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Entre elogio e lamento: o papel dos vivos perante a morte

TALTÍBIO

Quando exalou seu alento graças à imolação fatal, nenhum dos argivos se ocupou com o mesmo trabalho, mas alguns, com suas próprias mãos, a morte

com folhas atingiam, outros executaram uma pira, trazendo achas de pinheiro, e quem não trazia daquele que trazia ouvia estas censuras: ‘Estás parado, infame, para a jovem nem peplo nem adorno tendo nas mãos? não vais dar algo para ela, corajosa ao extremo e de excelsa alma?’

(EURÍPIDES. Hécuba, vv. 571-580).

É o mesmo Taltíbio, servo de Agamêmnon, que dá a chance de Hécuba prestar honras ao seu neto Astiánax, sendo sua atitude, segundo Werner, igualável a de Aquiles ao devolver o corpo de Heitor a Príamo, demonstrando que diante da morte e da tristeza de outrem a piedade ainda é possível em meio a destruição da guerra (2004, p.LV)

À vista disso, o tema do não-sepultamento e da falta de honras funerárias é apontado como uma transgressão por ambos os poetas, sendo seus discursos canais de comunicação em meio a sociedade que reiteravam aquilo que era devido ao morto, como é o caso do lamento e das etapas necessárias para que ele fosse desagregado de um domínio e integrado a outro, temática que agora nos debruçaremos.

2.2.1| O lamento e a comunicação da dor da perda

A morte, em diversas sociedades, tem a capacidade de provocar naqueles que ficam uma reação quase que imediata diante de sua notícia: a dor da perda e o consequente lamento por aqueles que se foram. O fim da vida, como nos recorda Rodrigues, é o fim “de um ser em relação, de um ser que interage”. Desse modo, o primeiro vazio que a morte causa é um vazio

interacional (RODRIGUES, 2006, p.20), capaz de despertar as mais diversas reações por parte

daqueles que se veem na condição de enlutados.

Em nosso corpus documental, muitas são as personagens que se encontram nesse vazio: privadas da presença de companheiros de guerra, esposos e filhos, elas demonstram sua dor não em silêncio, mas através de um luto que é capaz de comunicar o sentimento da perda. Sejam

67 homens ou mulheres, parentes ou amigos, o morto deveria receber como parte de seu géras o lamento.

É notável, todavia, a distinção entre o lamento feminino e o masculino, sendo apontado por estudiosas como Gail Holst-Warhaft (2005), Mirto (2012) e Margaret Alexiou (2002) como as manifestações do luto são exercidos a partir desses gêneros de maneiras específicas.

Segundo Mirto, além de os homens serem responsáveis pela parte oficial do funeral, eles deveriam realizar as expressões coletivas do luto, “adotando um tom particular na educação das gerações mais novas, defendendo o princípio de que a morte deve ocorrer em prol dos valores comuns” (2012, p.6-7); Já às mulheres eram reservadas as questões práticas e mais privadas, como a preparação do corpo, sua próthesis, como veremos mais à frente, assim como as expressões verbais e físicas da dor da perda.

Contudo, apesar dos funerais e os lamentos serem apontados na historiografia como um espaço de atuação predominantemente feminino, há casos em que isso não se faz possível, como verificamos na épica homérica ao analisarmos os ritos fúnebres prestados pelo exército aqueu a seus heróis. Por se encontrarem longe de seus lares, sem suas famílias, as únicas mulheres presentes em campo de batalha eram as escravas. Sendo assim, era responsabilidade quase que exclusiva dos homens a realização do lamento e do cuidado com o corpo do morto. A presença feminina que se adiciona às cativas de guerra era somente a das deusas: no funeral de Aquiles, visto na Odisseia, podemos verificar que não apenas seus companheiros de armas, mas sua mãe Tétis e outras nereidas o lamentam (HOMERO. Odisseia, XXIV, 43-64). Como ressaltado por Hoslt-Warhaft,

Qualquer coisa que possa ser aprendida sobre atitudes dos gregos pré-clássicos ou dos europeus ocidentais no início da idade medieval sobre a morte e luto, a partir das narrativas de batalha, está inevitavelmente influenciado pela sociedade quase exclusivamente masculina na guerra. Os troianos, porém, estão lutando em seu próprio território, e os seus parentes do sexo feminino estão em casa enquanto eles lamentam seus mortos (HOLST-WARHAFT, 2005, p.91).

Refletindo acerca da questão de gênero, verificamos que usualmente o choro masculino se dá pela tristeza da perda do outro e o feminino pela sua própria fortuna, pelo que poderá ocorrer a partir do fim da vida de um ente querido, especialmente no caso das esposas. Andrômaca e Hécuba, por exemplo, reclamam de seu futuro na Ilíada em diversos versos do Canto XXIV, ao se verem sem Heitor. Também na Ilíada, as cativas aqueias ao chorarem por Pátroclo, “as próprias penas também choram” (HOMERO. Ilíada, XIX, 301-2).

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Isso é reforçado nas tragédias ao verificamos que, ao terem seus maridos mortos após

a guerra, a fortuna cabidas as mulheres era a escravidão, sendo seus lamentos entoados, como no caso das Troianas, não apenas pelos mortos, mas pelo futuro de sua cidade, demonstrando- nos que “quando o luto ocupa a cidade [...]sugere-se que a estabilidade da pólis não está assegurada, o que é evidentemente potencializado pelo fim de Tróia” (WERNER, 2004, p. LVI), como vemos quando Hécuba chora por Astiánax:

HÉCUBA:

Ó criança, ó filho de filho doloroso,

Somos despojadas de tua alma injustamente, Eu e tua mãe. O que sofrerei? O que para ti,

Malfadado, devo fazer? [...] Ai de mim, pela cidade, Ai de mim por ti. Pois o que não temos?

O que nos falta para, com todo o ímpeto, Marchar no meio da total ruína?

(EURÍPIDES. Hécuba, vv.790-8).

Do mesmo modo, os lamentos femininos evidenciam tanto na tragédia quanto na epopeia o desejo de uma morte além daquela em campo de batalha: contrasta-se a bela morte com a boa morte, na qual o desejado é a volta para casa após a guerra e a morte na velhice, como ocorre com Odisseu. Revela-se, assim, uma tensão entre o que era esperado pela família e o que era desejado do comportamento heroico em batalha (MIRTO, 2012, p.77). Dessa maneira, como denota Holst-Warhaft, “Ao masculino kléos se opõe o feminino (e talvez o poético?) góos” (2005, p.92).

Voltando-nos ao luto que é capaz de comunicar a dor da perda, vemos que, em grego, ele pode ser expressado através de dois termos: ákhos (dor moral, luto, aflição – BAILLY, 2000, p.336) e penthós (chorar, deplorar, estar em dor – BAILLY, 2000, p.1511)73, atingindo dos grandes heróis aos deuses e sendo foco de atenção em diversos versos dos discursos homérico e euripidiano.

Aquiles, considerado o melhor dos aqueus, é aquele que se destaca na Ilíada como um dos que mais sofre diante da perda de um amigo querido: Pátroclo74. O termo ákhos é, inclusive, destacado por Gregory Nagy, como um dos vocábulos formativos de seu nome. Akhi-l(l)eús, seria derivado de Akhí-lauos, uma união do termo ákhos com laós (grupo de guerreiros), sendo

73 De acordo com Nagy, “Enquanto a palavra kléos é utilizada na dicção poética tradicional para designar prestígio

público, prestígio do épos ou da praise-poetry, a palavra pénthos pode indicar o ritual público do luto, formalmente decretado com canções de lamento” (1999, p.95).

74 A dor de Aquiles é tão grande que Antíloco teme que ele “com ferro cortasse a garganta” (HOMERO. Ilíada,

69 sua etimologia “dor de guerreiros”, demonstrando “comensuravelmente a chave para o ákhos, a ‘tristeza’ coletiva que os aqueus sentem por Pátroclo na ocasião de seu funeral” (1999, p.177). A mãe do Pélida, uma deusa, junto com as demais nereidas, demonstra da mesma forma a dor que sente ao ver o amigo de seu filho morto (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.35-8), o que faz certos estudiosos entenderem esse lamento exacerbado como um luto indireto para a futura morte de Aquiles (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1982; NAGY, 1999; WITHMAN, 1958). Nagy destaca que Pátroclo funciona como therápon do Pélida, isto é, um substituto ritual, prenunciando o que lhe ocorrerá fora da narrativa da Ilíada (1999, p.33).

O luto que a morte provoca é igualmente visto do lado troiano, sendo o perecimento de Heitor aquele que causa mais tristeza. Hécuba, Andrômaca e Príamo, parentes do herói, demonstram a dor da perda, choram o filho e esposo morto, desmaiam, dilaceram sua pele, atos que, como veremos, fazem parte da comunicação dos enlutados. Na Odisseia, ainda que não haja um campo de batalha, a tristeza por aqueles que morreram em Troia destaca-se nos versos homéricos, assim como a incerteza sobre a morte do protagonista.

Do mesmo modo, nas tragédias, vemos o luto sendo exposto. São as mulheres que mais demonstram essa dor, evidenciando o fato, como nos recorda Margaret Alexiou, de que no Período Clássico o lamento era conectado sobretudo ao gênero feminino (2002, p.10).

Hécuba, tanto na obra a ela homônima quanto em Troianas, é uma das que mais sofre. Além de já haver perdido seu marido e outros filhos após a guerra ter terminado, nas peças em que ela atua mais dois de seus rebentos padecem de forma trágica75, assim como seu neto. Andrômaca, diante da perda do filho, também não deixa de exprimir sua dor, chorando-lhe especialmente por não poder dar-lhe sepulcro, visto que a escravidão em outra terra a esperava76.

Admeto, ante o sofrimento que a perda de sua esposa Alceste lhe causa, se dá conta de como teria sido melhor morrer do que sentir tamanha tristeza, fazendo-nos refletir acerca do medo da morte e da falta dos entes amados. O luto ao qual o rei se impõe é de extrema tristeza. Como suas palavras demonstram, ele lamentará o fim de Alceste não um ano apenas, mas enquanto sua vida durar (EURÍPIDES. Alceste, vv.336-7).

Sendo assim, a morte não era sofrida pelas personagens em silêncio: o padecimento que as afligia era comunicado e muitas vezes de maneira exacerbada. Lamentar o morto ia desde derramar lágrimas copiosas ao corte dos cabelos até mesmo a autoflagelação.

75 Logo no início de Hécuba vemos as referências à morte de Polimestor (EURÍPIDES. Hécuba, vv.25-7) e também

do futuro de Polixena, que será sacrificada (EURÍPIDES. Hécuba, vv.37-41).

70 Analisando a épica homérica e a tragédia euripidiana de maneira comparada, verificamos que as demonstrações dos enlutados se assemelhavam, sendo transmitidas através da comunicação social por duas maneiras: verbalmente – pelo choro, gritos e cantos de clamor – e não verbalmente, ou seja, através da linguagem corporal utilizada para expressar sentimentos e emoções77.

Focando-nos primeiramente na comunicação verbal, verificamos que chorar o morto era atitude comum. Na Odisseia, Antíloco afirma que aquele que é “tolhido pela ação de Tânatos” não merece desdém caso chore (HOMERO. Odisseia, IV, vv. 195-6). A dor daqueles que no palácio de Menelau recordavam-se das mortes durante a guerra de Troia é tão grande que o rei deseja que o pranto seja suspenso, cabendo a Helena preparar um fármaco através do qual “sofrimento, cólera, / os males memoráveis, tudo amortecia. / Quem sorvesse a mistura da cratera funda, / susteria o lamento na extensão de um dia, /mesmo se mortos pai e mãe, mesmo se mortos/ à sua frente, a fio de bronze, irmão ou filho” (HOMERO. Odisseia, IV, vv.218- 225)78.

Novamente Aquiles, em luto por seu companheiro Pátroclo, tem seu choro relatado por Homero como tão ressonante que sua mãe Tétis chega a ouvi-lo do fundo do mar (HOMERO.

Ilíada, XVIII, vv.35-8). Os aqueus, do mesmo modo, debruçavam-se em pranto sobre Pátroclo,

chorando-o (HOMERO. Ilíada, XIX, vv.4-6), recordando-nos que “que, assim, honram-se os mortos” (HOMERO. Ilíada, XXIII, v.10).

Os filhos de Príamo, diante da morte de Heitor, “em lágrimas banham as vestes” (HOMERO. Ilíada, XIV, vv.161-2) e Tétis e as Nereidas, junto aos guerreiros aqueus, ao tomarem conhecimento da morte de Aquiles, “por dezessete noites e outros tantos dias” o choram (HOMERO. Odisseia, XXIV, vv. 62-65).

Igualmente, nas tragédias, o choro é marca das personagens. A dor dos vivos é o foco das lágrimas quando Hécuba lamenta não apenas a morte de seu neto, mas de tantas outras que se veem frente a morte: “Crianças, a mãe da cidade vazia é tirada de vós. / Tais ululos e tal luto, /E lágrimas após lágrimas pingam” (EURÍPIDES. Troianas, vv.603-6). Em Alceste, não apenas

77 Na comunicação não verbal, fenômeno analisado pelo campo da cinésica social, uma disciplina de recorte

socioantropológico, o que é posto em destaque são os movimentos corporais, considerados sob o aspecto sociocultural e não neurofisiológico ou, ainda, psicológico (RECTOR; TRINTA, 2003, p.55). O corpo, como nos recorda Monica Rector e Aluizio Trinta, é uma forma de comunicação, assim como seus movimentos. E essa comunicação, ainda segundo os autores, “é, então, a própria prática cotidiana das relações sociais” (RECTOR, TRINTA, 2003, p.5-8).

71 os filhos, esposo e servas choram a morte da protagonista, mas ela própria banha as roupas de sua cama com suas lágrimas (EURÍPIDES. Alceste, vv. 183-4).

Ifigênia, por outro lado, como aqui já citado, desejando consagrar ao máximo seu sacrifício pela pátris, assemelhando-se ao que era pedido nos funerais públicos descritos por Tucídides, pede que o lamento a ela não seja realizado, dizendo a sua mãe: “eu proíbo-a de chorar! [...] Pois estou partindo para dar aos gregos salvação e vitória” (EURÍPIDES. Ifigênia

em Áulis, vv.1468/1472-3).

Outra prática dos enlutados presente tanto nas obras de Homero quanto do “mais trágico dos trágicos” é a entonação de cantos. Através deles, objetivava-se não apenas expressar a dor, mas especialmente prestar honras aos falecidos. Podemos ver que havia dois tipos deles: góos – um “lamento improvisado cantado por parentes ou amigos próximos do falecido” – e thrênos – “um lamento formal cantado por profissionais chamados thrênôn exarchoi (líderes da marcha fúnebre)” (GARLAND, 1985, p.30) –, mais intenso e pessoal e geralmente dedicado as camadas mais abastadas da sociedade.

Na épica homérica, a diferenciação entre eles é clara. Vemos no funeral de Heitor, por exemplo, descrito no Canto XXIV da Ilíada, tanto o góos sendo entoado pela esposa do herói, Andrômaca, quando um aedo dirigindo thrênos ao falecido79:

O morto é trasladado ao preclaro solar

E posto sobre um leito encordoado. A seu lado,

cantores entoam trenos [ἀοιδοὺς θρήνων ἐζάρχους], em tom lastimoso, e flébil, o responso das mulheres segue-os;

braços-brancos, Andrômeda ergue seu lamento [γόοιο] (HOMERO. Ilíada, XXIV, vv. 720-22).

Porém, na tragédia, verificamos uma nova configuração para esses termos: nas obras por nós analisadas, as únicas quatro vezes em que a palavra thrênos aparece – apenas em

Hécuba (v.212/298/434) e Troianas (v.609) –, ela se torna sinônimo de góos. Isto é: ele passa

igualmente a ser entoado por familiares ou amigos próximos, transformando-se até mesmo de um canto a um simples lamento. O Coro, em Hécuba, por exemplo, ao ouvir a tristeza da protagonista pela morte de sua filha Polixena, destaca que “não existe uma natureza humana

79 O termo thrênos aparece apenas por duas vezes nas obras homéricas: na supracitada passagem Ilíada e no Canto

XXIV, vv.58-62, quando as musas entoam um thrênos a Aquiles. A palavra góos, pelo contrário, pode ser encontrada em inúmeras passagens de ambos os poemas épicos. Essa diferenciação entre o número de incidências do primeiro para o segundo pode ser explicada devido ao fato do thrênos ser cantado especialmente pelos aedos, nos funerais, o que quase não fora relatado por Homero, pois grande parte dos funerais por ele descrito se dão em acampamento aqueu, no qual essa categoria não se faz presente.

72 tão dura/que, após ouvir os trenos [θρήνους] de teus gemidos [de Hécuba] / e de teus longos lamentos [γόων], não verteria lágrimas” (EURÍPIDES. Hécuba, vv. 296-8).

Buscando compreender o porquê dessa mudança de acepções, que é ignorada por muitos dos estudiosos da temática, Nicole Loraux, em seu Invenção de Atenas, descreve-nos o seguinte fato: no Período Clássico o canto profissional, tão ligado as camadas aristocráticas, perde seu prestígio ao ponto de se igualar ao góos, fato que evidencia o contexto vivido por Eurípides, no qual o controle da ostentação das exéquias fúnebres e dos lamentos é visto. Segundo Loraux,

esta equivalência entre thrênos e góos esclarece, em muitos aspectos, o significado da oração fúnebre e de sua proibição das lamentações [...] Ao reduzir o thrênos ao pranto, os epitáphioi estão afirmando recusa ainda mais fundamental: a dos cultos heroicos que, no passado aristocrático, enraízam o elogio na lamentação ritual (LORAUX, 1994, p.62-3).

Desse modo, ainda que o lamento seja visto muito exacerbado pelas personagens euripidianas, especialmente as do gênero feminino, não se deixa de ver como alguns requisitos impostos e insurgentes na pólis ateniense estão presentes em suas peças.

Passando-se agora à análise da comunicação não verbal que, como citamos, faz referência aos movimentos corporais, podemos verificar como ela se faz parte integrante das ações realizadas pelas personagens épicas e trágicas, como é o caso do corte dos cabelos e da autoflagelação.

No primeiro dos ritos, vemos que sua realização era uma maneira do vivo se aproximar do falecido quanto de lhe prestar honra. Segundo Vernant, os cabelos raspados constituem, com as outras manifestações do luto, um dos meios rituais que permitem, ultrajando e enfeando o rosto dos vivos, aproximá-los, durante os funerais, desse mundo de fantasmas sem força e sem brilho para onde emigrará o morto cujo desaparecimento é pranteado (1988, p. 57). Ademais, para o caso dos guerreiros, especialmente aqueus, verifica-se que seus cabelos, geralmente longos, eram símbolo de status e poder80, “comportando um aspecto ‘terrificante’ cujo efeito no campo de batalha é, no sentido ativo do termo, ‘sinal’ de vitória (VERNANT, 1988, p. 57). Por conseguinte, ao cortá-los em honra aos mortos, os cabelos poderiam ser compreendidos como uma metáfora de vida, uma homenagem “aquele que perdeu a própria vitalidade”

(MORAES, 2013, p.89).

80 Como ressalta Alexandre Moraes, “de fato, um dos principais epítetos que evocam as características físicas dos

aqueus é ‘de longos cabelos’, κάρη κομόωντας Ἀχαιοὺς (HOMERO. Ilíada, II, 11 e 472; HOMERO. Odisseia, I, 90; HOMERO. Odisseia, II, 7). [...] Não sem motivo, a Ilíada descreve Tersites, o guerreiro mais feio que foi combater em Tróia, dentre outras coisas, como ψεδνός, ‘calvo’, ‘de cabeleira escassa’ (HOMERO. Ilíada, II, 219)” (MORAES, 2013, p.89).

73 Na Odisseia (IV, vv.197-8), vemos Antíloco dizer que “ao infeliz mortal é dado o privilégio/de oferecer cabelos e prantear a cântaros”81. Já na Ilíada, Aquiles, assim que descobre

sobre a morte de Pátroclo, arranca seus próprios cabelos (HOMERO. Ilíada, XVIII, v.27), em um ato de desespero; mas já no funeral de seu companheiro, os corta em honra a ele, a pedido de Peleu, e põe “a cabelereira/entre as mãos do querido amigo” (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.142-153). O mesmo o fazem seus companheiros, cobrindo “o cadáver/ de cabelos, cortando- os e jogando-os sobre/ o morto” (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.135-7).

Nas tragédias, vemos igualmente esse ato ser realizado: Hécuba, tendo diversos de seus filhos mortos durante a guerra, diz ter cortado “os cabelos junto aos túmulos dos mortos” a fim de lhes honrar (EURÍPIDES. Troianas. v.480). Em Alceste, o coro, ainda sem saber se a rainha se encontra morta, procurava sinais de luto, dizendo que ainda não era possível se ver no pórtico os cabelos cortados, “que é próprio sinal de luto pelos mortos” (EURÍPIDES. Alceste, vv.101- 3). E Admeto, solicitando o luto em seu palácio, demanda que até mesmo os cabelos dos cavalos sejam cortados em honra a sua esposa (EURÍPIDES. Alceste, vv.425-9).

Nas peças trágicas, outro sinal de luto comunicado pelo corpo são as vestes negras. Nenhum autor por nós analisado destaca o porquê da escolha desta cor, nem o motivo pelo qual Homero omite esse dado, mas presumimos que, assim como em nossa tradição judaico-cristã, o negro seria uma cor que denotava a tristeza e tenebrosidade, o oposto do sol, que se faz símbolo de vida, visto que os mortos não mais veem a claridade.

Admeto, além de solicitar o corte dos cabelos, demanda que todos usem um vestuário neste tom (EURÍPIDES. Alceste, vv.425-9) e o coro igualmente pergunta se já é necessário se vestir assim (EURÍPIDES. Alceste, vv.215-7). Ifigênia, que como citamos, nega que se faça luto a ela, demanda que suas irmãs não sejam vestidas de preto (EURÍPIDES. Ifigênia em

Áulis, v.1448).

Outra prática dos enlutados em que se buscava à aproximação da dor do morto era o ato de se flagelar o corpo: havia casos, como o citado de Aquiles, em que não se apenas cortava os cabelos, mas nos quais arrancavam-nos com as mãos. A dilaceração da pele também é registrada, especialmente no caso feminino; já os homens batiam com a mão na cabeça e deixavam seus corpos sujos, jogando-se a poeira e até mesmo ao esterco, como é feito por Príamo ao perder seu filho Heitor (HOMERO. Ilíada, vv.164-5).

Aquiles, diante da morte de Pátroclo, “De ambas as mãos toma esfúmeas/ cinzas e as lança sobre a cabeça, encardindo/ o rosto belo; a túnica nectárea, tinta/ de fuligem, sujou-se; jaz

74 no pó, estendido (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.22-7), não permitindo que até o funeral sua cabeça fosse lavada (HOMERO. Ilíada. XXIII, vv.44-45). Suas cativas gritavam, batendo as

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