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As representações sociais do post mortem

Não saber o que ocorrerá após a vida ter seu fim é uma dúvida que perpassa as diferentes sociedades ao longo da história, sendo inúmeras crenças desenvolvidas a fim de darem respostas à inexorabilidade da morte. Como destaca Vernant,

não existe contexto social que não possua uma dimensão ‘humana’, ou seja, mental, não existe instituição que não implique, enquanto está viva, crenças, valores, emoções e paixões, todo um conjunto de representações e de sentimentos (VERNANT, 2009, p. 54).

Todavia, representar o desconhecido é talvez tarefa tão árdua quanto analisar os discursos construídos acerca dele. Ao contrário das práticas, que são mais concretas e determinadas, crenças são fluidas e variáveis, especialmente no caso da Grécia Antiga, que não possuía um dogma cristalizado (SOUVIRNOU-INWOOD, 1995, p.11). Como nos remete Zaidman, as crenças dessa sociedade eram compostas de tradições essencialmente orais97, presentes sobretudo nas obras literárias, chegando até nós apenas os vestígios dessas representações religiosas, que são “pouco a pouco reconstituídas e em perpétuo movimento”, sendo possível retirar dos textos apenas “pobres restos de um vasto naufrágio” (2010, p.17-18).

À vista disso, esse mundo imaginário deve ser analisado como um processo de bricolagem, no qual mitos ou ritos que pertencem a essas tradições são muitas vezes deslocados, reformulados e reinterpretados (SOUVIRNOU-INWOOD, 1995, p.24), não podendo ser fixados de maneira rigorosa e possuindo “liberdade suficiente para que as divergências nas tradições, nas inovações trazidas por certos autores não se constituam escândalo nem problemas do ponto de vista da consciência religiosa” (VERNANT, 2010, p. 190).

As percepções da vida após a morte, foco deste capítulo, não se tratam, dessa forma, apenas de representações espaciotemporais, mas igualmente de uma visão sociológica e antropológica, que se modifica de acordo com às circunstâncias sociais e culturais. Ainda assim, no âmbito das crenças religiosas, a criatividade dos poetas opera dentro dos parâmetros de

97 Devemos ressaltar que a fala em uma sociedade na qual a escrita não é muito difundida é um grande dispositivo

85 crenças estabelecidas (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.11) e muito raramente, como denota Dodds, um novo padrão de crenças apaga completamente o anterior (2002, p.181).

Destarte, possuímos como proposta evidenciar as maneiras pelas quais Homero e Eurípides construíram essas representações sociais em suas obras, dando destaque às crenças no além-vida, como na possível existência de uma alma e de um local para qual após a morte os falecidos se destinariam. A orientação teórica de Denise Jodelet nos auxilia a pensar de que forma determinadas crenças percorrem a sociedade, circulando nos discursos poéticos e desvelando processos cognitivos desse mundo grego.

Como aqui já citado, é inegável que as obras homéricas podem ser concebidas na sociedade grega como um arquitexto não apenas para Eurípides, mas para inúmeros expoentes da Literatura, História e Filosofia posteriores a ele. Ainda que não tenhamos conhecimento de nenhuma literatura prévia a Homero, é igualmente inegável que tudo aquilo pertencente ao universo dos mýthoi em suas obras não foi pura invenção de sua criatividade poética, mas que estavam presentes no seio de sua sociedade e até mesmo em crenças anteriores ao seu contexto de produção, sendo suas epopeias, assim com as tragédias euripidianas, parte de um processo

discursivo.

Desse modo, ainda que de maneiras peculiares, cada um desses poetas transmitia através de seus discursos questões conectadas às suas crenças, demonstrando-se como “epopeias, tragédias, poemas transmitem e transformam as crenças, alimentam assim a vida dos mitos e dos deuses que a concernem. Falam-nos das crenças que alimentam essa civilização e sua visão do mundo” (ZAIDMAN, 2010, p.18).

Porém, é inconteste que a presença dos mitos é bem mais evidente em Homero que em Eurípides. Analisando os discursos por eles proferidos em sua materialidade linguística, verificamos que Homero está em um contexto no qual a palavra mágico religiosa se faz seu guia. No Período Arcaico, como salienta Snell, o conhecimento toma forma de instituição mítica e as obras homéricas possuíam como conteúdo fundamental essa instituição (1992, p.12), tomando-a como realidade. Como destacado por Alexandre Moraes:

Homero e Hesíodo parecem ter sido os grandes responsáveis pelo estabelecimento de um verdadeiro manancial mítico que, reconhecido como fundante de uma mitologia helênica, fez com que os poetas se dedicassem a aprofundar os conhecimentos acerca deste passado (MORAES, 2010, p.39).

Através das epopeias, nas quais as Musas possuíam o papel de falar as verdades sobre esse universo mítico, marcado na memória dos indivíduos, “o homem torna-se capaz de ver

86 além de sua experiência humana”, atingindo pelo canto do aedo um mundo que está fora de seu alcance, um espelho do próprio cosmos e, consequentemente, de todo mundo que está além do visível, preservando um sistema específico de crenças (KRAUSZ, 2007, p.18 e 20). O contato com o divino, com o desconhecido, faz-se marco de suas obras, especialmente na Odisseia.

Já no caso das tragédias e do período no qual elas se desenvolvem, verifica-se que é o

lógos que se faz mais presente. A palavra mágico-religiosa passa a ser sobrepujada em

importância pelo pensamento racional, que começa a ser esboçado no seio da sociedade democrática ateniense (DODDS, 2002).

Segundo Vernant, é a tragédia que gera uma primeira sensibilização de transformar o homem em um ser político, um ser de ação, colocando questões sobre sua natureza, sua problemática, sua relação com seus atos (2002, p.374). Ela se dirigia ao homem dando aos elementos mitológicos uma nova leitura que promovia a racionalidade e a sensibilização com os questionamentos que vão surgindo em sua época.

Jaeger nos aponta que há um andar em direção a assuntos como ordem social e privada, na qual a exaltação dos mitos, dos deuses, heróis, é deixada de lado (2010, p.288). Questiona- se a tradição mitológica, confronta-se as representações religiosas antigas com os novos modos de pensamento, não havendo uma categoria única do religioso na tragédia (VERNANT, 2002, p.18). Porém, “o mito conserva sua importância como fonte inesgotável de criação poética” (JAEGER, 2010, p.288), ainda que tenha lugar no passado, sendo relatado de forma histórica. Mesmo sendo a alma da tragédia, como denota Aristóteles, os dados da tradição são utilizados artisticamente pelos poetas trágicos, neles inserindo seus debates e ensinamentos (ARISTÓTELES. Poética. XIV,1453 b, 21).

À vista disso, em Eurípides, verifica-se uma diminuição da atenção dada às questões

místicas e o foco é o homem e suas emoções, podendo ser visto o enfraquecimento da influência

ou da determinação divina nos atos praticados pelos mortais e o consequente fortalecimento da responsabilização de cada um por seus atos e escolhas, limitando-se a meras menções a esse mundo de crenças, sendo até mesmo os deuses postos sob dúvida em suas obras, mesmo que no agón de seus versos seja visto a eles o respeito98.

98 Segundo Codeço, “a ação humana não tem em si força bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem

autonomia bastante para conceber-se plenamente fora deles. Sem a presença e apoio deles, ela nada é; aborta ou produz frutos que não são aqueles a que visava” (2010, p.79). Ainda assim, Snell nos evidencia que é a partir da Guerra do Peloponeso que começam a existir processos jurídicos que se voltavam àqueles que professavam uma descrença nos deuses, como irá ocorrer mais tarde com Sócrates, condenado por ir de encontro ao pregado pela

87 O mundo dos mortos que se faz presente em Homero em diversos versos, tem nas obras trágicas sua descrição reduzida, ainda que traga novos elementos a respeito desse mito. As questões relacionadas à alma nas peças euripidianas ganham igualmente novo vigor, o que pode ser relacionado novamente ao foco dado ao homem como centro das vontades.

Portanto, cabe a nós, ao comparar essas obras e, consequentemente, seus períodos de composição, analisar as maneiras pelas quais as crenças se modificam ou se mantém.

3.1| Alma homérica e alma trágica: a psykhé em comparação

Ainda hoje, caso nos indaguemos sobre o que compreendemos sobre alma, múltiplas respostas poderiam surgir. Alguns falariam que isso é um conceito inexistente, que foge a lógica do real, outros que é a totalidade de nossas faculdades psíquicas ou que é o único elemento que se salva após a morte99.

Mesmo com tantos estudos, seja por parte das ciências biológicas, físicas ou psicológicas, é inegável que estamos muito longe de saber se nosso corpo é composto por algo que transcende o visível ou que vai além do racional. Grande parte das respostas dadas a essa pergunta surgem dos dogmas desenvolvidos pelas religiões antigas ou modernas, presentes no nosso dia-a-dia ou nos mitos do passado, que buscavam dar respostas especialmente ao que ocorreria após a vida ter fim, ao que sobraria de nosso corpo e atingiria outro plano, pois como refere-nos Rodrigues “a recusa da morte pela crença na sobrevivência do duplo em um outro lugar é talvez tão velha quanto o homem [...]” (2006, p. 34).

Entre os gregos antigos essa crença também se via presente. Já no final do século XIX, Erwin Rohde torna-se um dos pioneiros no estudo sobre aquilo que muitos chamam de alma na Antiguidade: a psykhé, conceito que de Homero a Platão sofreu mudanças de acepção, dependendo do contexto sociológico em que estava presente (VELASCO, 2006, p.21), e que se revela como um eixo em torno do qual giram muitas das atuais ciências do homem (REALE, 2002, p. 13).

À vista disso, desde Rohde, uma miríade de investigações voltou-se para a compreensão deste termo no contexto da Antiguidade grega, seja no campo da Filologia, da Literatura, da

99 Segundo Nicole Belmont, “a vida como característica dos seres vivos é representada nas culturas históricas e

tradicionais como uma entidade chamada ‘alma’, sem esquecer a extrema diversidade das representações desta última (movimento, respiração, sangue, duplo, sombra, nome, etc.); trata-se de uma entidade paradoxal no sentido em que desempenha a sua mais importante função, a função vital, só quando unida ao corpo, mas isso só é adequadamente constatado quando cessa esta função, no momento da morte, e ela abandona o corpo” (1997, p.44)

88 Antropologia ou da História. Realizava-se ou análises pontuais, buscando-se compreender o que a psykhé significa em Homero, por exemplo, ou análises diacrônicas, na qual investigava- se uma evolução do conceito ao longo dos períodos da sociedade grega, ainda que algumas obras, como as tragédias, fossem praticamente esquecidas nesses estudos.

Bruno Snell, em seu A descoberta do espírito (Die Entdeckung des Geistes - 1948), é, como citado, um dos estudiosos que se dedicou a investigar a maneira pela qual os gregos desenvolveram em sua cultura o que chamamos de pensamento humano, buscando-se o entendimento de suas faculdades psíquicas e supra-corpóreas – como é o caso da alma – e descrevendo como homem tornou-se um ser investigador e inquiridor. Para Snell, haveria um longo processo pelo qual essa sociedade antiga sofreu seu desenvolvimento do espírito, sendo diversas etapas perpassadas a fim de se apreender a natureza do homem e sua essência (1992, p.12).

Segundo o estudioso, a dualidade corpo/alma seria inexistente nas poesias épicas e trágicas (SNELL, 1992, p.28), sendo apenas consolidada com os estudos filosóficos de Platão. Ademais, conforme elucidado por Nicole Belmont, “até época bastante tardia, os Gregos não desenvolveram a ideia de uma alma imortal; a psique é o que dá vida ao corpo, é a vida, e desaparece quase completamente após a morte” (1997, p.44).

Contudo, são flagrantes as mudanças que encontramos nas acepções dadas ao termo ao compará-lo entre o gênero épico e trágico. Desse modo, assim como Snell, interessados em compreender a imagem que os helenos tinham de si mesmos, especialmente após a morte, realizar-se-á, no presente subcapítulo, uma análise em nosso corpus documental na qual busca- se relacionar a utilização de palavras conectadas a esses elementos intangíveis, como é o caso de psykhé, ao seu co-texto e contexto, buscando-se a inteligibilidade dos discursos, sua interpretação e compreensão (ORLANDI, 2012, p.26). Isso porque, como nos remete Orlandi, as palavras só possuem sentido a partir das formações discursivas em que se inscrevem, “palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes” (ORLANDI, 2012, p.43-44).

No que compete às obras homéricas, é inegável que são elas as que mais no trazem informações a respeito do que se entendia como psykhé no período de sua composição: 94 vezes mencionada na Ilíada e 131 vezes na Odisseia, a análise da utilização deste termo no gênero épico foi foco de atenção de inúmeros estudiosos ao longo do tempo, sendo as informações que obtemos sobre a concepção a ele dada muito mais vastas do que as encontradas em relação a Eurípides.

89 Nessas 225 menções ao termo, o primeiro fato que nos chama atenção é a multiplicidade de traduções a ele dado. Alma, sopro, sombra, vida, fumaça e espectro são algumas das palavras que tomam o lugar de psykhé nos textos em língua portuguesa100, que ao buscarem realizar uma

transcriação das obras101, afastam-se, muitas vezes, do sentido que elas assumem em seu contexto de aplicabilidade textual.

Todavia, uma verificação mais profunda nos usos do vocábulo psykhé nos versos homéricos remete-nos a apenas duas significações, que aqui serão explicitadas: 1) a própria vida do homem, que se faz presente em seu corpo, mas que sobre ele não exerce nenhuma função e 2) a alma dos mortos, isto é, o único elemento que sobreviveria ao fim das faculdades vitais e se dirigia ao domínio do Hades.

Na primeira das acepções, podemos verificar que a vida a qual a psykhé se refere é aquela que está perto de seu fim (REALE, 2002, p. 77), a que os heróis arriscam em batalha ou lutam para retirá-la de outrem. Heitor, por exemplo, possui uma psykhé, uma vida que é batalhada (HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 163-164) e por fim é extraída com afiado bronze pelas mãos de Aquiles (HOMERO. Ilíada, XXIV, v,754-5); Odisseu arrisca sua existência em seu

nóstos, “empenhado em/ salvar a vida [ψυχὴν] e garantir o regresso dos companheiros”

(HOMERO. Odisseia, I, vv. 3-5) e Diomedes priva seus inimigos da vida [ψυχῆς] que lhes pertence (HOMERO. Ilíada, XI, 334-335).

Do mesmo modo, além de arriscarem sua psykhé em combate, as personagens descritas por Homero a possuem como parte integrante de seus corpos. Aquiles, por exemplo, ainda que filho de uma deusa, é apontado como mortal, como detentor de uma alma por Agênor: “Mais forte que os outros homens/ todos é o Aquileu. Não se eu o enfrentasse ante/ a cidade? Sua pele, ao bronze pontiagudo/ é vulnerável. Dentro, há uma só psiquê. Dizem/ que é mortal. Mas concede-lhe a glória o Croníade!’” (HOMERO. Ilíada, XXI, vv. 565-569 - grifos nossos).

Outro caso em que podemos verificar a presença da psykhé em vida é em sua saída em momentos de desmaio. Andrômaca, ao descobrir acerca da morte de seu esposo Heitor, espanta- se e desfalece, tendo seus olhos eclipsados e caindo para traz, exalando a psykhé [ψυχὴν]

100Analisando o dicionário grego/francês Anatole Bailly e o dicionário etimológico de Pierre Chantraine, podemos

verificar que nesses o termo psykhé é traduzido por “força vital, vida, alma” (CHANTRAINE, 1968, p. 1294), “alma, sopro” (BAILLY, 2002, p. 2176). Ademais, sua etimologia seria derivada do verbo psykhein, soprar, o que se conectaria, como veremos, a sua saída do corpo após a morte.

101 A tradução de palavras tão antigas para nossas línguas modernas muitas vezes, como ressalta Reale, obriga “o

tradutor não só a traduzir o mesmo termo diferentemente, mas também, ao contrário, a traduzir da mesma maneira termos que no original são diferentes” (2002, p. 43), isto é, suscetível a mudanças pelos tradutores. O autor também nos alerta que nenhuma língua pode ser traduzida perfeitamente, já que seria necessário participar diretamente do mundo em que aquela linguagem é inserida (REALE, 2002, p. 46).

90 (HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 464-465). Do mesmo modo, quando os heróis são feridos em combate, suas psykhaí deixam por um momento seus corpos: “A vida [ψuχή] se lhe escapa do íntimo/ e seus olhos se ofuscam. Mas, soprando, Bóreas/ o espírito, a evolar-se quase, reanima/ e ele recobra alento [θυμóν]” (HOMERO. Ilíada, V, vv. 695-698).

Não obstante, durante o curso normal da vida do homem homérico, a psykhé detinha como seu único papel o de princípio vital, abandonando-o e sobrevivendo à morte (DODDS, 2002, p.14). Não há nenhuma menção nas obras do aedo em que a psykhé seja descrita exercendo alguma função dentro do homem ainda vivo, não possuindo nenhuma conexão física ou psicológica com ele (BREMMER, 1993, p. 16) e não tendo nada que ver com a alma que pensa e sente, significado que, como veremos, assumirá no século V a.C.

As atividades conscientes eram conectadas a outras almas – as quais Bremmer (1993) denomina de “alma do ego” e Rohde de “espírito” (ROHDE, 1983, p. 10) – que deixariam de existir no momento da morte. O eu interior nas epopeias homéricas estaria relacionado a um eu

orgânico, sendo os lugares do corpo102, como apontado pela estudiosa Giulia Sissa, como o

coração, diafragma e peito, entendidos como a causa e a sede dos movimentos afetivos, estando o comportamento social do homem grego pautado em uma “biologia das paixões” (SISSA; DETIENNE, 1990, p. 56).

Os sentimentos, o pensamento, a personalidade e a força do homem homérico vinham de diferentes partes do corpo e não da psykhé. Ao sentir nos versos épicos conectavam outros elementos essenciais, como thymós (θῡμός), nóos (νόος) e phrén (φρήν), levando-nos a depreender que “o homem homérico não conhece a alma do homem em sentido unitário, ‘mas multiplicidade de almas vitais ou almas funcionais, que correspondem às diferentes formas de manifestações da vida’” (REALE, 2002, p. 56)103.

Thymós é o elemento corporal mais citado nas epopeias, podendo ser compreendido

como o órgão do coração, mas especialmente como o sopro vital, a alma que anima os

102 Um fator interessante referente à palavra corpo em Homero é que não há um termo que o designe em suas obras

e sim apenas o cadáver ou os membros do vivo. O vocábulo σῶμα (soma) nunca fora utilizado nas epopeias como corpo do homem vivo, como será posteriormente no século V a.C., mas sim como seu cadáver (SNELL, 1992, p.24). Segundo Reale, o aedo exprimia o que nós chamamos de corpo com uma multiplicidade de termos e representações” (2002, p. 20), como melea ou gylia, que significam membros articulados pela força; demas, que se aproxima da tradução da imagem do homem, de sua estatura, forma, de sua figura exterior e chros, que pode ser traduzido como pele (REALE, 2002, p. 21,30 e 32/SNELL, 1992, p.24).

103 Ainda que haja diferentes elementos presentes no homem homérico que se responsabilizam por determinadas

funções em seu corpo, as diferentes capacidades psíquicas não se encontram claramente divididas entre estes órgãos e princípios vitais, destacando uma certa confusão nos limites que separam essas categorias (SNELL, 1992, p.25). Como destaca Bremmer, “os poemas homéricos são a culminância de uma tradição de composição oral unida a elementos de períodos diferentes. Sua coexistência implica que nós devemos estar preparados para encontrar diferentes estágios na evolução das palavras e conceitos sem sempre sermos capazes de distinguir com certeza entre elementos novos ou antigos” (1993, p.22).

91 guerreiros, mas os deixa após a morte, fugindo-lhe aos membros104. Igualmente, ele pode ser visto como a sede dos sentimentos, dos impulsos voluntários, das decisões e da inteligência105. Odisseu, por exemplo, no mar, tem seu coração [θυμόν], ferido por inúmeras dores (HOMERO.

Odisseia, I, vv. 3-4) e sente na alma “grande incontida revolta” (HOMERO. Ilíada, V, v.669-

675); Do mesmo modo, Menelau sente seu coração [θυμῶ] “dolorido” (HOMERO. Ilíada, VI, vv. 994-95) e Sarpédon recebe de Tlepólemo uma reprimenda por ser uma “alma covarde [κακὸς μὲν θυμός]” (HOMERO. Ilíada, V, v.644)106.

O thymós homérico seria igualmente responsável por aconselhar o homem e suas ações, como comer, beber ou assassinar, sendo apontado por Dodds como uma espécie de voz interna e independente (2002, p. 24) e por Werner Jaeger como uma alma-consciência – vinculada aos órgãos e processos corporais – ao contrário de psykhé, que poderia ser compreendida como uma

alma-vida, que deixa o corpo após a morte, mas não pensa, nem sente (1992, p. 87)107.

Já no que compete ao phrén, que pode se referir ao órgão físico diafragma108, as obras

homéricas o descrevem igualmente como sede de diversos sentimentos, como alegria e temor. Mente é outro significado dado à palavra (REALE, 2002, p. 65), demonstrando-se como a cerne do intelecto. Porém, a capacidade de pensar, de discernir, o intelecto em si, teria outro elemento, de caráter imaterial, como responsável: o nóos, “o órgão mais elevado do homem, e também dos deuses” (REALE, 2002, p. 67), sendo raramente conectado a sentimentos.

Para mais, esses órgãos poderiam ser influenciados de maneira direta por forças divinas, isso porque os homens homéricos ainda não detinham a consciência de possuir na sua própria

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