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Responsabilidade pelo Ser e Ética

Responsabilidade pelo Ser

e Ética

A responsabilidade do homem para com o ser é total. Se o homem não é responsável pelo fundo metafísico do que é e do que é o restante acto que o acompanha, – e é infinito esse restante –, é responsável pelo ser, pois o ser é obra sua, depende de si, sem a sua presença nunca emer- giria. A responsabilidade do homem pelo ser é muito superior e muito mais profunda do que a responsabilidade de um espectador ou de um contemplador, é a responsabilidade de um criador, de quem está no ponto focal, centro do mundo128de onde tudo o que diz respeito à par-

ticipação emerge, onde “la participation se produit, [...] où tout ce qui

127T.V.I, p. 404 ([. . . ] diremos que o fim do universo nunca se encontra no futuro,

mas no próprio presente em que cada possibilidade se actualiza. Nunca há outro valor senão aquele que se realiza no instante e por meio da acção de tal indivíduo.).

est reçoit son origine et son premier commencement”.129 Estando ne-

cessariamente no início de tudo o que constitui para nós o ser, somos por ele responsáveis. Se Deus é responsável pelo todo infinito do acto, que coincide com ele mesmo, e a sua responsabilidade é o seu acto mesmo e próprio, o homem é responsável pela sua parte do e em o acto total, pela sua parte de co-criador de parte desse acto. Nunca pode o ho- mem dizer que se abstém de responsabilidade, pois a sua mera presença em acto é imediatamente a sua responsabilidade em acto. Aqui, a ética é apenas um outro nome que se dá à ontologia própria do homem, que inclui, em acto, a ontologia própria de tudo o que é co-criação do seu acto de ser. E este tudo quer dizer toda a relação em acto que cada acto de ser humano é. Não tem, mas é. A ética decorre necessariamente da ontologia, melhor, do acto próprio de cada acto de ser humano. Não há um acto de ser humano como que em si, ontologicamente em si, se- parado de tudo o que não fosse exactamente ontologicamente nele, que, para além disso, fora disso, seja ético, ou político, etc. Ética e política são o que é o acto de cada acto de ser humano. Medularmente. Mais do que serem actos do sujeito, os actos são o sujeito,130 no cumprimento

129D.A., p. 112: “Ainsi, là où la participation se produit, je suis moi-même au point

où tout ce qui est reçoit son origine et son premier commencement. L’expérience initiale, c’est donc l’expérience du terme premier dont tous les autres dépendent : c’est celle de la participation, qui est à la fois constante et éternelle, dont la réflexion fixe les conditions de possibilité, dont l’exercice permet à tous les êtres de se créer eux-mêmes et de s’enrichir indéfiniment.” (Deste modo, aí, onde a participação se produz, eu próprio estou no ponto em que tudo o que é recebe a sua origem e o seu primeiro começo. A experiência inicial é, pois, a experiência do termo primeiro de que todos os outros dependem: é a da participação, que é, ao mesmo tempo, constante e eterna e de que a reflexão fixa as condições de possibilidade, cujo exercício permite a todos os seres criar-se a si mesmos e enriquecer-se indefinidamente.).

130C.S., p. 90: “Tout le secret de la puissance et de la joie est de se découvrir et

d’être fidèle à soi dans les plus petites choses comme dans les plus grandes. Jusque dans la sainteté, il s’agit de se réaliser. Celui qui tient le mieux le rôle qui est le sien, et qui ne peut être tenu par aucun autre, est aussi le mieux accordé avec l’ordre universel : il n’y a personne qui puisse être plus fort ni plus heureux.

Toute notre responsabilité porte donc sur l’usage des puissances qui nous apparti- ennent en propre. Nous pouvons les laisser perdre ou les faire fructifier. Ainsi notre

de uma vocação que não está realizada antecipadamente, mas que me pertence cumprir.131 Todos os actos em que o acto de ser desse sujeito

se concretiza, criando-o e, com ele, o seu mundo, melhor, o seu acto total, em que todas as relações com o todo infinito se revelam, em que a riqueza metafísica do acto puro oferecida à participação se transforma na sua ontologia própria, fruto da inteligência em acto que o ergue.132

Se, ironicamente, o ser não é uma entidade mágica obscura e inútil que se adiciona às coisas já prontas, para lhes dar um ar de família, também não é algo de também já pronto, a que há que adicionar as di- ferenças, para obter seres concretos, como se o campo ontológico fosse

vocation ne peut être maintenue que si nous restons perpétuellement à son niveau, si nous nous montrons toujours dignes d’elle.” (Todo o segredo da potência e da alegria reside em descobrir-se e ser-se fiel a si mesmo nas coisas mais pequenas como nas maiores. Mesmo na santidade, trata-se de se realizar. Aquele que desempenha melhor o papel que é o seu, e que não pode ser desempenhado por qualquer outro, é também o que está melhor de acordo com a ordem universal: não há pessoa alguma que possa ser mais forte e mais feliz. Toda a nossa responsabilidade diz, então, respeito ao uso das potências que nos pertencem de modo próprio. Podemos deixá-las perder-se ou frutificar. Deste modo, a nossa vocação não pode ser mantida senão permanecermos perpetuamente ao seu nível e nos mostrarmos sempre dignos dela.).

131C.S., p. 91: “Ma vocation n’est pas faite d’avance ; il m’appartient de la faire :

il faut que je sache extraire de tous les possibles qui sont en moi le possible que je dois être.” (A minha vocação não está feita antecipadamente; pertence-me fazê-la: é necessário que eu saiba extrair de todos os possíveis que estão em mim o possível que devo ser.).

132T.V.I, pp. 338-339: “Nous ne pouvons pas, en effet, oublier que, s’il n’y a de

phénomène que pour nous, cet être du phénomène qui constitue sa valeur ne peut pas être dissocié de notre être propre, en tant que celui-ci se constitue par une démarche que trouve son expression dans le monde et ne cesse d’en changer la face. Inverse- ment, découvrir la valeur des choses, c’est découvrir l’acte intérieur qui nous permet, par son moyen, de promouvoir le niveau de notre conscience et donne aux choses elles-mêmes une signification que jusque-là elles n’avaient pas.” (Não podemos, de facto, olvidar que, se não há fenómeno senão relativamente a nós, o ser do fenómeno, que constitui o seu valor, não pode ser dissociado do nosso próprio ser, enquanto este se constitui por meio de um movimento que encontra a sua expressão no mundo e não cessa de lhe modificar a face. Inversamente, descobrir o valor das coisas é des- cobrir o acto interior que nos permite, por seu intermédio, promover o nível da nossa consciência e dar às próprias coisas uma significação que, até então, não tinham.).

uma massa informe de ser, de onde se retiram concretos seres, por ac- ção de um qualquer demiurgo, mais ou menos activo, inspirado e sábio. O ser não é uma contínua indiferenciada mole ôntica a que o conheci- mento vai buscar e salvar determinações, que constituem o campo do ontológico. Não está aí, feito, na sua informidade, esperando ser ac- tualizado por um conhecimento, que pode vir ou não vir. O ser não é nem ontológica nem metafisicamente anterior aos seres: é-lhes coe- rente; não se pode dizer, claro, contemporâneo, dado que o tempo não é aqui pertinente. Está no seu âmago: é o seu âmago, mas é enquanto é, apenas desde o instante em que começa a ser e nem antes nem depois nem temporal nem ontológica nem metafisicamente.

3.10