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Elementos da paz kantiana nas relações internacionais no período pós-guerra fria

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ELEMENTOS DA PAZ KANTIANA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO PERÍODO PÓS-GUERRA FRIA

Florianópolis 2011

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ELEMENTOS DA PAZ KANTIANA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO PERÍODO PÓS-GUERRA FRIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de graduação em Relações Internacionais, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel.

Orientador: Prof. Dr. Rogério Santos da Costa

Florianópolis 2011

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ELEMENTOS DA PAZ KANTIANA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO PERÍODO PÓS-GUERRA FRIA

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado à obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais e aprovado em sua forma final pelo Curso de Relações Internacionais, da Universidade do Sul de Santa Catarina.

_____________, _______ de __________________ de 2011. Local dia mês ano

Professor e orientador Rogério Santos da Costa UNISUL

Professor Márcio Roberto Voigt UNISUL

Professor José Ricardo Tavares UNISUL

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Agradeço aos ensinamentos da vida, através da natureza e do tempo.

Ao meu pai, Gerson, que apesar das dificuldades trabalhou – e trabalha – para me possibilitar viver experiências enriquecedoras para minha formação, como curso de língua estrangeira, intercâmbio acadêmico e todas as demais oportunidades e desafios que me acompanham como estudante de graduação.

À minha mãe, Roseli, por tanto contribuir para minha formação. Ter acompanhado seus esforços e conquistas como educadora ao longo dos anos foi determinante para a ampliação da minha visão sobre o mundo, despertando meu interesse por Filosofia e Relações Internacionais.

À minha irmã, Sibele, pelo exemplo de coragem e amor.

À professora Milene, do CFH/UFSC, por me emprestar seus livros e por contribuir indiretamente com este projeto através de suas exposições em Ética II.

Ao professor Rogério, da UNISUL, por me conduzir e apoiar através de seus conhecimentos, incentivando e ampliando minhas reflexões.

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“O virtuoso atinge sua meta sem utilizar a força. Conquista sem infligir sofrimento, sem destruir, sem orgulho, sem explorar o próprio sucesso, e depois pára. Vence sem violência.” (Lao Tsé – O Livro do Caminho Perfeito)

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Esta pesquisa pretende investigar os elementos do projeto kantiano À Paz Perpétua presentes na sociedade internacional contemporânea. O tema paz e a necessidade de estabelecer uma relação pacífica entre os Estados encontram-se cada vez mais no centro das relações internacionais contemporâneas. O século XX, embora marcado por evoluções e descobertas científicas e tecnológicas, foi um dos mais sangrentos na história da humanidade. O século XXI, de forma semelhante, é caracterizado por uma primeira década sangrenta. Assim, torna-se evidente que a busca pela paz permanece sendo um grande desafio para a comunidade internacional, e é sem dúvida uma das grandes preocupações deste novo milênio. No contexto da filosofia kantiana de paz, a natureza humana é um estado de guerra, pois mesmo que não exista uma explosão de hostilidades, existe sempre uma constante ameaça. Para Kant, uma paz perpétua deve ser instaurada com a substituição desse estado de natureza por um estado civil, através de estruturas jurídico-institucionais criadas pelo direito público. A pesquisa, inicialmente, descreve a obra e apresenta os artigos preliminares e definitivos que a compõem, tratando também das motivações que levaram o autor a escrevê-la. No segundo capítulo, descreve a percepção dos autores contemporâneos sobre os temas kantianos presentes na obra, como a idéia de soberania, direito cosmopolita, federação de Estados e constituição republicana. No terceiro capítulo, são apresentadas releituras que alguns autores contemporâneos desenvolveram considerando a idéia kantiana de paz. Identifica que apesar do projeto À paz perpétua ter sido publicado há mais de dois séculos, o tema da obra kantiana continua atual e relevante num momento em que se buscam alternativas para solucionar as relações de conflitos no mundo.

Palavras chave: Paz Perpétua. Relações Internacionais. Comunidade Internacional. Kant.

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This paper intends to investigate how current are the elements of the Kantian project To the Perpetual Peace in the contemporary international society. The subject peace and the necessity of establishing a pacific relation among nations are each more time in the core of contemporary international relations. The twentieth century, although marked by developments and breakthroughs, was one of the bloodiest in human history. Similarly, the twenty first century is marked by a first bloody decade. Therefore, it is clear that the search for peace remains a great challenge for the international community, and it is undoubtedly a major concern in the new century. In the context of Kant’s philosophy of peace, human nature is a state of war, because even if there is not an outbreak of hostilities, there is always a constant threat. According to Kant, a perpetual peace should be established by replacing this state of nature by a civil state, through legal and institutional structures created by public law. Initially, this paper describes the project and introduces its preliminary and definitive articles, also dealing with the motivations that led the author to write it. The second chapter describes the perception of contemporary authors on the themes present in Kant's work, as the idea of sovereignty, the cosmopolitan law, federation of States, and the republican constitution. In the third chapter, are introduced some readings that contemporary authors developed considering the Kantian idea of peace. It identifies that in spite of perpetual peace project have been published for more than two centuries, the subject of the Kantian work remains current and relevant at a time when some are seeking alternatives to solve the relations of conflict in the world.

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OIG’s – Organizações Internacionais Governamentais ONG’s – Organizações Internacionais Não Governamentais

(10)

AIEA – Agencia Internacional de Energia Atômica

FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations OMS – Organização Mundial de Saúde

ONU – Organização das Nações Unidas

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization UNHCR – United Nations High Commissioner for Refugees

UNICEF – The United Nations Children's Fund

(11)

1 INTRODUÇÃO ...12

1.1 EXPOSIÇÃO DO TEMA E DO PROBLEMA... 12

1.2 OBJETIVOS... 12 1.2.1 Objetivo geral ...13 1.2.2 Objetivos específicos...13 1.3 JUSTIFICATIVA... 13 1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS... 15 1.5 ESTRUTURA DA PESQUISA... 16 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...17

3 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS...21

3.1 A PROPOSTA KANTIANA DE PAZ... 22

3.1.1 O projeto À paz perpétua...22

3.1.2 Os artigos preliminares ...24

3.1.3 Os artigos definitivos...28

3.1.4 A garantia da paz perpétua...32

3.1.5 Artigo secreto para À paz perpétua ...32

3.1.6 Primeiro apêndice: Sobre a discrepância entre a moral e a política a respeito da paz perpétua ...34

3.1.7 Segundo apêndice: Sobre a harmonia da política com a moral segundo o conceito transcendental de Direito Público...34

3.2 TEMAS KANTIANOS EM À PAZ PERPÉTUA SEGUNDO AUTORES CONTEMPORÂNEOS... 36

3.2.1 Cosmopolitismo ...36

3.2.2 Federação de Estados ...39

3.2.3 Republicanismo e democracia ...42

3.3 RELEITURA DO OPÚSCULO À PAZ PERPÉTUA SEGUNDO ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS... 47

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...53

(12)

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende investigar o opúsculo A Paz Perpétua, com a perspectiva de identificar se os elementos da referida proposta filosófica têm atualidade no âmbito das relações internacionais no período pós-Guerra Fria.

Para identificar tais elementos, é necessário conhecimento da idéia kantiana de paz perpétua e da importância da mesma para o sistema internacional, assim como conhecimento da releitura da referida obra feita por autores neokantianos.

1.1 EXPOSIÇÃO DO TEMA E DO PROBLEMA

O presente projeto tem como tema de pesquisa os elementos da obra À Paz Perpétua, com o objetivo de verificar a atualidade do ideal kantiano de paz nas Relações Internacionais no período pós-Guerra Fria, a fim de compreender se a proposta kantiana de paz ainda pode ser considerada como referencial teórico para a fundamentação de uma sociedade internacional comprometida com a paz.

Dessa forma, esse projeto pretende responder a seguinte questão: Quais são os principais elementos da proposta kantiana de paz presentes nas Relações Internacionais no período pós-Guerra Fria?

1.2 OBJETIVOS

Nesta seção serão apresentados os objetivos deste projeto, iniciando com o objetivo geral e concluindo com os objetivos específicos, que contribuirão para essa análise.

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1.2.1 Objetivo geral

Verificar como o conceito da paz kantiana e seus principais elementos estão presentes nas Relações Internacionais no período pós-Guerra Fria.

1.2.2 Objetivos específicos

a) caracterizar a filosofia kantiana de paz segundo o opúsculo À Paz perpétua; b) descrever a percepção de autores contemporâneos sobre os temas kantianos; c) apresentar uma releitura da paz kantiana segundo estudos contemporâneos.

1.3 JUSTIFICATIVA

Guerras entre Estados e disputas entre homens têm sido parte da evolução da sociedade humana. Ao longo da história, as disputas entre tribos e povoados, assim como guerras entre reinos e Estados, têm sido componentes da história da evolução política, social e econômica da humanidade. Pode-se afirmar que as guerras estão ligadas a momentos historicamente decisivos no âmbito das relações internacionais, marcados, porém, por destruição, dor e sofrimento.

De fato, muitos afirmam que sempre houve guerras, e que elas são um fenômeno tão antigo quanto o das sociedades humanas. Desde a Ilíada (primeiro registro de uma guerra ocidental) até os humanistas modernos e contemporâneos, não há registros da condição humana sem guerra. Durante todo esse período, embora perturbadora, a guerra fez parte do processo de evolução das sociedades, que viram a necessidade de se desenvolverem de forma mais dinâmica.

Entretanto, a partir do século XX, especialmente durante a Guerra Fria, as ameaças da guerra para a humanidade chegaram a pontos extremos, como a possibilidade do extermínio total de civilizações. Os avanços em desenvolvimento tecnológico-militar durante aquele período permitiram que, pela primeira vez na

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história, algumas nações lograssem de um poderio bélico capaz de acabar com a própria espécie, como as armas de destruição em massa.

Assim, pode-se afirmar que o século XX, embora marcado por evoluções e descobertas científicas e tecnológicas, foi um dos mais sangrentos na história da humanidade. De 1900 a 1996, cerca de 110 milhões de pessoas morreram durante aproximadamente 250 guerras, sendo que conflitos militares após 1945 causaram duas vezes mais mortes que durante todo o século XIX e sete vezes mais mortes que em todo século XVIII. Depois de 1945, porém, foi constituída uma ciência para o estudo da paz, guerra e conflitos, gerando a criação de uma série de centros de pesquisa em nível universitário e o avanço de estudos sobre a temática, sob a perspectiva plural de diversas ciências1.

Com a chegada do século XXI, caracterizado por uma primeira década sangrenta, torna-se evidente que a busca pela paz permanece sendo um grande desafio para a comunidade internacional, e é sem dúvida uma das grandes preocupações deste novo milênio. Com esta preocupação, surgem novos estudos sobre o tema paz, além de releituras de obras a respeito deste tema. Afinal, embora tenha sido um tema muito discutido durante todo o século XX, a paz entre os Estados (pós 1648), já havia sido foco de estudos de alguns pensadores no campo da filosofia política, entre eles, Immanuel Kant.

Kant foi um marco para a filosofia política por ser o primeiro autor a sistematizar na forma de um tratado jurídico-político as condições para se garantir a paz perpétua entre as nações, acrescentando a idéia de direito cosmopolita e da razão como estrutura para a construção da paz. Além disso, um dos principais aspectos presentes na obra de Kant trata da republicanização dos Estados, pois para Kant, somente as Repúblicas (atual modelo democrático) seriam pacíficas. Por isso, apesar do projeto À paz perpétua ter sido publicado há mais de dois séculos, o tema da obra kantiana continua atual e relevante num momento em que se buscam alternativas para solucionar as relações de conflitos no mundo.

Os princípios kantianos para o estabelecimento de uma paz duradoura, ou perpétua, ficaram estagnados até o século XX por serem considerados utópicos e não praticáveis. Porém, com a série de guerras e conflitos mundiais que foram se ______________

1

FERGUSON, Niall. The War of the World. Twentieth-Century Conflict and the Descent of the

(15)

desenvolvendo ao longo daquele século, ficou evidente que a paz mundial não poderia ser mantida apenas através de um sistema de equilíbrio de forças e poder. A partir desta percepção, as teses kantianas sobre a paz passam a ser mais respeitadas.

O grau de influência da obra kantiana encontra-se, por exemplo, na fundamentação filosófica e jurídica de organizações como a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas (ONU). Ambas foram criadas a partir da idéia de que, para evitar ou limitar a guerra, seria necessário estabelecer um organismo internacional que tivesse como objetivo garantir a paz entre os povos.

A importância do tema paz, tratado por Kant há mais de dois séculos e por muitos pensadores contemporâneos, continua a desafiar o progresso das relações internacionais num mundo cada vez mais globalizado. Esse é um tema interessante não apenas para o universo acadêmico, em que novas idéias e teorias podem colaborar para a construção de um mundo mais pacífico, mas também é de interesse da comunidade em geral e de todos os povos, dignos de conviver numa sociedade pacífica. Além disso, a paz deveria ser interesse de todos os governos, de forma que numa situação de guerra, as relações harmoniosas entre Estados e o bem estar de todos os povos são vilipendiados pela violência e pelo sofrimento.

Este projeto buscará apresentar a atualidade dos elementos da paz kantiana nas relações internacionais contemporâneas considerando fenômenos característicos da sociedade internacional e da análise da releitura de autores neo-kantianos, que, ao repensar as idéias kantianas de acordo com os novos tempos, estão reconstruindo a idéia de paz perpétua.

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia adotada na pesquisa pauta-se, quanto à abordagem, predominantemente pelo método dedutivo e, quanto ao procedimento, pelo método monográfico, utilizando-se da técnica de pesquisa bibliográfica em fontes primárias e secundárias.

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1.5 ESTRUTURA DA PESQUISA

No primeiro capítulo será apresentado o conteúdo do opúsculo À Paz Perpétua, além de expor brevemente as motivações de Kant para escrevê-lo. Kant estruturou sua obra em forma de um tratado de paz – apesar da profundidade da linguagem filosófica utilizada –, composta por seis artigos preliminares, três artigos definitivos, dois suplementos e dois apêndices, que são apresentados nesta seção.

No segundo capítulo, será trabalhada a percepção de autores contemporâneos sobre alguns dos temas kantianos em À Paz Perpétua, como o cosmopolitismo, a federação de Estados e a constituição republicana.

E por fim, no terceiro capítulo será apresentada uma releitura da paz kantiana, identificando os elementos que se encontram presentes no âmbito das relações internacionais contemporâneas a partir de autores neokantianos.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A idéia kantiana de paz é fundamentada em argumentos que o filósofo desenvolveu nos artigos preliminares e definitivos de sua obra. Uma das principais premissas que Kant sustenta para sua fundamentação é que o estado de natureza dos homens deve ser superado e substituído pelo estado civil, o que só aconteceria através de estruturas jurídico-institucionais criadas pelo direito público. Para Kant, apenas assim será possível a construção de uma paz mundial duradoura:

O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão de hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante. Deve, portanto, instaurar-se um estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança2

A evolução histórica da humanidade é um dos elementos fundamentais da filosofia política de Immanuel Kant, que influenciou decisivamente a construção do projeto filosófico À Paz Perpétua, num período histórico caracterizado pelo desenvolvimento de grandes obras sobre ética e moral, conforme analisa Cabral:

Immanuel Kant foi um filósofo prussiano de Königsberg que escreveu sob diversos assuntos. Entre as inúmeras obras kantianas, destacam-se a questão do conhecimento e da ética, sendo esta última responsável por inaugurar no século XVIII uma nova forma de se pensar a mesma, criando fundamentos que ao longo da história foram basilares em discussões sobre os mais diversos assuntos.3

Os acontecimentos históricos da Europa do século XVIII foram fundamentais para a consolidação do pensamento de Kant em relação aos princípios da liberdade e da igualdade no plano ético4. Como um observador privilegiado de uma época de Iluminismo, quando a tendência do povo era a ______________

2

KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão. Lisboa-Portugal: Edições 70, 2004. p. 126.

3

CABRAL, Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes. A Atualidade da Obra “A Paz Perpétua: Um

Projeto Filosófico” de Kant Frente à Discussão Sobre Governança Global. Centro de Direito

Internacional. 2010. p. 277.

4

GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito. Kant e Kelsen. 2. ed., rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Mandamentos. 2004. p. 124.

(18)

aquisição de liberdade intelectual, Kant é influenciado pelo simbolismo da Revolução Francesa no direito, na política e na filosofia da história, verificando que o progresso está relacionado com a forma republicana das instituições políticas e o aprimoramento das instituições sociais. Esse progresso identificado por Kant nada mais é senão o fruto de uma racionalização da história, que congrega diferentes manifestações humanas em todo o mundo, tendo como marco regulador o legado da Revolução Francesa.5

O projeto À Paz Perpétua, segundo Brauer (1997) é a principal peça da filosofia da história kantiana, pois ao afirmar o progresso da história, Kant não aceita que o fim da história seja a guerra, por uma insuficiência dos Estados - já que estariam livres para a autodeterminação e, portanto, longe da proposta de Kant de Estados republicanos aliados a uma federação de nações como fundamento essencial para uma condição de paz futura.6

A relação que Kant estabelece entre história, política e direito cosmopolita, é a forma que o filósofo usa para garantir o estabelecimento da paz perpétua no “fim da história”.7 Para Kant (2004 apud Deon, 2005), a “análise da história permite afirmar o processo de emancipação do homem e seu desejo de realizar a paz, pois a humanidade progride em direção ao melhor”.8

Passados mais de duzentos anos após sua publicação, o tema da obra kantiana continua atual - embora o conceito de paz tenha sofrido um processo de redefinição9-, não apenas por ser uma alternativa para construir uma paz duradoura no mundo, mas também porque Kant, “ao fundar a moral e o direito, pretendeu dar ______________

5

LOPARIC, Zeljko. Kant, revolução ainda em curso. In: Jornal A Tarde. Suplemento Cultural. Salvador, 16 Set. 2004.

6

BRAUER, Daniel. Utopia e historia en el proyecto de Kant de uma “paz perpectua”. In: ROHDEN, Valério (Co-ord). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, Goethe-Insitut/ICBA, 1997. p. 210 – 221.

7

DEON, Everson. Conflito e paz perpétua em Kant. 2005. 147 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. p. 44.

8

DEON, loc. cit.

9

Sobre esse processo, “pode-se afirmar que nos dois últimos séculos, principalmente no século XX, ocorreu uma mudança na compreensão da paz nas mais diversas disciplinas, tais como, na Filosofia, na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Pode-se dizer que até o século XX, predominava uma concepção restrita e negativa de paz, para a qual, a paz era ausência de guerra. A partir do século XX, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, surgiu uma nova área de estudos, chamada Estudos de Paz ou conhecida também, pelo seu nome inglês Peace Research.” In: OLIVEIRA, Ariana Bazzano de. O percurso do conceito de Paz: de Kant à atualidade. In: SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), 1., 2007, São Paulo,

Anais eletrônicos... Disponível em:

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ao homem moderno, que se organiza em seu mundo de ação social, a consciência de sua posição nesse mundo”.10 Nesse sentido, Cabral (2010) reconhece que “no contexto internacional, o ideal kantiano prevalece para dar ao mundo rumo nas tentativas gloriosas da globalização, sem com isso perder de vista a soberania dos Estados nem a postura global”.11

Entretanto, durante o tempo histórico que se desenvolveu após a publicação de À Paz Perpétua, a sociedade internacional enfrentou uma permanente instabilidade entre a paz e a guerra, como Guerras Mundiais, regimes ditatoriais violentos, políticas de pureza da raça, holocausto, conflitos ocasionados pela guerra fria, genocídios como em Ruanda, além dos conflitos causados por sentimentos nacionalistas projetados para favorecer governos totalitários.

Com a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, iniciou-se uma nova era de incertezas e expectativas em relação ao futuro das relações internacionais, que até aquele momento ocorriam sob clima hostil e tenso devido às disputas político-ideológicas entre duas potências militares que lutavam pela hegemonia de poder.

Francis Fukuyama (1992) foi o pioneiro das teorias sobre a nova ordem mundial. Através de um ensaio publicado em 1989, e que mais tarde tornar-se-ia livro, proclamou o “fim da história”. Para Fukuyama, o fim do conflito ideológico que hostilizava as relações entre as potências estaria encerrado em consequência da suposta vitória da ordem liberal do ocidente. Não haveria mais disputas geopolíticas em que um Estado enfrentaria rivalidades com outros, diretamente.12 Em contrapartida, Samuel Huntington (1997) afirmou em “O choque das civilizações” que o mundo pós – Guerra Fria seria o cenário de confrontos entre as civilizações. Segundo Huntington, o mundo se fragmentaria em zonas culturais hostis uma às outras, avessas ao diálogo e fechadas em suas certezas.13 Por outro lado, Paul Kennedy (1991) apostou no desaparecimento da hegemonia americana e a sua substituição por um poder equilibrado, no curto prazo.14

Embora muitos especialistas tenham arriscado essas e outras teorias sobre uma nova ordem mundial após a dissolução da União Soviética, continuamos ______________

10

HERRERO, Francisco Javier. A ética em Kant. Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 28, n. 90, 2001.

11

CABRAL, op. cit., p. 304.

12

FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro, Rocco, 1992.

13

HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações. São Paulo: Objetiva, 1997.

14

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a nos referir a este período como “pós-Guerra Fria”. Até hoje, não foi estabelecida uma nova denominação para caracterizar o cenário das relações internacionais definitivamente. Contudo, ao passo que novos desafios surgiram nesse período caracterizado por globalização; tecnologia; questões étnicas e religiosas; disputas separatistas; governos ditatoriais e conflitos envolvendo temas complexos, surgiram também novas formas de guerra, o que têm afastado da prática o ideal de paz kantiano baseado na razão e em princípios jurídicos e políticos.

Diante de todos os fenômenos resultantes da transição da sociedade internacional moderna para a sociedade internacional contemporânea, alguns críticos consideram os artigos do projeto À paz perpétua uma utopia filosófica, conforme analisa Genro:

Creio que é necessário pensar, em busca da paz possível, num outro conceito de sociedade. Num outro conceito de nação. Num outro conceito de cidadania. Num outro conceito de soberania. E a partir destes conceitos, desta “soberania interdependente”, deste Direito interno forjado na

heteronomia das relações internacionais, com base nos princípios

éticos-morais universais de Kant, pensar numa ética e numa política internacional

completamente diversa daquela que ele propunha no seu mundo e que, à sua época, foi absolutamente contemporânea.15

Em relação a essa evolução histórica da sociedade internacional, Habermas (2002) apresenta aspectos que pedem uma releitura do projeto kantiano para a criação de uma paz duradoura:

Kant pensava aí em conflitos, especialmente delimitados entre Estados e alianças em particular, e não em guerras mundiais. Pensava em guerras travadas entre gabinetes e Estados, e não em guerras nacionais ou civis. Pensava em guerras tecnicamente delimitadas, que permitem a distinção entre tropas de combate e população civil, mas não em guerrilhas e terrorismo. Pensava em guerras com objetos politicamente delimitados, e não em guerras de aniquilamento, ideologicamente motivadas.16

Por outro lado, durante esse mesmo período de transição histórica da sociedade internacional, ocorreram fatos positivos, alguns já idealizados por Kant, tais como a criação da Liga das Nações e da Organização das Nações Unidas, a emergência do constitucionalismo, dos regimes políticos democráticos e do reconhecimento dos direitos humanos e da cidadania nas constituições internas da ______________

15

GENRO, Tarso. A “Paz perpétua” no mundo atual. In: ROHDEN, Valério (Co-ord.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 240.

16

HABERMAS, Jürgen. A idéia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos. In: HABERMAS, Jügen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. George Sperber. Tradução de Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p.195.

(21)

maioria dos Estados, bem como a construção de um arcabouço normativo internacional de direitos humanos, através da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e dos Pactos sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.

Os desafios para a paz kantiana evoluíram com a sociedade internacional e com as ameaças à paz contemporânea. No entanto, para os estudiosos de Kant, o projeto não oferece um modelo pronto para atingir a paz, mas apresenta idéias reguladoras que possibilitam uma ordem cosmopolita e buscam superar particularidades religiosas, culturais e políticas.

Neste sentido, é evidente que Kant, ao tratar sobre o tema da paz elevando-o à categoria jurídica-política, antecipou necessidades e problemas dos séculos seguintes, tratando de um tema que se encontra hoje no centro da política atual: a pacificação das relações entre Estados.17

3 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Este capítulo é dividido em três seções. Na primeira, é realizada uma apresentação da proposta kantiana de paz, expondo os artigos preliminares e definitivos que a compõem. Em seguida, é apresentado o argumento de Kant para a garantia da paz perpétua, seguido por um artigo secreto e dois apêndices. Na segunda seção, são apresentadas opiniões de autores neokantianos sobre três temas fundamentais que compõem a obra À Paz Perpétua: Cosmopolitismo, Federação de Estados, e Republicanismo e Democracia. Finalmente, na última seção, é apresentada uma releitura da obra segundo teóricos neokantianos.

______________

17

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3.1 A PROPOSTA KANTIANA DE PAZ

3.1.1 O projeto À paz perpétua

O opúsculo À Paz Perpétua foi escrito pelo filósofo Immanuel Kant em outubro de 1795 na forma de um projeto filosófico para a construção de uma paz duradoura entre os homens.18

Segundo Cabral (2010), uma paz duradoura é o objetivo último da filosofia de Immanuel Kant para manutenção da liberdade, algo que o filósofo buscava desde o início do período crítico, quando é demonstrada a construção filosófica de liberdade, seguido por sua apresentação prática e concluindo com o opúsculo À Paz Perpétua. Assim, pode se afirmar que um dos principais fundamentos do projeto kantiano para uma paz eterna concentra-se na conservação da autonomia humana, trabalhada durante toda filosofia kantiana19.

Além dos temas que o próprio Kant trabalhou durante os anos que antecederam a publicação do opúsculo, muitos acontecimentos externos exerceram influências sobre Kant e sua obra. Para Delgado20, a filosofia política de Kant foi influenciada por diversos fenômenos sociais e políticos de sua época, como a Revolução Francesa e a corrente iluminista, sua formação religiosa, o governo absolutista dos Fredericos na Prússia, a intensificação do comércio marítimo e as guerras entre Estados europeus. Essa mesma percepção é compartilhada por Volker Gerhardt:

A motivação externa do escrito é um tratado de paz, a saber, o Tratado de Basiléia, assinado em 5 de abril de 1795, entre a Prússia e a França. Esse tratado revestiu-se de elevado valor simbólico, pois foi nele que a revolucionária república francesa foi pela primeira vez reconhecida na sua forma jurídica e nos seus limites territoriais por uma potência monárquica. [...] Com essa referência já se manifesta a intenção política do pequeno escrito de Kant: ele deve ligar o acontecimento histórico do tratado de paz

______________

18

ROHDEN, Valério (Coord.). Kant e a instituição da Paz. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 11.

19

CABRAL, op. cit., p. 290.

20

DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Cosmopolitismo e os dilemas do humanismo: as relações internacionais de Al-Farabi a Kant. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.). Configuração dos

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com o impulso libertário-republicano da revolução, colocando-o em uma perspectiva de política mundial.21

Kant, no decorrer de sua obra, aponta para princípios inovadores e também para aqueles que já são vistos como requisitos imprescindíveis para elaboração de qualquer constituição ou legislação de âmbito internacional, pautado nos princípios do que hoje se entende como Estado Democrático de Direito, o que seria para Kant, à época, como os princípios do republicanismo.

Estruturalmente, A Paz Perpétua é composta por seis artigos preliminares, três artigos definitivos, dois suplementos e dois apêndices. Inicialmente, os seis artigos preliminares possuem caráter proibitivo (1º, 5º e 6º) e mandatário (2º, 3º e 4º), para que a liberdade possa ser alcançada nos Estados. Em seguida, Kant expõe os artigos definitivos, para a permanência das liberdades e como consequência do alcance da Paz.

No primeiro suplemento, Kant busca avalizar a paz perpétua apresentando a idéia de natureza e a forma como ela busca estabelecer a harmonia entre os homens. O segundo suplemento trata-se de um artigo secreto para a paz perpétua, no qual Kant aconselha a consulta aos filósofos em casos de resolução de conflitos entre Estados, pressupondo que a razão dos governantes é corrompida pelo poder.

No primeiro apêndice Kant trata a moral e a política, criticando o desacordo entre esses temas em ações de políticos. No segundo apêndice, buscando demonstrar a proximidade entre seu projeto de paz e o Direito, Kant apresenta premissas condicionais para que harmonia entre moral e política seja estabelecida.

Ironicamente, considerando sua estruturação, À Paz Perpétua foi escrita na forma de um tratado de paz, apesar de ser considerada por muitos como uma obra filosófica complexa, contendo elementos básicos da doutrina do Direito, filosofia da história, filosofia política, dever e moral.22

______________

21

GERHARDT, Volker. Uma teoria crítica da política sobre o projeto kantiano À paz perpétua. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997, p. 40-41.

22

(24)

3.1.2 Os artigos preliminares

Nos artigos preliminares, Kant apresenta as condições necessárias para o término de guerras entre Estados, com o objetivo de possibilitar o estabelecimento de uma paz duradoura.

Segundo Cabral (2010), os artigos preliminares foram introduzidos por Kant como “direção para os Estados no caminho da restituição das liberdades”, já que a liberdade, como fundamento da justiça, está no centro da filosofia kantiana. Ao esclarecer inicialmente as condições necessárias para o fim do estado bélico e para o tratado de paz23, os artigos preliminares criam a base sob a qual, nos tratados definitivos, serão desenvolvidas as condições necessárias para a efetivação da paz.24

No primeiro artigo, Kant afirma que “não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura”.25

Kant critica a hipocrisia presente em tratados que, ao invés de erradicar as causas de conflitos e guerras, deixam lacunas que podem favorecer uma guerra futura. Rohden assim avalia o primeiro artigo preliminar:

Uma paz que não seja perpétua não passa de um armistício, o qual, sem hostilidade declarada, em geral identifica-se com um estado de guerra, como por exemplo, o vivido durante o último meio século com a corrida armamentista. O tratado ou armistício são encenações da paz.26

A paz para Kant significa o fim de todas as hostilidades, e por essa razão a paz deve ser o objetivo último de tratados celebrados para solucionar conflitos de forma pacífica, o que exige propósitos firmes dos Estados celebrantes.27

Em relação a este detalhe fundamental para a obra kantiana de uma paz duradoura que não pode ser postergada através de tratados ou acordos que visam ______________

23

Cavallar deixa claro que “a paz preliminar ou provisória ainda não exclui a guerra, mas proíbe determinados atos, que estão em contradição com a idéia de uma comunidade jurídica e, por conseguinte, com uma comunidade pacífica de povos livres”. CAVALLAR, Georg. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano À Paz Perpétua. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a

instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997. 24

CAVALLAR, Georg. A sistemática da parte jusfilosófica do projeto kantiano À Paz Perpétua. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 79.

25

KANT, op. cit., p. 120.

26

ROHDEN, op. cit., p. 13.

27

(25)

manter uma situação suscetivelmente conflituosa, Luiza Gerhardt diz:

Traçando um paralelo com o mundo contemporâneo, pode-se observar que o tratado que pôs fim à Primeira Guerra Mundial também colaborou, por meio das suas consequências, para a eclosão da Segunda Grande Guerra, ainda mais devastadora do que a Primeira. No Oriente Médio, o conflito entre árabes e israelenses se arrasta há anos, com a quebra sistemática de acordos de trégua, que fracassam justamente por não contemplarem as causas básicas do desentendimento entre os dois povos.28

Kant condena assim a intenção secreta de uma guerra futura (reservatio mentalis), que elimina qualquer possibilidade de um estado de paz perpétua.

No segundo artigo, Kant convenciona que “nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação”.29

Neste artigo, Kant trata da soberania dos Estados, alertando que o Estado não é patrimônio ou bem, passível de negociação. A crítica de Kant concentra-se na idéia de Estado como objeto do soberano, idéia oposta à concepção personalista de Estado idealizada pela Revolução Francesa, defendida por Kant.30

Kant chama a atenção também para a possibilidade de aquisição de um Estado por outro, seja por herança, troca, compra ou doação, que representa uma lesão aos Estados vizinhos, concedendo-lhes assim o direito à guerra preventiva e, portanto, ameaçando a paz. Um Estado que cresce dessa forma torna-se uma potentia tremenda31, como explica Cavallar na seguinte passagem:

Mas como um Estado se pode tornar uma “potentia tremenda”? Isso se dá ou pela aquisição de territórios ou pelo aumento do seu território ou precisamente pela escalada armamentista. O segundo artigo preliminar dirige-se contra essa primeira possibilidade [...]32

Segundo Kant (2004 apud CAVALLAR, 1997), o “Estado é uma sociedade de pessoas, sobre a qual ninguém além dele mesmo deve dispor”. Em outras palavras, o Estado é uma pessoa moral, mais precisamente, uma pessoa jurídica. ______________

28

GERHARDT, Luiza Maria. À paz perpétua, de Immanuel Kant. Revista Educação PUCRS. Porto Alegre, p. 143 – 154, n. 1, Jan/Abr. 2005. p. 144.

29

KANT, op. cit., p. 121.

30

TRINDADE, Luciano José. A atualidade dos elementos da proposta kantiana À Paz Perpétua

na sociedade internacional contemporânea. 2007. 210 f. Dissertação (Mestrado em Direito) –

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. p. 14.

31

“Terrífica grandeza”. In CAVALLAR, op. cit., p.80.

32

(26)

No terceiro artigo, Kant estabelece que “os exércitos permanentes (Miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente”.33

Neste artigo, Kant tenta mostrar que potências armamentistas constituem um risco para a paz, pois ao praticar a política armamentista com o objetivo de assegurar a defesa do próprio território, um Estado está incitando outros a se armarem ainda mais, resultando assim numa guerra inevitável, pois estão sempre prontos para ela.34

A visão de Kant parece distante da realidade dois séculos após sua análise. Poucos são os Estados que não determinaram o serviço militar obrigatório e não mantém as forças armadas permanentemente responsáveis pela defesa de seu território, por vias marítima, aérea e terrestre. Valério Rohden chama a atenção para o fato de a obra kantiana ter sido escrita no século XVIII, e que muitas coisas mudaram desde então:

As condições mudaram essencialmente. Vivemos na época da ameaça nuclear e da deterrence, na qual a guerra de agressão só pode ser iniciada com riscos extraordinários. Via de regra, ela acaba atraindo regiões inteiras e constelações de forças internacionais para o conflito de modo que a guerra breve, descrita por Kant – como mostra o exemplo da ex-Iugoslávia – parece ser mais um fenômeno do passado.35

Entretanto, o mesmo autor mostra que a argumentação de Kant pode ser apropriada para a definição do cenário da Guerra Fria, mesmo que esta não tenha terminado em “guerra quente” entre as potências daquele período. A principal origem das hostilidades que ameaçavam a paz naquele período estava na disposição das duas grandes potências de estarem sempre armadas para a guerra. Esse estado de circunstâncias descrito por Kant, segundo Ernst-Otto Czempiel (1997 apud WOLFGANG, 1997), tornou-se o dilema da segurança dos estados modernos, como uma causa da escalada armamentista e como uma causa de conflitos bélicos.

A manutenção de exércitos que exigem grandes investimentos tornam a paz mais onerosa do que uma guerra curta, porque os exércitos são em si causa de guerras para que o peso do investimento seja desfeito.36 Além disso, Kant critica a ______________

33

KANT, op. cit., p.121.

34

WOLFGANG, Thierse. A paz como categoria política e desafio político. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 163.

35

ROHDEN, op. cit., p. 30.

36

(27)

instrumentalização de seres humanos e dos soldados pelo Estado, que exige que matem ou morram por propósitos que não são seus.

No quarto artigo, Kant afirma que “não se devem emitir dívidas públicas em relação com os assuntos de política exterior”.37

Kant condena a dívida feita com o objetivo de iniciar ou manter uma guerra, cujo pagamento será efetuado com recursos públicos. O dinheiro gasto com fins militares deixa de beneficiar o povo, pois poderia se investido em educação, saúde, e em outros setores públicos.

No quinto artigo, Kant estabelece que “nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado”.38

Novamente Kant trata da soberania dos Estados, defendendo o direito de autonomia que não permite a intromissão de um Estado nos assuntos internos de outro, como explica Luiza Gerhardt:

A autonomia é um direito de um povo que deve ser respeitado, defende Kant, e a sua violação acarreta a fragilidade desse mesmo direito de outros Estados. Assim, a invasão de um Estado por outro provoca uma instabilidade generalizada, justificando a manutenção de exércitos para a defesa em caso de ataques semelhantes.39

No sexto artigo, Kant expõe que “nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (precurssores), envenenadores (venefici), a quebra da capitulação, a instigação à traição (perduellio) etc.”.40

No último artigo preliminar, Kant trata da doutrina da guerra justa, afirmando que no caso de uma guerra eclodir - embora isso não seja desejável -, devem ser mantidas atitudes que resguardem a confiança mútua para uma paz futura.

Apesar de criticar o direito à guerra, Kant (2004 apud NOUR, 2003), sustenta que “se há que se falar num direito da guerra, então sua lei deve ser a de conduzir a guerra segundo princípios pelos quais seja possível sair deste estado de natureza nas relações entre os Estados e entrar num estado jurídico”.

______________

37

KANT, op. cit., p. 122.

38

Ibid., p. 123.

39

GERHARDT, op. cit., p. 146.

40

(28)

Para Kant, não deve existir qualquer atitude que viole a confiança dos adversários numa guerra, como espionagem, assassinato, instigação à traição e emboscadas.41

3.1.3 Os artigos definitivos

Tendo apresentado as condições necessárias para a construção de uma paz perpétua, Kant passa a se ocupar dos artigos definitivos, que contém os princípios jurídicos para a configuração de cada nível de relações.

Quando todas as determinações dos artigos preliminares são cumpridas, o que se atinge é um “estado de ausência de guerra”, o que é insuficiente para a instauração de uma paz duradoura.42 Segundo Cavallar (1997), os artigos preliminares não detalham em que consiste positivamente o estado de paz internacional, por isso, os três artigos definitivos têm o objetivo de mostrar os principais passos que deve dar a humanidade para o alcance da paz.

Kant busca demonstrar que a ausência de leis (estado natural) constitui um estado de guerra em potencial,43e que a instauração de um estado pacífico deve acontecer através da criação de um estatuto jurídico em três níveis:

 Direito Público dos cidadãos, que trata das relações entre os cidadãos de um estado (indivíduo-indivíduo);

 Direito das Gentes, que trata da relação entre os estados (Estado-Estado);

 Direito Cosmopolita, que trata da relação entre os cidadãos e os Estados, aos quais eles não pertencem (Estado-indivíduo).

No primeiro artigo definitivo, Kant afirma que “A constituição Civil em cada Estado deve ser republicana”,44pois:

______________

41

TRINDADE, op.cit., p. 15.

42

CAVALLAR, op. cit., p. 83.

43

A fundamentação da argumentação de Kant de que a paz deve ser buscada por estruturas jurídico-institucionais criadas pelo direito público, pauta-se, primordialmente, da preposição de que o “estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra”. In: KANT, op. cit., p. 124.

44

(29)

A constituição republicana, além da pureza de sua origem, isto é, de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda em vista o resultado desejado, a saber, a paz perpétua; daquela é esta o fundamento [...] Pelo contrário, numa constituição em que o súbdito não é cidadão, que, por conseguinte, não é uma constituição republicana, a guerra é a coisa mais simples do mundo, porque o chefe do Estado não é um membro do Estado, mas o seu proprietário [...]45

Para Kant, o ser humano priva-se da liberdade do estado de natureza para adquirir a liberdade autônoma e geral do estado jurídico, que por sua vez só pode existir numa constituição republicana com origem na vontade pública do povo, pois, diferentemente do que ocorre nos tradicionais Estados despóticos, a constituição republicana não se preocupa apenas com a ordem estatal interna, mas também com a paz e a ordem internacional.46 Soraya Nour (2003) caracteriza a teoria contratualista de Kant sobre liberdade de estado de natureza e do estado jurídico em relação a outros contratualistas:

Kant desenvolve então uma teoria contratualista, que se distingue das de seus antecessores por não pressupor que se limite a liberdade no estado de natureza, mas sim que se a deixe totalmente para adquirir a liberdade como autonomia: o homem abandona a “liberdade selvagem e sem lei” para “reencontrar em um estado jurídico sua liberdade em geral”.47

Kant acredita que a constituição republicana é em prática pacífica por ser a única que expressa a vontade do povo, ou seja, de quem assume diretamente os encargos da guerra e, além disso, a única que se preocupa não apenas com a ordem interna de um Estado, mas também com a ordem e paz internacional, pois segundo Cavallar (1997), Kant acredita que “uma constituição republicana orientada segundo o principio de direito haverá de respeitá-lo também na esfera interestatal”.

O Republicanismo em Kant, segundo Maria Cabral (2010), está próximo do Estado Democrático de Direito, o que pode ser observado pelo seu princípio, que é o princípio político de separação dos poderes executivo e legislativo. A referida autora diferencia Republicanismo e Democracia, segundo Kant:

Republicanismo é o modo de governar, representativamente, o povo, seja quem for seu governante, ou seja, é uma forma de governo, “forma

regiminis”, diferentemente da democracia que é forma de soberania - “forma imperii” - formada por sociedade do povo, considerada, pelo filósofo,

______________

45

Ibid., p.128 - 129.

46

TRINDADE, op. cit., p. 18.

47

NOUR, Soraya. Os Cosmopolitas - Kant e os “Temas Kantianos” em Relações Internacionais. Revista Contexto Internacional, RJ, vol. 25, nº 01, jan-jun 2003, p. 14.

(30)

necessariamente uma forma de despotismo, justificando o sistema representativo como o único capaz de tornar possível uma forma republicana.48

Dessa forma, Kant acredita que somente através uma constituição republicana pode-se criar condições para a construção de uma paz perpétua, devendo ser adotada por todos os Estados.

No segundo artigo, Kant afirma que “o direito das gentes deve fundar-se numa federação de estados livres”.49

No direito das gentes clássico, a situação de hostilidade permanente entre os Estados mantinha um estado de guerra em potencial, pois as relações entre eles não eram fundamentadas juridicamente. Em outras palavras, o que prevalecia era o direito do forte sobre o fraco, como apresenta Kant:

(...) pois de outro modo a palavra direito nunca viria à boca desses Estados que se querem guerrear entre si, a não ser para com ela praticarem a ironia como aquele príncipe gaulês, que afirmava: “A vantagem que a natureza deu ao forte sobre o fraco é que este deve obedecer àquele”.50

Para Kant, uma aliança entre os povos era necessária para superar essa situação, pois da mesma forma que a união dos indivíduos em torno de um pacto social deve acontecer para que eles deixem o estado de natureza, também os Estados precisam constituir um estado jurídico entre si para superarem a natureza de guerra entre os indivíduos.51

Kant não defende a criação de um Estado com poder soberano em relação aos outros Estados, mas afirma que se deve buscar uma associação dos povos através de uma Federação de Estados, preservando a idéia de igualdade, soberania e diversidade cultural.52

No terceiro artigo definitivo, Kant afirma que “o direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”.53

Kant apresenta o direito cosmopolita como uma nova dimensão ao Direito, que até então se desdobrava em duas esferas: o direito estatal (Estado - Estado) e o direito das gentes (Estados – indivíduos). Por sua vez, o direito cosmopolita ______________

48

CABRAL, op. cit., p. 295.

49

KANT, op. cit., p. 145.

50

Ibid, loc. Cit.

51

TRINDADE, op. cit., p. 19.

52

Ibid., p. 20.

53

(31)

representa a relação Indivíduo – Mundo, que, nas palavras de Nour (2003), “considera cada indivíduo não como membro de seu Estado, mas como membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita.”

Entretanto, este direito não deve fragilizar a soberania de um Estado, limitando-se a hospitalidade, como afirma Nour:

Ao contrário dos dois artigos anteriores, o terceiro é formulado com um caráter restritivo: o direito cosmopolita limita-se ao direito de hospitalidade, não podendo ser mais do que isso. Nesse caso, o direito é lesado quando e esse era, para Kant, o problema principal de uma injusta “inospitalidade” -o que chega a um territóri-o estende s-obre ele seu impéri-o.54

Kant desenvolve a idéia de direito cosmopolita baseando-se no estado de natureza dos indivíduos que dá origem a um estado permanentemente hostil, marcado pela inexistência de leis que impedem a instauração de um ambiente pacífico, prejudicando, portanto, a segurança individual e coletiva. Para que seja instituída À Paz Perpétua, a superação desse estado de natureza deve ocorrer nas três esferas do direito, não apenas nas relações internas entre os indivíduos, mas também nas relações externas entre Estados e, finalmente, nas relações de qualquer indivíduo ou Estado como cidadão do mundo.

O direito cosmopolita, portanto, surge como uma nova dimensão jurídica capaz de conferir proteção às relações dos indivíduos como cidadãos do mundo55, como demonstra Kant:

A idéia de um direito cosmopolita não é nenhuma representação fantástica e extravagante do direito, mas um complemento necessário de código não escrito, tanto do direito político como do direito das gentes, num direito público da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perpétua, em cuja contínua aproximação é possível encontrar-se só sob esta condição.56

O clima de hostilidade presente no estado de natureza é causado pelo sentimento do medo de lesão dos indivíduos. Para Kant, esse medo deve ser eliminado através de um estado jurídico, pois só assim o estado de natureza será superado, nas três esferas do direito. Dessa forma, o direito cosmopolita abrange toda a humanidade, permitindo que todos os cidadãos desfrutem livremente dos ______________

54

NOUR, op. cit., p. 22.

55

TRINDADE, op. cit., p. 21.

56

(32)

espaços globais de um país, mantendo suas origens culturais, tornando possível a paz perpétua.57

3.1.4 A garantia da paz perpétua

No primeiro suplemento presente em À Paz Perpétua, Kant apresenta a natureza como a garantidora da paz, retomando traços básicos da filosofia da história para construir sua argumentação.58

Para Kant, a harmonia entre os homens é a finalidade originaria do curso da natureza, que o próprio Kant chama de “destino” ou “providência” 59:

O que subministra esta garantia é nada menos que a grande artista, a

Natureza (natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com

evidência uma finalidade: através da discórdia entre os homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra a sua vontade.60

Nesse sentido, Kant entende que a garantia da paz decorre do natural processo evolutivo da sociedade e de suas necessidades, independente da ação da natureza conflituosa dos homens.

3.1.5 Artigo secreto para À Paz Perpétua

No segundo suplemento, Kant recomenda, como artigo secreto para a negociação de situações de conflito entre Estados, a consulta aos filósofos, permitindo-lhes falar e ouvindo as suas reflexões sobre a guerra e a paz, pois para Kant, os filósofos não podem ser corrompidos pela possessão do poder:

Não é de esperar nem também de desejar que os reis filosofem nem que os filósofos se tornem reis, porque a posse do poder prejudica inevitavelmente o livre juízo da razão. É imprescindível, porém, para ambos que os reis, ou os povos soberanos (que se governam a si mesmos segundo as leis de igualdade), não deixem desaparecer ou emudecer a classe dos filósofos, mas os deixem falar publicamente para a elucidação dos seus assuntos, pois a classe de filósofos, incapaz de formar bandos e alianças de clube ______________

57

CABRAL, op. cit., p. 297.

58

TERRA, op. cit., p. 223.

59

KANT, op. cit., 140.

60

(33)

pela sua própria natureza, não é suspeitosa de deformação de uma

propaganda61

Considerando que a regulação jurídica das relações entre indivíduos e Estados deve estar fundamentada na racionalidade, Kant define a seguinte proposição: “As máximas dos filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública devem ser tomadas em consideração pelos Estados preparados para a guerra”.62

Dessa maneira, Kant reconhece que é necessário criar condições para comunicação e debates a fim de alcançar a racionalidade, pois apenas através do esclarecimento racional os indivíduos podem decidir sobre paz e guerra. Para Kant, o espaço para comunicação deve basear-se no princípio da publicidade63, para que todos possam alcançar tal esclarecimento.

Habermas (1997) analisa a visão de Kant sobre o princípio da publicidade na seguinte passagem:

[...] segundo a opinião pública de Kant, a opinião pública deve ganhar uma função programática à medida que os filósofos, na função de “professores públicos do direito” ou intelectuais, “falem aberta e publicamente sobre as máximas da condução da guerra e promoção da paz”, e à medida que possam convencer o público de cidadãos da correção de seus princípios.64

Segundo Habermas, portanto, a opinião pública cidadã e de cunho político “tem uma função controladora, pois ela pode impedir e concretização de intenções ‘avessas à luz do dia’, inconciliáveis com máximas publicamente defensáveis”.65

______________

61

KANT, op. cit., p.150 – 151.

62

KANT, op. cit., p. 149.

63

O princípio de publicidade, para Kant, não trata de dar conhecimento, mas de um espaço público em que qualquer norma que não se concilie com a vontade geral dos indivíduos reunidos em um contrato social seria injusta.

64

HABERMAS, op. cit., p. 204.

65

(34)

3.1.6 Primeiro apêndice: Sobre a discrepância entre a moral e a política a respeito da paz perpétua

No primeiro apêndice, Kant vai contra o moralista político frente ao político moral:

Posso pensar, sem dúvida, um político moral, isto é, um homem que assume os princípios da prudência política de um modo tal que possam coexistir com a moral, mas não posso pensar um moralista político, que forja uma moral útil às conveniências do homem de Estado.66

Segundo Kant, o político moral age de acordo com a moral e com o direito racional, tendo prudência política nas ações do Estado e favorecendo as relações pacíficas no âmbito do Estado e fora dele. O político moral, para Kant, tem como princípio o imperativo categórico, expresso na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, através da seguinte máxima: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”.67 Dessa forma, o político moral respeita os meios percorridos para alcançar determinado fim.

Por outro lado, o moralista político forja princípios morais que lhe sejam convenientes a cada momento, sem qualquer compromisso com a moral e o direito racional. Portanto, o moralista político age deliberadamente para atingir seus objetivos e a ação política resume-se a um mecanismo imediatista de buscar os fins visados independentemente de qualquer consideração moral acerca dos meios utilizados, justificando-se tal modo de agir no imperativo hipotético, segundo o qual os fins almejados justificam os meios percorridos.

3.1.7 Segundo apêndice: Sobre a harmonia da política com a moral segundo o conceito transcendental de Direito Público

No segundo apêndice, Kant trata da harmonia entre a política e a moral que passa a existir quando o princípio da publicidade é respeitado.

______________

66

KANT, op.cit., p. 153.

67

KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007. p. 59.

(35)

Para Kant, a fim de ser legitima e compatível com a racionalidade, uma pretensão jurídica deve utilizar o princípio da publicidade, ou então será apenas uma uma pretensão jurídica, pois o que não pode ser compartilhado publicamente não é considerado justo e não possuí nenhum Direito em si.

Kant propõe um novo princípio transcendental e positivo do Direito Público, partindo da definição original de que “são injustas todas as ações que se referem ao Direito de outros homens cujos princípios não suportam a publicação”.68 A nova fórmula proposta por Kant, portanto, afirma que “todas as máximas que necessitam a publicidade (para não fracassar em seus propósitos) concordam simultaneamente com o direito e a política”.69 Novamente, Kant observa que a política somente pode apresentar-se de forma harmônica com a moral através da publicidade:

Com efeito, se apenas mediante a publicidade elas podem alcançar o seu fim, devem então adequar-se ao fim universal do público (a felicidade), e a tarefa da política é a consonância com esse fim (fazer que o público esteja contente com a sua situação. Mas se este fim só mediante a publicidade, isto é, através da eliminação de toda a desconfiança quanto às máximas, se pode alcançar, então estas devem estar em concordância com o direito do público, pois só no direito é possível a união dos fins de todos.70

A necessidade de um espaço baseado no princípio da publicidade tem muita importância na obra kantiana de paz. Para Kant, a comunicação transparente, sem censura do governo, permite que os indivíduos possam pensar mais amplamente num grupo em que todos estão comprometidos em atingir o esclarecimento. Uma das justificativas de Kant para a publicidade é a natureza da razão humana, que está sujeita a errar. Quando um indivíduo considera o pensamento de outros, sua capacidade de pensar é alargada, atingindo um ponto de vista mais elevado.

Assim, Kant constata que apenas por meio do princípio da publicidade e perante um espaço público representativo da sociedade, a política e os políticos podem justificar e legitimar suas ações e opiniões.

______________ 68 KANT, 2004, p. 165. 69 Ibid., p. 170. 70 Ibid., p. 171.

(36)

3.2 TEMAS KANTIANOS EM À PAZ PERPÉTUA SEGUNDO AUTORES CONTEMPORÂNEOS

3.2.1 Cosmopolitismo

O cosmopolitismo em Kant pode ser analisado sob diversas perspectivas, que têm em comum o princípio de servir ao bem estar da humanidade, em outras palavras “aos valores e práticas que devem ser adotados por cidadãos e Estados, a fim de consolidar uma sociedade justa e pacífica.71

Algumas dessas perspectivas concentram-se em hospitalidade universal, política mundial de federação de Estados e a concepção de indivíduo como cidadão do mundo, sendo essa última um aspecto fundamental da filosofia kantiana.

Para Deon (2005) o cosmopolitismo de Kant não é uma forma de pensar, não se trata de saber falar várias línguas ou conhecer diversos lugares do mundo, também não significa a suspensão da soberania dos povos ou a criação de um Estado mundial, como ele demonstra nesta passagem: “o direito cosmopolita é o resultado do avanço das instituições internas de cada Estado e coloca-se ao lado daqueles que defendem a dignidade da humanidade em todos os lugares da Terra”.

Segundo o referido autor, ao criar o conceito de direito cosmopolita, Kant retira a exclusividade dos Estados de zelar pelos indivíduos e a transfere para a humanidade, já que o que existe é uma grande comunidade, marcada historicamente por diferenças culturais, políticas e religiosas, como afirma Habermas nesta passagem: “o direito cosmopolita é uma consequência da idéia do Estado de direito. Só com ele é que se constrói uma simetria entre a ordenação jurídica do trânsito social e político, para além e para aquém das fronteiras do Estado.”72

É importante, entretanto, observar que Kant refuta a idéia de Estados de povos, pois isso manteria a existência de um soberano com capacidade de atuação sobre as demais nações, como ele próprio explica:

[...] tem, portanto, de existir uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este procuraria acabar com uma ______________

71

DEON, op. cit., p.135.

72

(37)

guerra, ao passo que aquele procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre. Esta federação não se propõe obter o poder do Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coação.73

Existem, entretanto, argumentações de que um estatuto cosmopolita -como exemplo, o que estabelece a universalidade dos direitos humanos - é inadequado para determinadas sociedades e culturas, além de abrir a possibilidade de ser utilizado para justificar intervenções internacionais arbitrárias sob a justificativa de assegurar o cumprimento de determinados direitos.

Neste sentido, Soraya Nour expõe o risco de agir conforme um princípio cosmopolita, citando a política dos direitos humanos:

A idéia cosmopolita de Kant foi reconstruída na década de 1990 como orientação para uma política cosmopolita dos direitos humanos. No entanto, sua manipulação por alguns Estados degenera em uma moralização autodestrutiva da política. O risco é que quando um Estado combate seu inimigo político em nome da humanidade, toma um conceito universal para se identificar com ele contra o adversário: reivindica para si a paz, a justiça o progresso e a civilização, que são negados ao inimigo; a política dos direitos humanos serviria para proceder a uma apreciação moral negativa de um oponente, frustrando a limitação juridicamente institucionalizada de um afrontamento político ou de um combate militar.74

Segundo Trindade (2007), na realidade contemporânea, um dos maiores problemas acerca do debate ético nas relações internacionais envolvendo a questão cosmopolita, reside no argumento da moralidade como meio de intervenção forçada e imposição de medidas coercitivas contra os Estados acusados de violar valores supostamente universais, abrindo-se a possibilidade para a legitimação de agressões injustas, como a discussão acerca dos direitos humanos.75

O referido autor explica que “na realidade contemporânea há maior complexidade para a proteção e efetivação dos direitos humanos em razão dos fenômenos da globalização, da interdependência e da transnacionalização”.76

Como consequência, as fronteiras estatais estão diminuindo e o poder interventivo dos Estados no que tange à proteção dos direitos humanos estão enfraquecendo, conforme a seguinte passagem:

______________

73

KANT, op. cit., p. 134 - 135.

74

NOUR, op. cit., p. 168.

75

TRINDADE, op. cit., p. 134.

76

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