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As representações sociais da morte na literatura grega:

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

As representações sociais da morte na

literatura grega:

uma análise comparada entre Homero e Eurípides

Bruna Moraes da Silva

Rio de Janeiro 2015

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As representações sociais da morte na literatura grega:

uma análise comparada entre Homero e Eurípides

Bruna Moraes da Silva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa

Rio de Janeiro 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

As representações sociais da morte na literatura grega:

uma análise comparada entre Homero e Eurípides

Bruna Moraes da Silva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.

__________________________________________________________ Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa (Orientador)

__________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes

__________________________________________________________ Prof.ª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante

Rio de Janeiro 2015

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Agradecimentos

Meus primeiros agradecimentos são dados a Deus por sempre me guiar, me proteger e me ensinar a superar os obstáculos da vida. Agradeço, do mesmo modo, aos meus pais, que continuamente me deram apoio em todas as etapas de minha caminhada pessoal e acadêmica, assim como a todos meus familiares.

Ao meu orientador Fábio de Souza Lessa, pelo suporte desde a graduação e pela força de vontade de ajudar seus orientandos, seja dentro ou fora da universidade. Sou muito feliz pelo companheirismo que construímos.

A minha querida amiga Renata Cardoso de Sousa, que está sempre ao meu lado quando preciso. Aos professores Alexandre Moraes, Regina Bustamante e Deivid Valério Gaia, que acrescentaram muitíssimo em minha jornada, auxiliando-me sempre que necessário: o apoio de vocês foi fundamental para seguir escrevendo. A Tatiana Gandelman, por todo o conhecimento que nos levou acerca do grego e pelo seu jeito simples e carinhoso de ser.

Agradeço, do mesmo modo, àqueles que estão ao meu lado no dia-a-dia, especialmente a meu namorado Gabriel Mendes Gouvêa e ao seu constante otimismo, ensinando-me que “tudo vai dar certo”. Seu amor foi essencial em meu caminho. A Joana Pra Baldi, pelo carinho que me dedicou quando mais precisei. A Tiago Miquelino, pelos conselhos e, por desde 2008, ouvir acerca de meus “greguinhos”.

Ofereço, igualmente, meus agradecimentos à secretaria do PPGHC e sua solicitude quando necessitei de ajuda e também a CAPES pelo apoio financeiro, que me auxiliou nos custos provenientes de minha pesquisa ao longo desses dois anos.

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Valar Morghulis – Todos os Homens Devem Morrer

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Resumo

Na presente dissertação, analisamos, em perspectiva comparada, as representações

sociais da morte e do pós-morte nas epopeias de Homero – Ilíada e Odisseia – e nas tragédias

de Eurípides – Alceste, Hécuba, Troianas e Ifigênia em Áulis – de modo a compreender as singularidades, repetições e diferenças em relação ao nosso campo de estudo. Através da metodologia comparada proposta por Marcel Detienne e da Análise de Discurso, debatida nos estudos de Eni P. Orlandi, observamos como os elementos tanáticos presentes nas obras estudadas são capazes tanto de revelar questões das sociedades em que se inseriam quanto desvelar o que o fim da vida representa para elas.

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Abstract

In this dissertation, we analyse, based in comparative perspective, the social

representations of death and after death in Homer's epics – Iliad and Odyssey – and in

Euripides’ tragedies – Alcestis, Hecuba, Trojan Women and Iphigenia at Aulis – in order to understand the singularities, repetitions and differences in relation to our field of study. Using the comparative methodology proposed by Marcel Detienne and the Speech Analysis, discussed in studies of Eni P. Orlandi, we observe how the tanatical elements in the studied works are able both to reveal issues of the societies that they were part of as to unfold what the end of life represents for them.

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Sumário

INTRODUÇÃO _________________________________________________________ p. 10 CAPÍTULO 1| Morte épica e morte trágica: por que representá-las? ____________ p. 27

1.1| Ser herói, fazer-se exemplo ______________________________________________ p. 29 1.2| Da morte nos palcos à morte na pólis ______________________________________ p. 39

CAPÍTULO 2| Entre elogio e lamento: o papel dos vivos perante a morte _________ p. 54

2.1| A discursividade homérica e euripidiana: seus contextos funerários ______________ p. 56 2.2| O géras thanónton: responsabilidade dos vivos e merecimento dos mortos ________ p. 62 2.2.1| O lamento e a comunicação da dor da perda _________________________ p. 66 2.2.2| A morte como um processo ______________________________________ p. 74

CAPÍTULO 3| As representações sociais do post mortem ________________________ p. 84

3.1| Alma homérica e alma trágica: a psykhé em comparação ______________________ p. 87 3.2| O mundo dos mortos entre o Homero e Eurípides __________________________ p. 103

CONCLUSÃO ________________________________________________________ p. 115 REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS_____________________________________ p. 120

DOCUMENTAÇÃOESCRITA_____________________________________ p. 120

OBRAS DE REFERÊNCIA ________________________________________ p. 120 BIBLIOGRAFIA INSTRUMENTAL E ESPECÍFICA _________________ p. 121 WEBGRAFIA ___________________________________________________ p. 130

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Introdução

A morte é um fenômeno que suscita debates, medos, crenças e tabus ao longo dos milênios de nossa história. Sabemos que a ela todos estão fadados, ainda que cada sociedade possua uma forma de representar esse momento, cercando-se de elementos simbólicos para caracterizá-lo, integrando-o em seu universo mental e em suas práticas institucionais (VERNANT, 1988, p. 34).

Desde a década de 1950, em meio aos estudos desenvolvidos na Escola dos Annales, a questão da morte vem atraindo atenções da Ciência Histórica. Como apontado por Lebrun, é através da formulação de Lucien Febvre que se inicia “a abertura de uma vasta investigação sobre os sentimentos fundamentais dos homens e suas modalidades” (FEBVRE apud LEBRUN, 1993, p.564). Sendo assim, uma série de trabalhos que dizem respeito a essa temática começam a ser desenvolvidos, influenciados especialmente pelos estudos demográficos e das mentalidades que a Nova História propunha.

Nomes como Pierre Goubert (1952), Louis Henry (1956) e François Lebrun (1971), destacaram-se nos estudos acerca da mortalidade nas sociedades, já outros como os de Philippe Ariès (História da Morte no Ocidente - 1975) e Pierre Chaunu (La Mort à Paris - XVIe et XVIIe

siècles - 1978), focaram-se nas atitudes do homem diante da morte (LEBRUN, 1993, p.564-5).

Estudiosos ligados aos campos da Arqueologia, Antropologia e Linguística, também realizaram análises profícuas a respeito do fim da vida. Trabalhos como o de Edgar Morin (O homem e a

morte – 1970) e do antropólogo brasileiro José Carlos Rodrigues (O tabu da morte – 1983),

utilizado como base teórica neste trabalho, são frequentemente destacados nas investigações dessa questão.

À vista disso, na presente dissertação, que possui como foco de estudo a sociedade grega antiga, igualmente fazemos da morte nosso objeto central. Evidenciando-a como um evento biológico socialmente refletido, visamos a análise, em perspectiva comparada, das

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Odisseia1 – e nas tragédias de Eurípides – Alceste (438 a.C.)2, Hécuba (425-4 a.C.)3, Troianas (415 a.C.)4 e Ifigênia em Áulis (405 a.C.)5.

Assumindo uma abordagem antropológica, pautada especialmente nos estudos de José Carlos Rodrigues (2006/1991), como citado, focar-nos-emos em como os indivíduos e grupos, representados nessas obras, relacionam-se com esse momento, dando destaque as práticas e crenças presentes em nosso corpus documental e verificando os perigos sociológicos que o desaparecimento dos indivíduos comporta (RODRIGUES, 1991, p. 11)6.

Desse modo, objetivamos não apenas analisar nossa documentação em sua superfície

linguística, mas temos como proposta destacar o papel social dos discursos analisados dentro

da comunidade em que eram cantados (epopeias) e representados (tragédias), evidenciando de que maneira o trato com a morte nelas presente é capaz de revelar questões das sociedades que as compuseram, mas também de desvelar o que o fim da vida representa para elas. Defendemos ao longo deste trabalho que muitos dos costumes e crenças a respeito da morte estão representados nos gêneros épico e trágico gregos, sendo a literatura documentação profícua para o trabalho do historiador7.

1 Analisamos essas obras a partir das seguintes traduções: a de Haroldo de Campos (bilíngue), comparando sempre

que necessário com a de Carlos Alberto Nunes, para a Ilíada; e a de Donaldo Schüller (bilíngue), também realizando comparações com a de Trajano Vieira, para a Odisseia. Na maior parte dos casos, optamos por Haroldo e Schuller. Porém, quando não fizermos uso delas, apresentaremos em nota de rodapé a escolha por nós realizada.

2 Alceste, analisada por nós através da tradução de David Kovacs (bilíngue), possui como tema, em linhas gerais,

o sacrifício feito pela personagem que dá nome a obra ao aceitar morrer no lugar de seu marido Admeto. Sendo assim, nosso objeto é tema central dessa representação, envolvendo não somente o momento do fim da vida, através do luto e do funeral, mas também as crenças relacionadas ao pós-morte, com a presença de criaturas como Thánatos e Caronte.

3 Hécuba, obra que analisamos por intermédio da tradução de Christian Werner (Biblioteca Martins Fontes, 2004),

conjugado ao uso da plataforma Perseus para a consulta do texto em grego, possui como contexto o período pós-guerra de Troia. A questão central é o sacrifício de Polixena, filha da personagem que intitula a tragédia, a pedido do phantásma de Aquiles. Há ainda a presença de um assassinato tramado e de diversas representações de luto.

4 Troianas, obra igualmente analisada através da tradução de Werner (Biblioteca Martins Fontes, 2004) junto a

base Perseus, possui como temática a escravidão das mulheres troianas após a Guerra de Troia, a tristeza de Andrômaca ao ver seu filho Astiánax assassinado e o debate de Menelau sobre matar ou não sua esposa Helena. Ela destaca a perda de familiares, luto, além da temática da guerra estar implícita ao destacar a escravidão imposta às mulheres do lado perdedor do conflito.

5 Ifigênia em Áulis, para qual utilizamos a tradução de David Kovacs (bilíngue), Harvard University Press,

relata-nos sobre o sacrifício de Ifigênia, exigido pela deusa Ártemis e planejado por seu próprio pai, Agamêmnon, objetivando que os navios aqueus pudessem zarpar para Troia. Novamente, o tema do sacrifício é visto, assim como a coragem da personagem principal ao enfrentar sua morte. O tema da guerra também está presente, demonstrando debates que podem ser conectados aos problemas que a pólis ateniense vinha passando.

6 Conforme elucidado por Nicole Belmont, no volume vida/morte da Enciclopédia Einaudi, “Desde logo

percebe-se que, para falar das reprepercebe-sentações da vida e da morte numa dada cultura, há que apelar progressivamente para a quase totalidade dos elementos desta cultura: a mitologia, os ritos e as cerimônias, a organização social, as práticas diárias, etc.” (1997, p. 14).

7As análises de Antônio Celso Ferreira (A fonte fecunda) e Antônio Cândido (Literatura e sociedade), possibilitam

reforçar nossa posição a respeito da validez da documentação literária para o entendimento das sociedades. O primeiro autor defende que a literatura possibilita uma via de acesso ao universo cultural e valores sociais dos homens. Além disso, destaca que, para fazermos uso dela em um trabalho histórico, devemos verificar a que público se destina, que papel cumpre, que representações do mundo cria (FERREIRA, 2009, p. 61 e 74). Antônio

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12 A escolha pelas obras de Homero foi suscitada pela constante presença em seus versos de cenas de mortes. Como recorda-nos Garland, é pelo aedo8 que “nossas mais antigas e completas imagens da morte grega são providas” (1985, p.1), fazendo questão de enfatizar em suas obras a superioridade dos deuses9 e a condição mortal do homem10, “que feito folhas viçam por/ um tempo, florescendo, nutridos de frutos, / mas, vida breve, logo perecem, exânimes” (HOMERO. Ilíada, XXI, vv. 462-466).

A Ilíada, ao narrar as diversas batalhas durante a Guerra de Troia11, confronta-nos a todo o momento com a morte de guerreiros, assim como seus funerais e até mesmo o contato com aqueles que já não se encontravam mais em vida, com a alma12, a psykhé dos mortos – temas de análise na presente dissertação. A Odisseia também não deixa de perpassar nosso objeto: apesar de não ter seu cenário composto pela guerra, demonstra-nos igualmente homens deixando a vida e, especialmente, em dois de seus Cantos, o mundo dos mortos e como aqueles que lá se encontravam agiam. Como bem definiu Vernant, no que compete à morte, a Ilíada é uma cena guerreira, e a Odisseia, infernal (1988, p. 60).

Analisando essas epopeias – que têm como característica principal a narrativa em versos sobre os grandes feitos dos heróis – foi possível verificar a importância de se demonstrar o fim da vida para o público que ouvia o aedo: a aristocracia guerreira. Esta, além de se deleitar com as narrativas acerca de sua genealogia, educava-se através de seus versos. A poesia oral, como

Cândido também nos aponta, ao longo de seu trabalho, que a realidade social é componente da estrutura literária e que a integridade desta deve ser entendida através de uma interpretação dialética entre texto e contexto, tendo o poeta o papel de combinar e criar ao devolver sua obra à realidade. Ademais, o estudioso dá destaque ao papel social da literatura, verificando nela a produção de efeitos práticos sobre a sociedade, reforçando, por exemplo, valores dessa (CANDIDO, 2000, p. 28 e 30).

8 Ser aedo na Grécia Antiga era exercer o ofício de compor e cantar narrativas heroicas, sendo essas dotadas de

um caráter divino, visto que seriam as Musas as responsáveis por levar a esses homens o conhecimento.

9 Schein destaca que “Homero foi responsável pela visão religiosa, característica em todo o período arcaico e

clássico, que enfatizava a ignorância humana e impotência em face de uma ordem cósmica mais alta mesmo quando fazia os seres humanos os assuntos e objetos de toda ação significante, sofrimento, e especulação” (1984, p. 62).

10 Segundo Vernant, “Os deuses são os athánatoi, os imortais; os homens, os brótoi, os perecíveis, fadados às

doenças, à velhice e a à morte” (2006, p. 45).

11 Não podemos afirmar que a guerra ocorreu, apenas que Tróia existiu e que teria sido possíveis conflitos entre

Aqueus e Troianos, especialmente por motivos comerciais, como o desejo de pilhagem e a busca de novas rotas comerciais e riquezas, pois a cidade recebia grande fluxo de bronze. A possibilidade de uma guerra causada por um rapto de uma mulher, como é descrito como motivo na Ilíada, é mais remota. A localização de Troia também foi motivo de grandes debates, apesar do fato de que “os gregos da época clássica (500-323 a.C.) e mesmo da época helenística (331-23 a.C.) e romana não tinham dúvida alguma com relação a localização de Tróia [...]” (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 23). Onze Troias foram encontradas pela arqueologia, sendo a mais provável para as cenas da guerra da epopeia a de número VII A e a VI. Porém, como ressaltado por Vidal-Naquet, “é impossível fazer coincidir uma epopeia com uma escavação. [...] É melhor ler a Ilíada ou contemplar uma coleção de vasos gregos nos quais se representaram diversos episódios da guerra legendária” (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 25).

12 Apesar da pluralidade de significados dados ao termo alma, nós o designamos como o único elemento que sobreviveria a morte e que poderia, ou não, realizar determinadas funções no corpo do homem enquanto vivo,

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13 nos remete Krausz, “traça paradigmas de comportamento, padrões do que é e do que é aceitável, e justificativas para modos específicos de organização social” (2007, p.20), isto é, reverbera, nos discursos nela presente, uma série de normas a serem seguidas em sociedade.

Ante a morte, essas normas aparecem especialmente no momento em que os heróis demonstravam a honra e a coragem que o homem deveria ter ao enfrentar esse momento, buscando a glória eterna entre seu povo através de seus atos e, inclusive, de uma bela morte13. O canto de Homero também lembrava à sociedade as atitudes que deveriam ser seguidas em relação ao morto, como o luto e a realização de um funeral digno, além de conter as diferentes crenças em relação ao pós-vida, como citado. De acordo com Alexandre Moraes,

Neste cenário, as razões que transformaram a questão da morte em um tema privilegiado para o canto dos aedos são plenamente compreensíveis. É inegável que as audiências, que conviviam com o risco de uma morte inesperada, estivessem atentas aos discursos que pudessem agregar algum tipo de valor a esse momento limite do curso de vida (MORAES, 2013, p.99).

Todavia, a existência de Homero, unida a diferentes questões acerca da composição de suas obras, assim como seu período de criação e a possibilidade de terem sido produzidas por indivíduos diferentes, faz parte de um grande debate historiográfico iniciado no século XVIII, existente e não concluído até hoje: a chamada Questão Homérica.

Em relação a unidade de suas obras, múltiplas questões são postas em pauta. É inegável que a Ilíada e a Odisseia foram copiadas e recopiadas ao longo dos séculos, sofrendo interpolações e mudanças em sua forma. Desde os trabalhos de Friedrich August Wolff (1795), questiona-se a respeito da validade dos versos épicos devido às inconsistências encontradas, levando a teóricos como Milman Parry e Albert Lord a defenderem que o sistema complexo de fórmulas existentes nas epopeias não poderiam ser conectadas a apenas um indivíduo, sendo as inconsistências dos poemas entendidas como resultado da performance dos poetas, pois ao transmitirem suas obras de maneira oral, não poderiam realizar correções (MORAES, 2013, p.30). Já outros estudiosos, denominados unitários, recusariam permitir que as inconstâncias encontradas no texto modificassem a impressão geral sobre eles.

Ainda assim, apesar de não podermos comprovar a existência de apenas um Homero, acreditamos, tal qual Sourvinou-Inwood, que “tenham eles sido compostos por um poeta ou dois, as duas versões finais dos poemas são intimamente conectadas e são os produtos do

13 A bela morte, conceito muito debatido por Vernant (1978), consiste, como analisaremos em nosso primeiro

capítulo, em morrer jovem em campo de batalha, como um homem valoroso, demonstrando toda virilidade, honra e coragem a fim de que a beleza juvenil do guerreiro fosse remorada e servisse de exemplo para gerações vindouras.

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14 mesmo ambiente cultural” (1995, p. 13), sendo o fato de maior relevância para nós saber que os gregos antigos, em sua maioria, como ressalta Colombani, estavam certos de que a composição fora feita apenas por apenas um poeta (2005, p. 6) e que “não apenas o texto existe, mas até mesmo a recepção definitiva dos poemas homéricos é historicamente atestada, pronta para ser estudada empiricamente” (NAGY, 1996, p. 8).

No que compete ao contexto em que foram produzidas, ainda que seja sabido que a

Ilíada e a Odisseia foram fixadas na escrita no século VI a.C., sob a tirania de Pisístrato,

diferentes teses discutem a respeito de qual seria sua real época histórica. A partir das escavações de Schlieman (1881), por exemplo, conectava-se a criação dessas poesias ao período do evento que Homero narra em suas obras: a Guerra de Troia – usualmente localizada no final da Idade de Bronze, também denominada Estrutura Palaciana e Sociedade Micênica, abrangendo os séculos XV-XII a.C., aproximadamente (ROMILLY, 2001, p. 11).

Todavia, nota-se que esse núcleo micênico é diminuto (FINLEY, 1982, p. 43), além de verificarmos nos versos épicos a presença de elementos posteriores a essa época, como a prática da incineração dos mortos – contrapondo-se a inumação realizada no período dos palácios – e a metalurgia do ferro – incomum na sociedade na qual seus heróis teriam vivido, que tinha o bronze como metal predominante.

A partir desses dados, a teoria de que as obras homéricas foram criadas no Período Micênico cai por terra, surgindo outras teses como a de Moses Finley (1982), na qual defende-se que os séculos mais prováveis para a composição dos versos épicos defende-seriam o X e o IX a.C., balizando sua hipótese na prerrogativa de que nas obras épicas “não há Jônia, não há dórios de quem falar, não há armas de ferro, não há cavalaria nas cenas de batalha, não há colonização, não há mercadores gregos, não há comunidades sem reis” (FINLEY, 1982, p. 45).

Outros autores como Snodgrass (1971) e Nagy (1996), sustentam que o autor dessas epopeias teria sedimentado suas obras sobre uma longa tradição oral, nelas inferindo tradições de diferentes períodos, não se podendo afirmar com garantia sua época de composição e até mesmo retirando a validez dessa literatura como documentação histórica, recusa pronunciada por Coldstream (1997, p. 18).

Todavia, grande parte dos helenistas, voltados para os estudos dos versos épicos, situam essas obras no século VIII a.C., como é o caso de Redfield (1975) e Ian Morris (2003), hipótese com a qual igualmente nos posicionamos, ainda que não tomemos como norte a totalidade dos

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15 argumentos propostos pelos autores14, mas sim as relações que podemos estabelecer com esse período às obras atribuídas a Homero.

O século VIII a.C. foi o início de grandes mudanças para a sociedade grega antiga, especialmente na questão política. Vemos a formação da pólis, uma nova vida em sociedade na qual os homens se uniam para decidir sobre diferentes questões em assembleia e na qual os reis estavam perdendo o seu poder. Igualmente, esta foi a época em que os helenos experimentaram um significativo crescimento demográfico, diminuíram as viagens de longa distância – explorando os mares e dando início as colonizações e ao contato com o Oriente – e também desenvolveram os santuários pan-helênicos, exultaram o passado aqueu e os heróis através de cultos (CARLIER, 2008, p. 59-60).

As obras homéricas, ainda que não possa ser vistas como retratos desse período, não deixam de reverberá-lo em seus versos. Segundo Neyde Theml, elas se inserem no conjunto de fenômenos de mudança da sociedade durante o VIII século a.C., quando a expressão da língua e da fala tiveram como resultado inovador a forma épica (1995, p. 147).

Na Ilíada e na Odisseia, ainda que o centro do poder seja o palácio, podemos encontrar estruturas que estarão presentes na pólis15, como a assembleia, que se reúne por mais de uma

vez nas obras e dá lugar àquele que tem o cetro para expor suas opiniões, sinais de uma incipiente iségoria; e também a contestação dos reis, sendo seu poder alvo de disputas e discussão (CARLIER, 2008, p.246), como é possível verificar ao longo da Ilíada através das contestações – especialmente por parte de Aquiles – àquele que seria o líder a expedição aqueia, Agamêmnon, o basileus de Micenas.

Na Odisseia, segundo Pierre Carlier, representa-se “uma fase mais aguda do conflito entre o rei e certos aristocratas. A conciliação das exigências opostos do rei e dos basileis parece ter-se tornado difícil. Os antigos fundamentos da autoridade real, a hereditariedade, a investidura divina de uma família, já não parecem ser admitidos de forma unanime (embora o desfecho do conflito em Ítaca os confirme)” (2008, p. 247). Ainda nessa epopeia, podemos igualmente verificar a citada expansão para o mar e o contato com diferentes povos, conectando-se ao caráter proto-colonizador de Odisseu, defendido por Irad Malkin (1998, p. 3).

Ademais, ainda que a aristocracia não houvesse perdido seu poder, vemos o início da desestabilização dessa camada social: com o surgimento da pólis, a abolição dos privilégios e

14 Ian Morris, por exemplo, considera os épicos homéricos como puro “arcaísmos e fantasia” (2003, p. 45), posição

que de nenhum modo nos afiliamos.

15 A épica, apesar de já trazer o termo pólis, com ele não quer dizer respeito à organização política, social,

econômica e administrativa que encontramos no Período Clássico. O termo designa vários elementos na obra, como é o caso de lugares e ruas.

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16 distinções começam a ser destacadas como a nova ideologia, demonstrando que esses poemas são a expressão particular de um ponto de vista aristocrático que tendia ao colapso com as mudanças estruturais que caracterizavam o século VIII a.C. (MORRIS, 2003, p. 45), sendo neles necessário destacar a ética guerreira aristocrática a fim de legitimar sua posição, assim como elevar seus heróis a uma exaltação que pode ser aproximada dos cultos existentes em sua época.

À vista disso, cremos que a sociedade descrita em Homero, ainda que contenha características próprias, que mesclem a aristocracia micênica com elementos do surgimento

políade, e não possam ser conectadas diretamente ao período histórico que supostamente o

poeta se encontra, não deixa de imiscuir questões do cotidiano do aedo, sendo visto diferentes costumes do início do Período Arcaico (VIII-VII a.C.) fazendo parte da vida dos heróis mitológicos.

Já no caso das tragédias de Eurípides – que não possuem, assim como Homero, dúvidas acerca de sua composição ou época de criação16 – o principal motivo que nos levou a

compará-las com as epopeias, além da direta referência feita aos mitos e personagens dessas obras, foi o contexto em que elas se inseriam: o Período Clássico ateniense (V - IV a.C.). A democracia, a transformação do homem em um ser político, o comprometimento com a coletividade, o gosto pelo debate e o espírito crítico são algumas das características que podemos destacar para essa época e que também se revelam nas obras do tragediógrafo.

Desse modo, defendemos, assim como diversos autores17, que através de suas personagens, Eurípides colocava, no palco, os questionamentos e os problemas da pólis e, para o caso das tragédias por nós escolhidas, um em especial: a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)18. A atmosfera de morte e desilusão que esse conflito gerava em Atenas pode ser vista nos temas dessas obras, rendendo a Eurípides tanto o título de pacifista, apresentando os males que a guerra pode causar, quanto o de patriota19, evidenciando a necessidade de se sacrificar pela comunidade (ROMILLY, 1999, p.103). Como nos remete Martha C. Nussbaum,

16 No que compete ao gênero literário do qual faz parte, não vemos a mesma configuração de poesia épica,

especialmente no que compete a sua duração. Mais curtas, feitas para serem apresentadas durante o festival das Grandes Dionisías, elas faziam parte de um gênero teatral, que além de servir como entretenimento para o público, levava “uma interpretação da vida diária, das práticas sociais que produziam o cotidiano” (CODEÇO, 2010, p. 16), demonstrando o que deveria ser seguido para o bem da pólis.

17 Podemos citar Romilly (1999), Vernant e Vidal-Naquet (2008) e Maria de Fátima Souza e Silva (2005), por

exemplo.

18 A peça Alceste é a única que não foi criada durante o conflito da Guerra do Peloponeso. Todavia, como veremos,

os conflitos entre Atenas e Esparta já eram iminentes em sua época de composição.

19 Devemos deixar claro que a noção de pátria é inexistente no período por nós estudado. Como elaborado por

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Uma tragédia não revela os dilemas de suas personagens como pré-anunciados; ela os mostra em sua busca por aquilo que tem pertinência moral; e nos compele, como intérpretes, a ser igualmente ativos. A interpretação de uma tragédia é mais confusa, menos definida e mais misteriosa do que a avaliação de um exemplo filosófico; e mesmo que a obra já tenha sido interpretada, permanece inesgotada, sujeita à reavaliação, de um modo tal que não ocorre com o exemplo(NUSSBAUM, 2009, p. 13).

Analisando nosso objeto de estudo neste gênero literário, verificamos que as batalhas são deixadas de lado para darem lugar a assassinatos tramados, sacrifícios humanos20 e suicídios (esses mais mencionados que realizados). Através de suas vítimas, Eurípides demonstrava como o fim da vida levava tristeza àqueles que ficavam e, especialmente, a preocupação com os mortos (CANDIDO, 2005, p. 133). Isso porque, como ressalta Maria de Fátima Souza e Silva, “é para o destaque das reações humanas, da vítima e dos parentes, que vão as atenções do poeta” (2005, p.129).

Ademais, no que compete às crenças existentes em relação a vida após a morte, Eurípides não deixa de nos revelar questões referentes a essa temática, sendo inegável que muito do que verificamos em suas peças conectadas a ela fazia parte da tradição mito-poética da qual Homero haveria se inspirado e representado em suas obras, sendo estas arquitextos para Eurípides, isto é, portadoras de “um estatuto exemplar, que pertencem ao corpus de referência de um ou de vários posicionamentos de um discurso constituinte” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 64).

Todavia, ainda que ambos os poetas fizessem parte de um processo discursivo mais amplo, as obras trágicas, além de adaptarem seus mitos ao que se queria passar para o público, demonstravam as mudanças que o Período Clássico denota acerca do das crenças no post

mortem, demonstrando novos elementos conectados ao mundo dos mortos, por exemplo, assim

com as mudanças decorridas em relação a compreensão acerca dos processos vitais e dos elementos supra-corpóreos, como é o caso de psykhé.

À vista disso, demonstrando as práticas e crenças funerárias em suas obras, defendemos que, assim como no caso de Homero, o espaço teatral comunica e educa, tornando-se um meio de se expressar frente aos outros. As peças de Eurípides tinham um forte valor instrutivo e

considerações institucionais, a palavra pátris, já encontrada desde Homero, não significaria o sentindo pelo qual hoje conhecemos e sim o apego aos ancestrais, a terra e os laços entre membros da comunidade.

20 O tema do sacrifício humano é muito abordado por Eurípides, como veremos, enquanto em Homero só aparece

uma única vez, quando Aquiles sacrifica 12 jovens como libação ao amigo morto, Pátroclo (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv. 180-183).

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18 levavam em suas encenações os ideais de cidadania a serem seguidos pelos helenos, assim como os questionamentos presentes em sua época.

Assim sendo, diante desse corpus documental, podemos verificar como seu conteúdo perpassa nosso objeto de estudo, levando-nos a evidenciar, como é proposto através da História Comparada, as singularidades, repetições e diferenças apresentadas em relação à morte por cada um dos poetas.

A fim de estabelecermos essa comparação, escolhemos como base metodológica da presente pesquisa os procedimentos propostos pelo antropólogo Marcel Detienne, sintetizados em sua obra Comparar o incomparável (2000), na qual evidencia tanto conceitos-chave para se analisar comparativamente quanto realiza uma crítica, por vezes bastante ácida, aos paradigmas metodológicos lançados por Marc Bloch. Isso porque, apesar do medievalista ter travado uma luta contra a chamada história historicizante – na qual a singularidade dos fatos e o foco no

nacional postulavam-se como marco – recebe críticas por não ter realmente rompido com as

práticas históricas existentes em sua época.

Para Bloch, aplicar o método comparativo no quadro das Ciências Humanas consistia em buscar as semelhanças e diferenças que apresentam duas séries de natureza análogas (1930, p. 31), ou seja, analisar “sociedades vizinhas, contemporâneas e de mesma natureza” (DETIENNE, 2000, p. 35). Detienne, ao contrário, influenciado pela antropologia, inaugura um

comparativismo construtivo, buscando relacionar as representações culturais das sociedades,

independente da distância que se encontrem, seja ela no tempo ou espaço (2000, p. 47), criticando a máxima de só se poder “comparar o que é comparável”.

Defendendo que produções culturais, costumes, leis, mitos e ritos, devem ser o foco da investigação dos pesquisadores, o helenista enfatiza que através do estudo comparado devemos nos tornar tão familiares do pensamento ou da cultura analisada, que possamos “fazer como se nela estivessem, como se pensassem com aquele pensamento” (DETIENNE, 2000, p. 44).

A partir disso, propõe alguns procedimentos metodológicos a serem seguidos, como é o caso da construção de comparáveis que, nas palavras do autor, são relações em cadeia com uma escolha inicial (DETIENNE, 2000, p. 58), ou seja, problemas definidos a partir do que se deseja analisar, de uma categoria estabelecida pelo pesquisador.

Na presente pesquisa, partindo da categoria morte, definimos como comparável o

processo discursivo da elaboração de um código de conduta ante da morte, verificando-os nas

obras de Homero e Eurípides. A partir dessas definições, descortina-se um amplo campo de estudo que possibilita a busca por proximidades e distanciamentos entre um gênero literário e

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19 outro, objetivando-se “descobrir formas moventes e múltiplas com as quais as sociedades se depararam, as representaram e se transformaram” (BUSTAMANTE; THEML, 2007, p. 11).

Já no que concerne à nossa metodologia de leitura analítica, adotamos a Análise de

discurso proposta por Eni P. Orlandi, disciplina que começou a ser desenvolvida no final dos

anos 60, na França, através dos trabalhos de Michel Pêcheux. Descrevendo seu processo de investigação textual, podemos verificar que o que se busca através dessa perspectiva é ir além de uma análise per se do discurso, colocando-se em destaque os processos e condições de produção do mesmo, pois “o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade” (ORLANDI, 2012, p. 16). Através de sua pesquisa, a autora propõe não apenas uma simples análise textual, mas sim a relação entre língua, ideologia e história.

Objetivando-se a compreensão do discurso, faz-se necessário a dessuperficialização do

corpus documental, analisando sua materialidade linguística, isto é, o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias. A partir disso, obtém-se um processo discursivo, pelo qual é possível

se compreender o modo como o discurso que analisamos se textualiza, assim como a ideologia que ele constrói (ORLANDI, 2012, p.65). Há, desse modo, como denota Orlandi, um trabalho simbólico no discurso, sendo esse capaz de provocar efeitos de sentido entre os locutores (ORLANDI, 2012, p.21).

Outrossim, entendendo o discurso como uma “palavra que percorre um curso” (ORLANDI, 2012, p.15), devemos ter em mente que ele é formado por interdiscursos, ou seja, pelo o diálogo com tradições literárias existentes, verificando-se que “os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo” (ORLANDI, 2012, p.39).

Na presente dissertação, através da análise dos discursos de Homero e Eurípides, analisando-os em sua discursividade, buscaremos interpretar como nosso comparável é constituído nessas peças, levando em conta a posição sócio-histórica dos enunciadores a fim de delinearmos a ideologia que os mesmos perpassam, sendo este conceito compreendido no contexto helênico por nós analisado como “um conjunto de representações dos valores éticos e estéticos que norteiam o comportamento social” (LESSA, 2010, p. 22).

Não objetivamos, assim, dominar “o” sentido do texto e sim “construir interpretações” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 10), sendo necessário operacionalizar a presente pesquisa, destacando dois conceitos que a perpassam: o de representações sociais e o de poder. O primeiro deles, engendrado por Moscovici no campo da Psicologia Social após o

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20 resgate e reelaboração dos estudos de Durkheim, tornou-se objeto de estudo das Ciências Humanas há algumas décadas. Denise Jodelet é uma das pesquisadoras que se dedicou a analisar esse conceito, sendo esta pesquisa pautada em suas percepções acerca dele.

Segundo a autora, criamos representações a fim de nos ajustarmos ao mundo, dominá-lo física e intelectualmente, sabermos nos comportar, identificar problemas e resolvê-dominá-los. Essas representações são vistas como sociais, pois convivemos com outros indivíduos, que nos servem de apoio para compreender o universo que nos cerca, administrá-lo e enfrentá-lo, sendo essa noção capaz de nos guiar “no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma decisiva” (JODELET, 2001, p. 17).

As representações são, assim, as interpretações que os indivíduos ou grupos constroem sobre determinados objetos, podendo estes serem pessoas, coisas, ideias ou fenômenos naturais; reais, imaginários ou míticos. Dessa forma, esses sistemas de interpretação organizam e orientam nossas condutas, sendo tanto processo como produto dessa apropriação que os sujeitos fazem da realidade que os cercam, elaborando-a psicológica e socialmente.

Ademais, devemos enfatizar que as representações sociais circulam nos discursos, sendo um fenômeno observável, podendo revelar diferentes elementos da sociedade como normas, crenças, valores e atitudes. Através da simbolização e interpretação dos objetos, as representações sociais, assim, também apresentam um caráter prático, sendo orientadas para ação e para a gestão da relação com o mundo, contribuindo para a construção de uma realidade comum a um corpo social (JODELET, 2001, p. 36).

Dessa maneira, a autora nos orienta que devemos analisá-las no contexto em que são produzidas, evidenciando questões que devem ser postas em pauta para podermos lidar como esse conceito: 1) Quem sabe e de onde sabe? (Condições de produção e circulação) 2) O que e como sabe? (Processos e estados) 3) Sobre o que e com que efeitos? (Estatuto epistemológico das representações) (JODELET, 2001, p. 28).

Nesta dissertação, objetivando analisar as interpretações e construções simbólicas que os poetas fazem sobre a morte, verificamos como o conceito de representações sociais nos auxilia na construção de nossas hipóteses. Ademais, visto que elas servem “para agir sobre o mundo e o outro, o que desemboca em suas funções e eficácias sociais” (JODELET, 2001, p.28), podemos verificar como as representações do fim da vida também são capazes de revelar relações de poder, agindo sobre a sociedade em que esses discursos circulam.

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21 A fim de compreendermos este outro instrumento teórico por nós utilizado, valemo-nos novamente dos estudos de José Carlos Rodrigues. Em sua obra Ensaios em Antropologia do

poder (1991), o estudioso evidencia não apenas sua visão acerca do conceito, mas também a

relação que ele mantém com o fenômeno da morte. Segundo Rodrigues, todas as sociedades constituem-se como um sistema de regras, comportando “dimensões coercitivas que desenhem os seus contornos e que garantam sua sistematicidade” (1991, p. 24-5). Buscando firmar-se contra o caos e a entropia, elas organizam comportamentos, pensamentos e sentimentos, devendo assim serem estruturadas como poder.

Ao definir esse conceito, o autor destaca que o poder não pode ser visto localizado em alguma instância social, indivíduo ou grupo específico, propondo que o analisemos não como “alguma coisa que alguns homens dominem” e sim “algo que domine os homens”, sendo inerente à sociedade (RODRIGUES, 1991, p. 39). Dessa maneira, o poder, para Rodrigues possui uma natureza mágica e simbólica, sendo, antes de tudo cósmico, “cósmico, no sentido de que é o que funda, mantém, faz e refaz a regularidade, a norma, a ordem, a saúde”, mas que pode ser visto materializado na própria sociedade, que é o primeiro partido do poder” (RODRIGUES, 1991, p. 16).

Relacionando esse conceito à morte, evidenciando o papel dos vivos frente a ela, Rodrigues destaca que “não há sociedade que não seja obrigada a assumir atitudes firmes diante do desaparecimento de seus membros. Todas se veem coagidas a se estruturar como poder, capaz de enfrentar os contra-poderes do aniquilamento” (RODRIGUES, 1991, p.12). Através dessa estruturação realiza-se, igualmente, uma “rotinização forçada da morte”, incluindo-a em um sistema de regularidades e expectativas, esforçando-se para enquadrá-la em categorias.

Assim, através da manipulação estratégica de símbolos, pela qual o poder se elabora, podemos compreendê-lo “como se fosse um fenômeno de comunicação e significação inscrito e enquadrado em um contexto cultural, este mesmo embebido de poder, comunicação e significação. Como se fosse um fenômeno que se reproduzisse em cada ação social, agindo sobre ações, em lugar de sobre pessoas” (RODRIGUES, 1991. p.42).

Conectando os conceitos aqui debatidos, podemos verificar como através da representação da morte, os discursos épicos e trágicos são capazes de exercer relações de poder com a sociedade na qual estavam inseridos, sendo, como Rodrigues denomina, canais para que esse fenômeno cósmico seja exercido (1991, p. 39).

Conjugado ao nosso quadro teórico-metodológico, o suporte bibliográfico igualmente nos auxilia na compreensão de nossa problemática e no seu desenvolvimento. Realizando uma

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22 revisão dos estudos existentes que abordam o tema da morte, de suas crenças e práticas na Antiguidade grega, verificamos diferentes enfoques de análise. Podemos destacar investigações voltadas para o âmbito arqueológico apenas, outras para a história da religião ou da linguística e ainda aquelas dedicados a uma antropologia histórica (ANDRADE, 2003, p. 135-6). Ademais, algumas são destinadas a dar um panorama mais amplo sobre o tema, abarcando diferentes períodos e documentações, e outras se focam em questões mais pontuais, como a morte heroica e o sacrifício humano21.

Buscando analisar as percepções acerca da morte nas obras de Homero e Eurípides, Robert Garland (The greek way of death - 1985) e Christiane Sourvinou-Inwood (“Reading”

Greek Death: to the end of the classical period - 1995) são os que mais nos fornecem

informações sobre o nosso objeto de pesquisa. Além de se dedicarem à documentação escrita, os artefatos arqueológicos são utilizados por eles para se analisar diferentes períodos da Antiguidade grega, por vezes realizando comparações. O olhar antropológico desses autores também não está ausente em suas pesquisas, demonstrando-nos, de certo modo, uma pretensão ao tentar reconstruir as ideias e práticas religiosas relacionadas com a morte que existiam na Grécia Antiga. Ambos os autores analisam as crenças no além-vida, a importância e configuração dos funerais e do luto, além de trazerem diferentes discussões bibliográficas a respeito do tema. Muitos de seus pressupostos se assemelham tanto entre si quanto em relação aos nossos.

Seguindo a mesma direção de Garland e Sourvinou-Inwood, Maria Serena Mirto (Death

in the Greek World: from Homer to the classical age - 2007) destaca-se nos estudos sobre a

morte na Antiguidade grega ao enfocar os ritos e crenças a respeito da morte de Homero ao Período Clássico, verificando, assim como nós, as similitudes e mudanças entre um e outro. Utilizando-se tanto de Arqueologia quanto de obras literárias, tal qual os autores supracitados, questões como as etapas do funeral, a necessidade do luto, as honras a serem prestadas aos mortos a fim de que estes sejam mantidos na memória social, além da vida após a morte, são tópicos essenciais em sua obra. Ademais, a autora busca enfatizar a relação entre os vivos e os mortos e o papel daqueles frente ao fim da vida, discutindo as dimensões sociais e políticas desse momento.

Dentre esses autores que buscam dar uma visão mais ampla do fenômeno da morte na Antiguidade grega, demarcando tanto o uso da arqueologia quanto a vertente antropológica, o

21 A fim de situarmos as obras de acordo com o período de composição, apresentamos em nossa discussão

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23 trabalho de Emily Vermeule (Aspects of death in early greek art and poetry- 1979), ainda que contenha fragilidades, é profícuo para nossos estudos ao nos fornecer diversos dados sobre as representações da morte descritas nessas documentações, como o luto, a organização do funeral, o Hades e a psykhé. No entanto, indo de encontro aos autores supracitados, que veem na literatura uma maneira pela qual as representações sociais do fim da vida podem ser desveladas, Vermeule parece valorizar os artefatos materiais frente à poesia, visto que, para ela, os poetas sabiam tanto a respeito do pensamento grego sobre a morte quanto sabemos hoje em dia (VERMEULE, 1979, p. 4-5), aproximando-se da perspectiva de outro estudioso com o qual dialogamos: Francisco Diez Velasco. Este autor, que apesar de igualmente utilizar tanto a documentação literária quanto a arqueológica a fim de evidenciar as crenças acerca do que aconteceria após a vida ter seu fim em seus diversos trabalhos, sobrepõe a importância dos artefatos materiais diante da literatura, afirmando que essa “só conteria opiniões” (VELASCO, 2006, p. 97). Apesar disso, acreditamos que suas análises, especialmente em relação ao Hades, acrescentam nossos debates sobre o além-vida.

Voltando-nos aos estudos tanáticos mais pontuais, isto é, que se dedicam a analisar alguns aspectos da morte ou do pós-morte, temos como contribuição um trabalho recente, elaborado por Stamatia Dova (Greek heroes in and out of Hades – 2012). A autora se torna referência para nossos estudos ao analisar em sua obra a relação dos heróis com o mundo dos mortos, dedicando-se especialmente ao caso da katábasis na Odisseia, mas também investigando outras produções literárias como a Alceste, de Eurípides e O Banquete, de Platão, focando-se na relação entre a morte e o heroísmo e evidenciando questões como a glória alcançada após a vida ter seu fim.

Jean-Pierre Vernant é outro autor que se destaca em nossa revisão bibliográfica. Além de nos remeter em diversas obras sobre questões a respeito da importância do mito, das epopeias de Homero e das tragédias na sociedade grega22, também é essencial para entendermos como os gregos viam a morte, descrita pelo autor como a alteridade por excelência (VERNANT, 1988, p. 34). Além disso, Vernant nos demonstra a importância da rememoração social dos que já se foram, especialmente no caso dos heróis homéricos, dando destaque ao conceito de bela

morte, explicitando a necessidade de se realizar feitos honrosos e até mesmo uma morte gloriosa

22 Diversos estudos contidos em nossa bibliografia também se dedicam a analisar a importância da epopeia e da

tragédia na sociedade grega. Obras mais antigas como as de Romilly (1999), Vernant e Vidal-Naquet (2008), assim como produções mais recentes como as de Maria Cecilia Colombani (2005), Alexandre Moraes (2012) e os diversos artigos que compõe os compêndios organizados por Justina Gregory (2005) e Robert Fowler (2004) destacam essa temática.

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24 para atingir seu lugar na memória dos que ficaram, perspectiva também discutida por Schein, em sua obra The mortal Hero (1984), utilizada nesta pesquisa.

A discussão pontual acerca da alma na Antiguidade grega também faz parte de muitas obras acadêmicas. Vernant novamente se destaca no estudo desse tema, discorrendo em diversos trabalhos sobre como os heróis das epopeias lutavam para manter a vida, sua psykhé, e também como esse elemento se caracterizava ao se encontrar no Hades. Já Erwin Rohde (Psique. La idea del alma y la inmortalidad entre los griegos - 1894), um dos pioneiros no estudo sobre a psykhé, apresenta as diferentes características dadas a esse elemento ao longo da Antiguidade grega, abordando tanto as epopeias quanto as tragédias, apesar de dar maior atenção às primeiras. Porém, algumas de suas hipóteses são criticadas por outros estudiosos, como Werner Jaeger23, e também por nós. Ao buscar defender, por exemplo, que a psykhé homérica agia através dos sonhos (ROHDE, 1983, p.11), perspectiva considerada de caráter animista24, o estudioso não é capaz de citar nenhuma passagem em que isso ocorra, mas se

utiliza de uma obra posterior, de Píndaro, para validar seu pressuposto.

E. R. Dodds (Os gregos e o irracional - 1951) é igualmente um helenista que buscou refletir sobre a mentalidade dos antigos gregos, também dando enfoque ao uso de termos como

psykhé, thymós, menos e até, por exemplo, analisando tanto as epopeias quanto as tragédias e

demonstrando as características e funções dos órgãos e intervenções psíquicas que poderiam agir sobre eles, investigação que Bruno Snell (A descoberta do espírito), ainda em 1948, isto é, anteriormente a Dodds, busca realizar em sua obra. O autor, preocupado em investigar a maneira pela qual os gregos desenvolveram em sua cultura o que chamamos de pensamento humano, descreve em seu trabalho o longo processo pelo qual a sociedade antiga teria sofrido seu desenvolvimento do espírito, apontado diversas etapas perpassadas a fim de se apreender a natureza do homem e sua essência (SNELL, 1992, p.12), seus elementos psíquicos e supra-corpóreos, como é o caso da alma – seja na epopeia ou na tragédia.

23 Apesar de uma pequena parte da obra de Jaeger (1992) se destinar ao estudo sobre a psykhé em Homero, suas

hipóteses a respeito desse elemento aproximam-se das nossas: segundo ele, por exemplo, a psykhé homérica é uma “alma-vida”, que deixa o corpo após a morte, mas que não pensa, nem sente, e thymós uma “alma-consciência”, vinculada aos órgãos e processos corporais (1992, p.87). Ainda assim, para o autor o principal significado do termo

psykhé, em Homero, é o de “vida”, e não o de “sombra do morto”, como apontava Rohde (JAEGER, 1992, p. 87).

Porém, apesar de defendermos que psykhé significa tanto o princípio vital do homem homérico, quanto sua sombra no Hades, não concordamos ser possível averiguar através dos poemas uma valorização de um significado sobre o outro.

24 Segundo a teoria animista, “o homem primitivo, meditando sobre o estranho fenômeno do sonho e

(principalmente) sobre a diferença entre o corpo morto e o vivo, teria chegado à conclusão de que deve existir um ser invisível, uma ‘alma’, em que repousaria a vida e cuja ausência, temporária ou definitiva, causaria o sono, ou a morte” (OTTO, 2006, p. 29).

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25 Giovane Reale (2002), que dialoga por diversos momentos em sua obra com os estudos de Snell, oferece-nos, igualmente, muitas informações sobre esses elementos, dedicando-se a explicar pormenorizadamente a composição do corpo homérico e de outros elementos que poderiam agir sobre ele. Outro autor que também nos auxilia a entender as crenças a respeito desses princípios supra-corpóreos na sociedade grega, mas somente no caso homérico, é Jan Bremmer (1993). Ao comparar as epopeias com a mitologia védica, o estudioso defende a hipótese, também apreciada por nós, de que haveria dois tipos de alma distintas e independentes, que unidas constituiriam a concepção moderna que temos sobre o termo (BREMMER, 1993, p.66): uma alma livre, representando a própria vida do homem e sua parte que se destinaria ao Hades, denominada psykhé; e uma corporal, referindo-se aos órgãos responsáveis por diversas funções ligadas tanto ao psíquico quanto ao físico.

Luis Krausz (2007), que igualmente dedica parte de sua obra à análise da psykhé na Antiguidade, ainda que assuma diversas das prerrogativas lançadas por Bremmer acerca deste elemento, auxilia-nos através de uma revisão bibliográfica sobre a temática, discutindo as diferentes percepções acerca desse termo para os gregos, evidenciando como diversos autores pensaram essa temática. Além disso, sua obra também se destaca pela atenção dada à importância da epopeia e dos aedos na sociedade grega, evidenciando seu papel didático.

Outra análise pontual relacionada à morte presente nesta dissertação diz respeito aos sacrifícios humanos, encontrados, sobretudo, nas obras euripidianas. Nicole Loraux (Maneiras

trágicas de matar uma mulher - 1988) e Maria de Fátima Souza e Silva (Ensaios sobre Eurípides - 2005), além de destacarem acerca dessa temática, debatendo as relações existentes

entre o texto e o contexto das tragédias que apresentaram a morte pelo cutelo do degolador, auxiliam na elaboração das hipóteses por nós desenvolvidas ao fornecerem diversas informações sobre a morte, como é o caso do luto e da relação que os vivos estabeleciam com os falecidos. As exemplificações recorrentes no texto das autoras, com passagens e personagens das tragédias, conseguem reiterar de forma clara o que é defendido por elas.

Demais autores que se dedicaram a análise do sacrifício na Grécia Antiga, como Dennis Hughes (Human sacrifice in Ancient Greece - 1991) e Albert Henrichs (Animal Sacrifice in

Greek Tragedy. Ritual, metaphor, problematizations - 2013) também são referências para nós.

O primeiro, dedicando-se a um estudo que conjuga tanto a dimensão do sacrifício no cotidiano grego quanto nas obras literárias também dá destaque às relações entre o cotidiano e o universo literário. O segundo, ao analisar a temática dentro das obras trágicas, destaca a importância de

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26 demonstrá-la ao público no teatro, evidenciando as relações com o contexto em que o autor

estava inserido.

Assim sendo, em vista deste referencial bibliográfico acerca da morte na Antiguidade grega, conjugado a uma leitura atenta de nosso corpus documental e um quadro teórico-metodológico que nos auxilia a compreendê-lo, evidenciaremos na presente dissertação como as produções culturais acerca do fim da vida são múltiplas e variáveis, apresentando as similitudes e diferenças de um poeta para o outro.

Dividiremos este trabalho em três capítulos, cada qual conectado a uma hipótese: o primeiro dedica-se a analisar as representações sociais da morte nas obras de Homero e Eurípides de uma maneira mais ampla, sustentando como estas se constituem como referências para avaliarmos as concepções acerca da morte e do pós-morte nos Períodos Arcaico (VIII – VI a.C.) e Clássico (V- IV a.C.), assim como seus estatutos pedagógicos em meio à sociedade; o segundo propõe compreender a importância dos ritos funerários em nosso corpus documental. Destacaremos o papel dos vivos perante a morte, revelando que tanto Homero quanto Eurípides demonstram em seus versos uma verdadeira política associada ao fim da vida ou, ainda mais, uma ideologia funerária, estando o aedo cantando em prol dos ideais aristocráticos do Período Arcaico – já sob ameaça – e Eurípides descrevendo o agón entre estes ideais e os da Atenas democrática; o terceiro e último capítulo tem como foco as crenças descritas pelos poetas em relação ao destino dos mortos e as existentes acerca da existência de uma alma, da psykhé, demonstrando que as percepções do além-vida não se tratam apenas de representações espaço-temporais, mas igualmente de uma visão sociológica e antropológica, que se modifica de acordo com às circunstâncias sociais e culturais. Demonstraremos como Homero, inserido em um período no qual a palavra mágico-religiosa se faz destaque, evidencia, por diversas vezes, essas crenças post mortem; ao contrário de Eurípides, que ao pôr em foco a palavra-diálogo, refere-se diminutamente a esrefere-se mundo imaginário, inrefere-serindo questões do lógos racional, que começa a se fazer presente em seu contexto de produção25.

25 Segundo Marcel Detienne, a palavra mágico-religiosa é intemporal e inseparável das condutas e dos valores

simbólicos. Conecta-se àqueles que têm acesso privilegiado às divindades, trazendo seus desígnios ao conhecimento de homens excepcionais, como é o caso dos aedos e adivinhos. Ela se oporia a palavra-diálogo que, segundo o helenista, “é laicizada, complementar à ação, inscrita no tempo, provida de autonomia própria e ampliada às dimensões de um grupo social” (1988, p.45).

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Capítulo 1

Morte épica e morte trágica: por que representá-las?

Durante muito tempo, na historiografia, as obras literárias foram deixadas de lado em prol de documentos oficiais, os únicos capazes de revelar as verdades sobre o passado. Analisar poesias épicas, tragédias antigas ou modernas, era cabido a outras áreas do conhecimento que não à História. Porém, já há algumas décadas, esses materiais começaram a ser verificados como documentações profícuas para o estudo das sociedades, sendo a literatura constatada por muitos autores, como é o caso de Antônio Celso Ferreira, como uma via de acesso ao entendimento dos inúmeros universos culturais aos quais o historiador tem contato (2009, p. 61).

Destarte, devemos ter em mente que os textos literários não devem ser analisados apenas como um objeto de estudo nele mesmo, mas sim como parte de uma dinâmica social, como artefatos históricos e culturais que nos remetem às “representações do passado, construídas a partir de um olhar, de determinados códigos e valores” (GRUNER, 2008, p.11 - grifos do

autor).

Partindo dos pressupostos de nossa metodologia de análise textual, problematizando o que nos é passado através das obras homéricas e euripidianas, objetivamos defender ao longo deste capítulo como seus discursos detêm uma dimensão simbólica, possuindo um papel social frente à comunidade em que eram cantadas e representadas, reforçando os códigos de condutas a serem seguidas em relação à morte, mas igualmente demonstrando-se como caminhos para se compreender as tensões que cerceavam os poetas em seu contexto de produção.

Tendo em mente a relação dessa mensagem simbólica com o cenário no qual os poetas analisados estavam inseridos, “podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz” (ORLANDI, 2012, p.39). Sendo assim, devemos analisar os versos dessas obras em sua discursividade, isto é, tendo em mente que o discurso é contextualizado, não se podendo atribuir um sentido a um enunciado fora de um contexto (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p.171), fazendo-se necessário construir dispositivos de interpretação, objetivando-se procurar ouvir naquilo que o sujeito diz o que ele não diz, mas que está presente nos sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2012, p.59). Ademais, a partir do conceito de

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28 ao realizarem a simbolização da morte em seus poemas, destacando como este instrumento teórico é capaz de verificar o âmbito sociocultural nas suas especificidades históricas.

À vista disso, sustentamos que a arte poética na sociedade grega não possuía apenas o papel de entreter o público a qual se direcionava: a epopeia e o teatro constituíam-se, como apontado por diversos estudos, em verdadeiros veículos educativos, capazes de reforçar os valores preconizados pela sociedade, fazendo parte da chamada paideía.

Significando, literalmente, educação de meninos, perfazendo-se em um conceito muito amplo e complexo, paideía pode ser simplificado como um conjunto de atividades educacionais e culturais da sociedade grega, que possuía como objetivo a construção de um cidadão com

areté (excelência, virtude), honra e coragem, através de atividades que levavam a harmonia

entre o corpo e a mente26.

Apesar de ser um termo que aparece apenas no século V a.C., em uma tragédia de Ésquilo, como ressaltado por Jaeger (2010, p. 335), suas práticas são muitos anteriores, levando-nos a utilizar esse conceito para as epopeias de Homero que, inclusive, devemos deixar claro, não instruíram apenas os homens de seu tempo27.

As obras aqui analisadas, cada uma a sua maneira, como veremos, irão inspirar seu público através dos exemplos heroicos, de um passado que deve ser rememorado e transmitido de geração a geração. Até mesmo Aristófanes, em sua comédia As Rãs28¸ destaca o papel educativo da poesia, demonstrado esse grau de interferência na sociedade:

ÉSQUILO

[...] Responde-me: em que é que devemos admirar um poeta?

EURÍPIDES

Pela sua inteligência e bom conselho, porque tornamos melhores os homens nas cidades.

(ARISTÓFANES. As Rãs, vv.1006-9).

26 Como ressaltado por Jaeger “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura,

tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por

paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o

campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez” (2010, p.1).

27 No Período Clássico, as crianças aprendiam a ler com suas obras e chegavam a sabê-la de cor, mesmo com seus

14 mil versos - Ilíada - e 12 mil versos - Odisseia, além de tocarem cítara recitando seus versos. Ademais, segundo Romilly, “foi encontrado, no Egito, o testemunho concreto de que ainda na época helenística Homero servia para exercícios escolares da escrita, de paráfrase, de transcrições em língua moderna ou de comentários” (2001, p. 111).

28 Em As Rãs, vemos um inconformado Dioniso que deseja ir até o Hades a fim de restaurar o mundo trágico na

sociedade ateniense. Tendo como objetivo de sua katábasis (descida ao Hades) a busca do tragediógrafo Eurípides, acaba, após diversas discussões deste com Ésquilo, resgatando o último do mundo inferior.

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29 Utilizando o mito em suas composições, tanto as encenações trágicas como as epopeias de Homero não apenas destacam as crenças e valores associados à sociedade em que estavam inseridas, mas também, como ressalta François de Polignac, evidenciam que toda obra é suscetível de criar um espaço de comunicação e significação que pode interferir em outros espaços (2010, p.483), revelando-se canais de poder ao buscarem organizar e orientar a conduta dos homens, estabelecendo-se como um sistema de regras frente o fim da vida (RODRIGUES, 1991, p.24).

A fim de entendermos esse espaço de comunicação e os efeitos que os discursos poéticos causavam em seu público, devemos verificar, como proposto por Jodelet, as condições de produção e circulação29 das obras aqui analisadas, a materialidade linguística dos discursos, entendendo-as como próprio produto do contexto em que estavam inseridas e demarcando as funções e eficácias sociais das representações sociais relacionadas à morte que são postas em pauta por esses poetas (JODELET, 2001, p.28).

Dessa maneira, no presente capítulo, destacaremos como e com que fins essas representações da morte, inseridas no universo mitológico das tragédias e epopeias, são criadas, objetivando, assim como Vernant, responder a seguinte questão: “em que limites e sob que formas o mito está presente numa sociedade, e uma sociedade presente em seus mitos? ” (2010, p. 6).

1.1| Ser herói, fazer-se exemplo

Ao analisarmos as obras homéricas, responsáveis por compilar uma série de mitos30 e ritos da sociedade grega, podemos encontrar uma distância com a realidade menor que imaginamos. Objetos de análise desde a Antiguidade, a Ilíada e a Odisseia foram consideradas importantes meios de difusão da cultura helênica, tendo seu valor paidêutico verificado tanto na sua época de composição quanto posteriormente, chegando a ser apontadas, conforme Fowler, como apenas sobrepujadas em importância na literatura ocidental pela Bíblia (2004, p. XV).

29 Como ressalta Sourvinou-Inwood, “Quando objetivamos reconstruir os significados que um texto possui para

seus contemporâneos, nós devemos primeiramente tentar, tanto quanto possível, reconstruir suas circunstâncias de produção, seu meio histórico, social e cultural, sua função e audiência, que irão fornecer a matriz para a reconstituição das pretensões, códigos e estratégias operadas pelo escritor e a audiência que ele estava se dirigindo (1995, p.4).

30 Sob a perspectiva de Vernant, o mito, apesar de ser alvo de muitas discussões sobre seu caráter fantasioso, é um

esboço do discurso racional, do lógos, podendo responder questões sobre universo, além de constituir “durante mais de um milênio o fundo comum da cultura, um quadro de referência não apenas para a vida religiosa como também para outras formas da vida social e espiritual [...]” (2010, p. 188).

Referências

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