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3.2 TEMAS KANTIANOS EM À PAZ PERPÉTUA SEGUNDO AUTORES

3.2.3 Republicanismo e democracia

O republicanismo kantiano é fundado em três princípios básicos para que o Estado busque a paz: o respeito à liberdade dos membros de uma sociedade; a dependência de todos em relação a uma única legislação e a igualdades dos cidadãos perante a lei.86

Kant considerou o Estado como uma pessoa moral, o que seria hoje denominado pessoa jurídica, estando obrigado a relacionar-se com outros Estados. Segundo José Trindade (2007), ao considerar o Estado a partir desta perspectiva, Kant tinha em mente uma democracia direta, não a democracia representativa. Os princípios da Constituição Republicana de Kant, portanto, se assemelham ao atual modelo de Estado democrático.

Kant preocupou-se em realizar a distinção entre república e democracia, principalmente pelo caráter negativo que o termo democracia tinha no século XVIII. Para evitar despertar temores quanto a uma eventual tirania da maioria em detrimento dos direitos individuais, Kant utilizava do vocábulo república quando pretendia se referir aos regimes políticos baseados na divisão dos poderes. Na seguinte passagem, Kant procura distinguir a república da democracia:

O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo é o princípio da execução / arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. – Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto todos, sem no entanto serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade.87

Em outras palavras, a constituição política deve ser em todos os Estados de forma republicana, pois no caso de guerra, deverá necessariamente aparecer o consentimento de todos.

O fato de Kant considerar a democracia despótica e, em contrapartida propor a república, tem a ver com a linguagem da sua época e com a aversão do filósofo alemão à teoria social de Rousseau. Portanto, baseando-se no assentimento ______________

86

Ibid., p. 127.

87

dos cidadãos, o conceito kantiano de república “corresponde à compreensão atual da democracia de matriz liberal-democrática.”88

Segundo Deon (2005), é em função dos três princípios básicos que fundamentam o republicanismo kantiano que o Estado organizado a partir de uma constituição republicana evidencia que ela é a única forma que pode levar a humanidade a alcançar a paz definitiva, diferentemente da situação inconsistente de guerras com intervalos de paz. Neste sentido, Ernst-Otto Czempiel (1997) afirma que Kant foi o primeiro a fundamentar e tematizar a relação entre democracia e paz, ou em outras palavras, a relação entre democracia e a desistência do recurso à violência na política externa.89

Por sua vez, Cavallar (1997), observa que, para expor a relação entre a paz e a constituição republicana, Kant utiliza-se de fundamentos filosófico-jurídicos e empírico-pragmáticos. Os fundamentos filosófico-jurídicos fundamentam a afirmação de que o republicanismo representa a idéia de uma comunidade jurídica de seres livres no âmbito interno do Estado. Os fundamentos empírico-pragmáticos podem ser percebidos no argumento de que a predisposição para a guerra seria menor num estado republicano, pois os cidadãos, como principais vítimas dos conflitos, participariam direta ou indiretamente da decisão sobre a guerra e a paz.90

Neste sentido, Deon (2005) explica que Kant enfatizou o papel fundamental de uma constituição republicana, pois “emana do puro conceito do direito e é capaz de afastar a guerra, fonte de todo o mal da terra”.91Assim, o efeito pacificador produzido pelo direito permite estabelecer o convívio entre os membros de um estado republicano, que apesar de limitar a liberdade de cada um à condição de sua concordância com a liberdade de todos segundo uma lei universal, conduz à paz.

Ernst-Otto Czempiel utiliza do teorema kantiano92 presente no primeiro artigo definitivo para analisar se a tese do caráter pacífico das democracias encontra respaldo em relações sociopolíticas, como no caso de uma guerra defensiva. O ______________

88

CZEMPIEL, Ernst-Otto. O teorema de Kant e a discussão atual sobre a relação entre democracia e paz. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 122.

89

Ibid., p. 122.

90

CAVALLAR, op. cit., p. 85 – 87.

91

DEON, op. cit., p. 74.

92

Em síntese, Czempiel define o teorema kantiano da seguinte maneira: “A guerra deixará de existir no momento, no qual aqueles que sofrem com ela, poderão deliberar sobre ela”. In: CZEMPIEL, Ernst-Otto, 1997, p.121.

autor constata que o tipo de regime democrático “exerce uma permanente influência moderadora sobre o comportamento conflitivo.” 93

Entretanto, Czempiel constata que em alguns casos, como nos confrontos com regimes autoritários e/ou ditatoriais, as democracias se vêem forçadas a usar também as estratégias, os meios e os instrumentos destes regimes, visando uma tentativa de salvamento e, como consequência, se mostram dispostas a realizar uma guerra de defesa (em caso emergencial).

Em relação à fragilidade da democracia frente ao desafio de manter a paz, o referido autor comenta:

Mas mesmo então as orientações normativas e barreiras estruturais deveriam fazer-se notar. Se aquilo, que as análises estatísticas evidenciam, não for o caso, o nexo demonstrado de democracia e paz se tornará muito frágil. Se as democracias não têm sempre uma aversão contra a violência, ou a hipótese não confere ou as democracias (ainda) não são democracias.94

Dessa forma, o autor entende que existem somente duas possibilidades para explicar o comportamento conflitivo das democracias em face das não- democracias: a relação entre democracia e paz demonstrada pelas análises estatísticas pode ser muito frágil; ou os Estados considerados democráticos não são verdadeiras democracias.

Sob uma perspectiva histórica, a aposta de Kant no republicanismo, na democracia representativa e no Estado de Direito como alicerces para a construção da paz entre as nações, não tem demonstrado um nexo efetivo.

Segundo José Trindade (2007), a relação entre Estados considerados modelos de democracias ocidentais e a idéia de pacifismo nem sempre pode ser observada na sociedade internacional contemporânea, uma vez que no decorrer do tempo esses Estados também promoveram políticas que serviram para impedir a democratização e “aumentar os conflitos internos e externos em outras nações, tais como o desenvolvimento do colonialismo e o apoio a ditaduras nos continentes africano, asiático e na América Latina.”95

Para Czempiel (1997), para que a idéia kantiana de republicanização possa produzir efeitos, faz-se necessário introduzir um novo pré-requisito: a igual ______________

93

CZEMPIEL, 1997, p. 124.

94

CZEMPIEL, loc. cit.

95

distribuição dos ônus entre todos os membros (cidadãos) da república. Apenas aqueles que, por obrigação e dever, precisarem combater pessoalmente, custear a e assumir parte da dívida adquirida pela guerra, serão contra ela.96

Na visão do referido autor, é exatamente isto o que acontece com freqüência nas democracias ocidentais: “Através do dimensionamento da guerra, do sistema de recrutamento das forças armadas e do sistema tributário, os governos dispõem da possibilidade de distribuir os ônus de forma muito desigual”.97

Dessa forma, os governos cortam o elo entre o interesse e o ônus, o que contraria a proposta de Kant. Czempiel explica este processo analisando como exemplo o intervencionismo americano, sob uma perspectiva kantiana:

Durante a Guerra do Vietnam, na qual foram recrutados também os jovens da classe dominante dos Estados Unidos, o teorema de Kant funcionou vigorosamente; foi a sociedade, que forçou o sistema político do país a encerrar essa guerra, por meio das suas exigências apresentadas no Congresso. As lições extraídas desse processo produzem efeitos até meados da década de 1990. Hoje o pressuposto de uma intervenção militar dos Estados Unidos é a sua brevidade e a expectativa de perdas reduzidas do lado americano. Os presidentes fazem tudo para que o teorema de Kant destarte nem chegue a produzir efeitos.98

Ainda em relação aos fatos históricos ao longo do último século, percebe- se a pretensão de fomentar a universalização de valores ocidentais liberais por meio de ações internacionais não-pacifistas na sociedade internacional, o que contraria o republicanismo de Kant, além de ferir o cosmopolitismo kantiano, que confere aos povos o direito de manterem seus valores culturais (TRINDADE, 2007, p. 94).

Além desta questão, outro componente presente na problemática envolvendo democracia e paz é o recurso da violência por países democráticos, o que intensifica a discussão acerca dos argumentos de que democracias são mais pacíficas do que governos não-democráticos.

Esta problemática é compartilhada pelo filósofo Outfried Höffe:

Statistics confirm that democracies are at least as susceptible to war as nondemocracies. In the period from 1945 onward, Great Britain, France and the United States were at the top of the list of belligerent nations, whereas in the period from 1816 to 1980 the ranking was headed by France and followed successively by England, Russia, Turkey, Italy and China.99

______________

96

CZEMPIEL, op. cit., p.133.

97

Ibid., op. cit.

98

Ibid., op. cit.

99

HÖFFE, Outfried. Kant’s Cosmopolitan Theory of Law and Peace. Translated by Alexandra Newton. New York: Cambridge University Press, 2006. p. 187.

Para Höffe, portanto, regimes democráticos têm uma inclinação para a paz, por isso eles hesitam em envolverem-se em conflitos. Isto não significa, porém, que eles sejam adversos à guerra.

O ponto de vista de Höffe coincide com o de Habermas, na seguinte passagem:

Na verdade, exigências histórico-estatísticas demonstram que Estados de constituição democrática não travam menos guerras do que regimes autoritários (de um tipo ou de outro); demonstram, porém, que esses Estados se comportam de maneira menos belicista nas relações entre si.100 Czempiel (1997) explica que o recurso à violência da parte de regimes democráticos contra regimes não democráticos surge, em primeiro lugar, de muitas distorções no processo de instauração da paz e de uma política externa não violenta, principalmente em decorrência da influência de grupos de interesses particulares. Em segundo lugar, o autor aponta a influência do dilema de segurança101nas relações com outras grandes potências, que pode ser comprovado no período da Guerra Fria, durante o conflito Leste-Oeste.102

Entretanto, embora o dilema de segurança esteja presente nas relações entre os Estados, evidências empíricas comprovam que as democracias têm de fato uma aversão efetiva contra a violência.103 Dessa forma, é possível perceber que Kant mostrou a relação entre a constituição republicana de um país (democracia) e sua política externa, considerando o foedus pacificum (organização internacional) como condição fundamental para a efetivação da paz, o que pode ser percebido hoje nos princípios jurídico-filosóficos da União Européia, por exemplo. A importância da organização internacional para romper o dilema de segurança, através da relação entre democracia e foedus pacificum é, portanto, a direção apontada por Kant para a efetivação da paz.

______________

100

HABERMAS, op. cit., p. 201.

101

Czempiel define que, à medida em que a estrutura anárquica do sistema internacional força os países à prevenção da segurança por meio de esforço armamentista para fins defensivos, ela cria um fenômeno que o autor denomina dilema de segurança. Esse dilema é definido da seguinte maneira: “a prevenção da segurança de um país será interpretada pelo outro país como preparativo de uma ofensiva, resultando daí corridas armamentistas e, eventualmente, guerras.” In: CZEMPEIEL, 1997, p.126.

102

CZEMPIEL, op. cit., p. 140.

103

3.3 RELEITURA DO OPÚSCULO À PAZ PERPÉTUA SEGUNDO ESTUDOS

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