da processualidade histórica. Com a diferença fundamental de a contemporaneidade ter
entretanto complicado o universo ético-representacional moderno (de que o projecto
estético de Schiller é um fundador), através, por exemplo, do primado do simulacro;
perante o qual, o conceito de Natureza ganha um carácter de tal modo problemático que só
uma reconstrução em profundidade (leia-se: pensar o irrepresentável) permite a sua re-
conceptualização. A liberdade humana radica nessa reconstrução -e Oswald não encontra
finalmente a sua liberdade quando formula (ironicamente) na prisão o seu projecto de
vida? E deste pressuposto que depende a hipótese oposicional (em termos schillerianos:
"emancipadora") de Libra.
A hipótese "emancipadora" de DeLillo é a de que a "Natureza" ainda não foi
destituída pela "Imagem", apesar de todas as aparências do contrário (como White Noise
já explorara extensivamente). Uma hipótese original, tendo em conta estas palavras de
Jameson sobre a relação entre cultura e realidade: "Today, culture impacts back on reality
in ways that make any independent and, as it were, non-or extracultural form of it
problematical, (...) so that finally the theorists unite their voices in the new doxa that the
referent no longer exists"
202. O projecto de DeLillo segue em sentido contrário ao
descrito: existe um referente e a realidade tem um tal impacto na cultura que excede as
suas capacidades de representação, revelando os seus limites: qualquer forma "nãoreal" de
cultura só pode ser extremamente problemática, ou melhor, simulacional. A história do
assassínio de Kennedy é tanto mais produtiva quanto os factos a ela associados possuem
uma irrefutabilidade histórica extrema, combinada com uma demonstração exacta dos
limites de representação da sociedade de informação contemporânea. O caso Kennedy
afirma inegavelmente a existência de uma mudança narrativizável e historicizável),
mudança essa todavia que, por via da nova sociedade de informação (formada
precisamente a partir de 1963?) e do primado do simulacro que a sustenta, permanece
oculta ou, pelo menos, irrepresentável. O desafio (um outro: a produtividade das teorias
do Sublime quanto à sua relação com Libra pode efectivamente ser medida pela existência
comum de um grande número de desafios) presente em Libra é precisamente tentar
encontrar na história de Oswald os mecanismos de formação do sujeito histórico. O outro
desafio é conseguir fugir aos epítetos de "sentimental" ou "simulacional" e "cor-de-rosa"
que as teorias do pós-moderno de Jameson e Baudrillard lhe colocariam.
A primeira questão a propósito da recuperação da História no romance de DeLillo é a da puerilidade. Entendo puerilidade no sentido que Karl Marx confere ao termo quando discute, no final da introdução aos Manuscritos de 1857, o mistério do apelo estético inesgotável da poesia e da mitologia helénicas: se bem que haja esse apelo, derivado do facto de provirem de condições sócio-económicas únicas -a "infância da civilização"-, seria pueril o esforço de, na contemporaneidade, continuar a poesia e mitologia helénicas. E também a questão da "nostalgia do real" de Baudrillard ou dos "falsos retornos" de Jameson; ou de saber se DeLillo repetiria apenas os mesmos enganos que descreve em Oswald e em outras personagens; ou ainda a questão de puerilidade ou originalidade em DeLillo. Seria com efeito fatal para a oposicionalidade que DeLillo reclama para o seu romance se a sua crítica fosse fundamentada num modelo anacrónico de história, pois seria duplicar precisamente o sentido do pós-modernismo descrito por Jameson que é suposto contrariar; uma "culturalização" da realidade que a biografia de Oswald, em todo o caso, problematizaria exponencialmente. Por consequência, a originalidade de DeLillo residirá no modo como o romance tematiza a permanência das mesmas condições sociais que assistiram ao nascimento da ideia de História. Novamente, a importância da teoria do Sublime: a recuperação da categoria do Sublime (longinquamente enunciada pelo Pseudo-Longino) e a criação da ideia moderna de História são coetâneas, pelo que a produtividade perene do sublime pode indiciar a permanência das mesmas estruturas sociais básicas que estiveram na base de ambas as teorizações (da História e do Sublime).
Penso que a diferença entre o pós-modernismo de Jameson e o pós-moderno de DeLillo é uma questão de (para continuar com a terminologia marxista) valor (tanto de uso como valor-trabalho). O fascínio presente no uso dos novos sistemas de crédito bancário, das novas tecnologias de comunicação ou informação que, segundo Jameson, distingue a euforia pós-moderna, não é reafirmado em Libra. Os resultados apresentados por via da cornucopia de tecnologias oferecida pela CIA excedem as necessidades de Branch. Daí que o seu valor de uso conheça uma reversão catastrófica; aliás, é significativo que a descrição das (supostamente esclarecedoras) provas possam ser lidas como um catálogo de loja dos horrores. Não é surpreendente que Branch mostre confiança apenas na capacidade (artesanal?) dos seus poderes mnemónicos: "But he knows where everything is. From a stack of folders that reaches halfway up a wall, he smartly plucks the one he wants (...)
136 There is no formal system to help him track the material in the room. He uses hand and eye, color and shape and memory, the configuration of suggestive things that link na object to its contents"203. Contudo, esta segurança relativa é incessantemente perturbada
pela sucessão de novas provas e investigações científicas que o Curador (que, coincidência ou não, Branch só conhece pelo telefone) envia, pelo que Branch é cada vez mais um pesadelo corporativo: a depreciação do valor-trabalho até 0. Se bem que Oswald seja o escândalo principal do romance, Branch é o eficaz escândalo da sua ineficácia total, ou seja, a sua produtividade é tão facilmente perturbável que só um problema de importância civilizacional pode justificar um tal fracasso.
A volubilidade das personagens é efectivamente um dos problemas fulcrais de
Libra. Um aspecto a reter é a surpreendente facilidade com que Oswald é abordado por
desconhecidos, desde Ferrie a de Mohrenschildt. Sem dúvida que Oswald parece facilmente influenciável por desconhecidos (seja como for: quem com efeito podemos considerar como os conhecidos de Oswald?), mas a questão neste momento é o modo com o romance trata as estratégias de abordagem por parte destes contactos de Oswald. Invariavelmente, mo só tentam fazer com que Oswald reconheça a sua originalidade, como também admitem eles próprios reconhecer a natureza única de Oswald. Mais do que um esquema de "afinidades electivas", o que está em causa é o próprio entendimento do devir histórico, mormente de como um facto histórico pode ser gerado, sem que para isso as intenções originais dos intervenientes assumam especial referência -a menos quando essas mesmas intenções servem precisamente para realizar outros fins que não os inicialmente previstos. Se bem que DeLillo não pretenda decerto formular uma teoria da evolução histórica (decerto que essa breve constatação sobre o valor da intenção, ou da "vontade", sobre o processo histórico não merece uma atenção especial por parte da teoria historiográfica contemporânea), não é menos verdade que, através desse re-entendimento da processualidade histórica, DeLillo cria uma estética própria (neste caso, bem merecedora da atenção dos teóricos, dada a ruptura com alguns dos padrões pós- modernistas que tenho observado); e, porque não referi-lo, uma filosofia e uma sociologia próprias.
A relevância dos sucessivos encontros de Oswald com os seus contactos reside aí: oferece uma imagem esclarecedora da sua relação com a sociedade. Se um dos motivos do paradoxo histórico que Oswald representa é o facto de combinar a marginalidade com o seu
papel histórico decisivo, o momento em que encontra os seus vários contactos é a instância que medeia estas duas realidades distintas. Facto do qual podemos desde logo tirar duas conclusões (tendo também em consideração a relativa marginalidade de grande parte dos instigadores da conspiração): por um lado, a fragilidade e a indeterminação dos sistemas de poder político, tão vulnerável afinal face aos assaltos de um grupo incomensuravelmente minoritário; por outro, como é evidente depois da comparação com Oswald's Tale ou o relatório Warren, Libra acentua a marginalidade dos intervenientes na conspiração: ao gosto ou não de alguma crítica, Libra revela a existência de largos segmentos sociais que passam ao lado da sociedade americana (auto)imaginada como tal. Contudo, essa revelação por si não justificaria a dimensão única de Oswald: mesmo que em certa medida represente uma "outra América" (na expressão celebrizada por Michael Harrington), Oswald nunca se confunde com um herói colectivo (ao jeito do romance proletário dos anos 30). Não é relevante de todo neste momento lembrar a diferença entre uma personagem histórica, como Oswald, e personagens ficcionais, uma vez que, mesmo em confronto com as outras personagens históricas presentes no romance, Oswald adquire uma dimensão histórica única. Por seu lado, David Ferrie, Jack Ruby, de Mohrenschildt, do mesmo modo que Frank ou Raymo, constituem no fim uma presença residual, enquanto a notícia das suas mortes pontua os meandros da investigação de Branch. Embora por si indiciem a existência de uma outra conspiração destinada a encobrir a primeira, é inevitável observar que esta eventual segunda conspiração, conquanto possa ser muito mais sofisticada -e certeira- que a anterior, não possui o seu valor histórico: basta que não seja desenvolvida à volta do eixo Oswald-Kennedy. Ferrie, novamente com mais alguma razão do que imaginaria, está certo quando isola, de entre a intriga que ele e os seus colaboradores preparam, Oswald e Kennedy, uma vez que, pelo menos dentro da economia narrativa do romance, Oswald é o único elemento cuja valia histórica pode ser equiparada à de Kennedy. O que não só retira a importância do assassínio-enquanto-conspiração (e respectiva teoria), como leva de novo à questão mais importante: de que modo Oswald assume esta importância?
Uma leitura psicanalítica indicaria a presença de um "retorno do reprimido" em processo nesta evolução de Oswald, que poderia ser então associada a uma manifestação da consciência recalcada americana das suas realidades menos favoráveis, sendo que o assassínio corresponderia ao momento traumático de libertação desse reprimido. Decerto que a questão Oswald é uma questão que os americanos desejam evitar a todo o custo (até aos dias de hoje), embora não sintam por isso uma menor obsessão com a sua biografia.