apontam a predominância de representações de “hipersexualidade” e busca intensa pelo ato sexual, relacionadas às pessoas com transtornos mentais (MIRANDA; FUREGATO, 2002, MIRANDA; FUREGATO; AZEVEDO, 2008). No

entanto, outras pesquisas negam a existência de “hipersexualidade1” pelo fato de

que há redução da libido com o uso prolongado de medicamentos psiquiátricos, havendo, ao contrário, anedonia e embotamento no que diz respeito à manifestação do desejo sexual (GOGNA; RAMOS, 1999; ALVES, 2003). Apesar de tal afirmação ser resultado de acompanhamento médico e pesquisas científicas sobre os medicamentos, pode-se afirmar que, por vezes, as representações do senso comum podem ser mais potentes no cuidado em saúde. Quando se analisa a rede de representações de profissionais, há que se considerar, conforme Giami e Veil (1997) o fazem, que esses profissionais, atores da prevenção e dos atendimentos, têm representações que se localizam no registro imaginário e perduram em suas experiências, como aquela da sexualidade anormal, influenciando no cuidado ao outro. Essas representações revelam-se, então, na proibição das manifestações e práticas sexuais pelos usuários assistidos:

“A gente tenta controlar a questão assim, de que não tenha ato [sexual] dentro do serviço e até a fantasia deles”.

“Assim, é difícil, muito difícil. A gente tenta sempre ter profissional na convivência, próximo, pra evitar esse tipo de conversa sobre sexo. A gente orienta. Até questão assim, fora, a gente tenta evitar esse tipo de comportamento”.

“Um dia eu falei assim: vocês estão dando beijo aqui dentro? Não pode”.

Sem vozes discordantes, nos grupos, ao se descrever essas práticas, pode- se afirmar que a preferência dos profissionais pela proibição das manifestações da

1. O termo “hipersexualidade”, neste estudo, deve ser entendido como uma representação trazida pelos profissionais participantes, que caracteriza a manifestação constante de desejo sexual e não a realização excessiva de relações sexuais pelas pessoas com transtornos mentais.

sexualidade das pessoas com transtornos mentais guarda estreita relação com o temor de não serem capazes de lidar com elas:

“Nós chegamos a conversar, e aí a gente achou melhor que não tivesse (que permitir atividade sexual entre os pacientes), porque senão todo mundo ia querer. Ia ser uma confusão danada. A própria doença faz com que a sexualidade deles seja esquisita e descontrolada”.

“Não, não dá, dentro do CAPS não é lugar pra isso: ficar beijando, abraçando. Já falei com eles pra fazer isso em casa! Lá dentro não pode”.

Em consonância, um estudo etnográfico nacional, realizado em duas instituições de referência em saúde mental do Estado do Rio de Janeiro (Pinto et al., 2007) acerca da sexualidade de pessoas com transtornos mentais e do HIV/Aids, com enfoque nos profissionais de serviços de referência em saúde mental, mostrou que esses consideram a sexualidade dos pacientes como sendo exacerbada, apresentando uma “hipersexualidade” pertencente ao quadro da doença, e afirmam ser “um problema dentro das instituições”.

Desta forma, essas representações persistem em forma de tabus, mitos, estereótipos e preconceitos em relação às pessoas com transtornos mentais e podem impedir que os profissionais de saúde acolham diferenças de forma solidária e apresentem cuidados integrais, que incluam o direito desses sujeitos a relações afetivas e sexuais plenas e saudáveis.

Cabe destacar que, independente da formação profissional dos participantes, houve hegemonia nas opiniões acerca da sexualidade de PTM, remetendo ao conflito em que se encontram de saberem da importância de proporcionarem bases para uma vida sexual saudável aos indivíduos que cuidam. Porém, ao trazerem sua vivência para o grupo, demonstram a adoção de uma postura contrária, com relatos que confrontam a fala inicial de que estas pessoas têm direito à vivência da sexualidade saudável.

“Eles (pessoas com transtorno mental) têm direito à sexualidade, lógico que eles têm”.

“Eu acho que a gente tem que lidar com a sexualidade deles de uma forma mais natural, como a gente lida com a nossa”.

“Acho que eles têm sexualidade sim, até porque é uma coisa fisiológica, não tem como a gente mudar”.

Assim, pode-se inferir que a norma, quando generalizada, é apresentada no discurso como algo considerado correto pelos profissionais, mas que não se aplica para um grupo específico, quando se refere às pessoas com transtornos mentais. Nesse caso, toma à frente representações sobre a doença mental que levam à repressão da sexualidade e ao medo de sua expressão.

Corroborando, o estudo realizado por Giami (2004) aponta que as regulações da sexualidade refletem a falta de correspondência entre o que se crê ser obrigado a fazer e o que desejaria fazer. Parece ser semelhante a posição que assumem os participantes deste estudo, apresentando posicionamentos contraditórios ao representarem a sexualidade e suas manifestações como algo natural e de direito de todos, mas relatarem posturas de negação e afastamento no cotidiano dos serviços de saúde mental em que atuam.

CAPÍTULO 6: REPRESENTAÇÕES SOBRE AS AÇÕES E REAÇÕES DOS